segunda-feira, 30 de outubro de 2023

4997) Drummond: "Sesta" (30.10.2023)




Nos poemas de Alguma Poesia (1930), o livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, este aqui faz parelha, ou faz grupo, com “Infância”, “Cidadezinha qualquer”, “Família”, “Iniciação amorosa”... São as descrições da rotina familiar que não muda, a rotina modorrenta, naquele cansaço de não fazer nada, em que paisagem, família, adultos, crianças, criadas e animais parecem se nivelar num mesmo estado de sonambulismo. 
 
A “poesia de infância” de Drummond, em seus primeiros livros, vagueia o tempo todo entre a saudade afetuosa de um “tempo bom” e a ironia cáustica dos modernistas contra qualquer manifestação de sentimentalismo água-com-açúcar. Ter saudade de uma infância feliz é um sentimento singelo que deveria estar protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas o fato é que a nossa poesia do século 19 (de Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu) carregou um pouco nas tintas. Era preciso um antídoto. 
 
O Modernismo de 1922 forneceu esse antídoto, e ele veio muitas vezes dentro da ampola da crítica social, uma poderosa medicação-de-choque contra a nostalgia adocicada. Drummond mostra isso repetidamente, e seus poemas sobre “a família mineira” são misturas nem sempre sutis entre a lembrança boa e a crítica contaminada de sarcasmo. 
 
Não podemos esquecer que estes poemas (do livro Alguma Poesia, 1930) são poemas de um rapaz de 28 anos, momento de ingresso na vida adulta, em que a palavra infância não traz muito saudosismo. Ela é apenas um contratempo que foi enfrentado e vencido, como a catapora e os dentes-de-leite. Na velhice, a partir da série Boitempo (Boitempo, 1968; Menino Antigo, 1973; Esquecer Para Lembrar, 1979), o poeta se descontraiu. Tratou o sentimentalismo como um chinelo velho e confortável, e ao mesmo tempo não perdeu o gume da observação. 
 
“Sesta” é dedicado a Martins de Almeida (1903-1983), companheiro de geração de Drummond, a geração de poetas de A Revista. Nascido em Leopoldina, fazia parte do grupo de rapazes belorizontinos encantados com a literatura francesa de sua época. Numa reminiscência de coluna de jornal (Tribuna da Imprensa, 26-10-1977, p. 9) Hermenegildo de Sá Cavalcante descreve a chegada de um livro de Marcel Proust à Livraria Francisco Alves, do livreiro Kneipp, ponto de encontro dos jovens e entusiasmados poetas: 
 
No primeiro desembarque de 1920, chegara o Prêmio Goncourt do ano anterior. (...) O bando atacou o caixote. Empunhava martelo e pé-de-cabra o risonho Francisco Martins de Almeida. Iniciada a operação salta um pacote que vai tombar aos pés de um moço de olho vivo e ar tímido, mas atilado leitor e hábil tipógrafo. Era Eduardo Frieiro. Rápido, apanha-o e sobraçando o embrulho sai correndo para o fundo da loja. Mal aberto, grita: -- É o Goncourt, pessoal! Mais quatro moços atiraram-se em seu encalço e arrebataram os exemplares: Milton Campos, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alberto Campos. 
 
O relato completo está aqui:
https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154083_03&pagfis=29222
 
Foi nesse clima de busca-do-tempo-perdido e de zoeira inofensiva que Drummond foi se descobrindo poeta, e foi compilando seu livro de estréia. 
 
“Sesta” é esse retrato afetuoso e meio debochado da “família mineira”, instituição tão primordial quanto os elementos químicos. A expressão “família mineira” é usada quatro vezes, com insistência proposital. Está aqui a fala coloquial que o Modernismo impôs à sensibilidade greco-romana dos parnasianos e simbolistas: “quentando”, “pereba”, “corta ele, pai”. Aqui está o mundinho provinciano, fechado em si mesmo: “Os olhos se perdem / na linha ondulada / do horizonte próximo / (a cerca da horta). / A família mineira / olha para dentro.” 
 
Existia nesses jovens a necessidade de ruptura com o Passado, peso que continuava asfixiando o presente. 
 
Sesta
A Martins de Almeida
 
A família mineira
está quentando sol
sentada no chão
calada e feliz.
O filho mais moço
olha para o céu,
para o sol não,
para o cacho de bananas.
Corta ele, pai.
O pai corta o cacho
e distribui pra todos.
A família mineira
está comendo banana.
A filha mais velha
coça uma pereba
bem acima do joelho.
A saia não esconde
a coxa morena
sólida construída,
mas ninguém repara.
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo
(a cerca da horta).
A família mineira
olha para dentro.
O filho mais velho
canta uma cantiga
nem trite nem alegre,
uma cantiga apenas
mole que adormece.
Só um mosquito rápido
mostra inquietação.
O filho mais moço
ergue o braço rude
enxota o importuno.
A família mineira
está dormindo ao sol.
 
 
Numa das reminiscências do livro Confissões de Minas (1944), “Recordação de Alberto Campos” (com a anotação de ter sido escrita em 1933), Drummond lembra desses amigos de juventude e comenta: 
 
Um recuo de dez anos projeta no presente esse grupo que em 1923 procurava o caminho, e no qual a presença dele [Alberto Campos] operava como um elemento de crítica vivaz e mordente. (...) Mas não éramos felizes. Fomos as primeiras vítimas da nossa própria ironia, e, impiedosos com o próximo, não nos perdoávamos a nós mesmos nenhuma fragilidade. O nosso compromisso, que era o de não assumirmos nenhum, impunha-nos disciplinas severas. A voluptuosa disponibilidade deixava de ser uma condição edênica para constituir fonte contínua de angústias.
 
Era uma geração sofrida, reflete Drummond, que não teve “o respeito aos mestres nem a ilusão dos discípulos”
 

 


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

4996) Os segmentos de estória de Roberto Bolaño (27.10.2023)




Passou pelas minhas mãos o livro póstumo de Roberto Bolaño El Gaucho Insufrible, uma coletânea de contos e ensaios curtos, já com tradução e edição brasileira à vista. (Li na edição omnibus da Anagrama, Barcelona, 2010, onde o livro vem em conjunto com Llamadas telefónicas Putas asesinas). 
 
Bolaño tem uma prosa líquida, fluente, aparentemente espontânea, um estilo de escrever que muitas vezes parece sair pronto do teclado, sem maior esforço que o de digitar. Não que lhe seja estranha a prosa mais elaborada, mais tensa, cheia de imagens imprevistas, de reviravoltas inesperadas no modo de pensar e de expor. Na maioria dos casos, no entanto, ele dá a impressão de que escrevia e mandava direto para a gráfica. O que é sempre ilusório. Parecer espontâneo dá muito trabalho. 
 
Outro traço típico dele é o modo como ele parece evitar de propósito os finais espetaculares, dramáticos, catárticos. Apesar de se dizer um fã de Edgar Allan Poe, neste aspecto ele vai na contramão do mestre. Seus contos estão mais para o efeito de Tchecov: a descrição de uma série de eventos que, ao invés de conduzir a um evento final retumbante, vai se diluindo em eventos menores e menos expressivos, como uma fumaça que se dissipa no ar.  
 
Em El Gaucho Insufrible temos contos nos dois modelos. E temos um exemplo de conto fantástico ou alegórico, não típico do autor, que é “El policía de las ratas”, uma fábula zoológica que ele deriva explicitamente de “Josefina, a cantora, ou o povo dos ratos”, de Franz Kafka. O rato narrador é um policial a quem cabe investigar uma série de crimes misteriosos que estão ocorrendo nos esgotos onde a rataria vive. 
 
Bolaño era um leitor atento e inteligente de poesia, de prosa, de ficção científica e romance policial. O livro se conclui com dois textos que na verdade são agregados de fragmentos curtos de apreciação literária: “Literatura + enfermedad = enfermedad” e “Los mitos de Cthulhu”.  Este aqui não tem nenhuma menção a Lovecraft. O título é apenas uma isca, um clickbait, para que o leitor-de-gênero o leia antes de todos os demais. 
 
Os dois melhores contos são duas histórias longas com enredo bem ao gosto de Bolaño: um protagonista que vai entrando aos poucos num trajeto de acontecimentos onde cada evento novo conduz a uma situação que o precipita noutro evento imprevisível, e assim por diante. O protagonista parece não saber muito bem o que pretende, e quando o sabe parece não estar ansioso para alcançar seu objetivo. Deixa-se levar meio passivamente, como um daqueles personagens para-existencialistas dos romances policiais noir. “Deixa a vida me levar, vida leva eu.”
 
O primeiro conto é o que dá o nome ao livro. “El gaucho insufrible” transcorre na Argentina e conta as peripécias da vida de Héctor Pereda, advogado bem sucedido, viúvo, com um casal de filhos adultos. As crises políticas e econômicas do país o levam a abominar a cidade tumultuada e refugiar-se no campo, numa propriedade remota a que nunca dera muita atenção. Ali, como tantos urbanóides, ele tenta se adaptar a uma vida mais pura, mais simples, no meio de vaqueiros e camponeses rudes, que o tratam com respeito mas veem com estranheza seus rompantes gastadores, seu paternalismo jovial. 
 
A vida de Pereda vai se tornando uma sucessão de empreitadas bem ou mal sucedidas, enquanto ele se recusa a tornar a Buenos Aires. Os filhos, e alguns amigos, empreendem a longa viagem até sua estância para tentar trazê-lo de volta ao mundo civilizado. Ele tenta restaurar casarões, caça coelhos (uma verdadeira praga do lugar), espanta-se com a vastidão aterradora do pampa.
 
A mulher e as crianças puseram-se a caminhar por uma rodovia e embora se afastassem e suas figuras fossem se tornando diminutas passaram-se mais de três quartos de hora, calculou o advogado, até que desaparecessem no horizonte. É redonda a Terra?, pensou Pereda. É claro que é redonda, respondeu a si mesmo.
(trad. BT)
 
No final, depois de anos de pesadelo campesino, ele volta a uma Buenos Aires que não reconhece mais, caminha a esmo pelas ruas, pára diante das vidraças de um café de escritores que frequentara no passado, e sente-se ali como uma espécie de extraterrestre, ou, como diria Fernando Pessoa, “um estrangeiro aqui como em toda parte”.
 
O outro conto tem um perfil de quest, de demanda, e também de investigação, lembrando os obsessivos “detetives selvagens” do romance do mesmo título, à caça de uma pessoa que parece nunca ter existido. “El viaje de Álvaro Rousselot” parte de um início enigmático. Rousselot, escritor argentino, publica um romance intitulado Soledad que acaba sendo traduzido ao francês. Pouco depois, aparece na França um filme, Las voces perdidas, dirigido por Guy Morini, que parece um plágio descarado do romance. 
 
Rousselot se inquieta, mas deixa passar. Publica um romance policial, torna-se medianamente famoso, e em seguida um romance humorístico, Vida de recién casado, que é bem recebido pelo público. Logo em seguida, contudo, surge nas telas um novo filme, de Guy Morini: Contornos del día, que é uma versão fiel mas melhorada do livro mais recente de Rousselot. 
 
Começa então o périplo do escritor, que reúne suas economias e, a pretexto de comparecer a um evento literário na Europa, escapa rumo à França e entra numa investigação (desajeitada, incompetente, cheia de surpresas agradáveis e outras nem tanto) em busca do elusivo Guy Morini. Não se sabe bem para quê; para tomar satisfações? Processá-lo? Beber com ele? Crivá-lo de balas? Rousselot viaja, inquire, telefona, pega ônibus e trens, e ele mesmo não tem uma idéia do que fará quando se deparar com seu plagiador. 
 
Muitos contos de Bolaño têm esse enredo que nos dá a impressão de que, tal como seu personagem, o escritor não sabe muito bem para onde está se dirigindo e todo dia, ao sentar-se para escrever, vai tecendo episódios menores que conduzem a episódios mais longos, que não dão em nada mas lhe permitem dobrar uma esquina do enredo e conduzir a investigação (a invenção da estória) num rumo imprevisto. 
 
É uma leitura desconcertante para os leitores formatados pelos manuais de roteiro televisivo e pela estética do romance onde tudo conduz a alguma coisa, tudo se amarra, tudo tem função, tudo tem uma resposta mais adiante. 
 
Bolaño, quando envereda por este tipo de narrativa, nos leva de árvore em árvore sem muita intenção de revelar (ainda que a si mesmo) o formato da floresta. Seus contos se parecem ao que os matemáticos denominam “um segmento de reta”. Uma linha reta (conceitualmente) não tem começo e não tem fim, de modo que é preciso atribuir-lhe (para efeito de uma demonstração qualquer) o começo A e o final B. Os contos do chileno são pura travessia, e se esvaem ou se interrompem bruscamente sem que suas principais perguntas tenham obtido resposta. Como a vida. A do próprio Bolaño, por exemplo. 
 
 
  



terça-feira, 24 de outubro de 2023

4995) Cada qual com as suas manias (24.10.2023)



(Seu Nilo)
 
Toda pessoa tem direito a uma mania mansa, uma mania inofensiva, algo que na pior das hipóteses consome seu tempo livre e uma fatia de seu orçamento. Tem gente que coleciona chaveiros, latas de cerveja, cartões postais, selos. Tem gente que coleciona recortes de jornal. Tem gente que anota resultados de futebol, de eleições, de corridas de cavalos.
 
Meu pai era charadista e cruzadista, ou seja, gostava de resolver (e criar) charadas e problemas de palavras cruzadas nas muitas revistas que comprava todo mês, como Brasil Enigmista ou A Recreativa (para ele, Coquetel e congêneres eram para crianças ou amadores.)  Eu contraí esse vírus, e ainda hoje tenho que me conter quando vejo uma “grade” cruzadista pela frente.
 
Por volta de 1960 ele cismou de criar um dicionário de palavras cruzadas, e começou a anotar definições em pequenas fichas pautadas para as quais ele próprio construiu uma porção de gavetinhas de madeira. Não lembro qual era o viés do dicionário; acho que eram palavras organizadas pelo número de letras. Ele dava a mim e a minha irmã Clotilde um “agrado” monetário para a gente copiar definições das dezenas de dicionários que tinha na estante.
 
Aquilo exigia tempo, aquilo ocupava muito espaço, desarrumava a casa, e eu teria uns dez anos quando por motivos que nunca entendi ele desistiu do trabalho e mandou que a gente rasgasse tudo. Eu, que me divertia copiando as fichas, me diverti rasgando-as.
 
Meu pai era expansivo e piadista quando estava de bom humor, mas quando ficava contrariado fechava-se, virava uma ostra, uma esfinge. Cada pessoa tem seu temperamento. O dele era de não fazer confidências, o meu é de não fazer perguntas. Nunca me passou pela cabeça, a não ser postumamente, chegar para ele e perguntar: “Por que o senhor desistiu do dicionário?”.
 
Outra mania que ele tinha era o futebol, e esta eu herdei de corpo inteiro. Ele se entusiasmou loucamente com a Copa do Mundo de 1958, e comprava todas as revistas que traziam matérias sobre a Copa da Suécia: Manchete Esportiva, Fatos & Fotos, A Gazeta Esportiva Ilustrada... (Acho que a Revista do Esporte, em formato menor, só surgiu depois.)
 
Não só comprou como encadernou todas. E para mim a Copa de 1958 (cuja comemoração em tempo real presenciei meio aturdido, porque tinha apenas 7-8 anos) se transformou depois numa aventura literária. Eu pegava um daqueles enormes volumes encadernados, sentava no sofá, e passava uma manhã inteira lendo as detalhadíssimas reportagens sobre cada jogo, com mil fotos, diagramas ilustrativos de cada gol da Seleção, cartuns, piadas, entrevistas... e as páginas assinadas pelos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho.
 
Em 1961 nos mudamos triunfalmente para a “casa própria”, no bairro do Alto Branco.  Nesse tempo meu pai já tinha tantos livros que a mudança foi feita em dois dias: no primeiro dia, uma camionete levou os livros, e no dia seguinte veio o resto da casa. O primeiro dia foi épico. O Alto Branco era (ainda é) uma colina muito úmida, com muita água à flor da terra, muita lama. A camionete atolou a 100 metros da casa, e atraiu a curiosidade de dezenas de garotos desocupados. Minha mãe, atarefada e expedita, coordenou uma força-tarefa com promessa de níqueis e lanches. A vizinhança ficou assistindo a caravana de guris descalços que sobraçavam pilhas de livros e os levavam ao seu destino final, voltando na carreira para buscar mais.
 
“Ah, Fortuna inviolável!...”  A casa não era muito grande, os livros atravancavam tudo, mas havia uma garagem e meu pai nunca dirigiu carro, de modo que ergueram na garagem uma parede e uma porta. Os livros desceram para lá. A umidade porejava das paredes. Em poucos anos, as coleções de Manchete Esportiva etc. foram sendo corroídas por manchas de mofo. Era um papel-jornal barato, vulnerável. Enormes crateras esverdeadas se abriam no sorriso largo de Vavá, no choro de Pelé abraçado a Gilmar, na calma hitchcockiana de Vicente Feola, no cigarro no canto da boca de Nelson ao comentar “Meu Personagem da Semana”.
 
E a coleção de dezenas de volumes capa-dura foi trasladada melancolicamente para o lixo, enquanto eu reprimia os inevitáveis trocadilhos tipo “o mofo deu”. Meu pai nada dizia (pelo menos na minha frente). Acendia um cigarro e olhava a paisagem.
 
Devo ter herdado um pouco disso tudo, não só das manias como do estoicismo. Não sei onde foram parar as centenas de fichas técnicas de filmes que anotei em meus tempos de cineclube (Diretor/Produtor/Roteiro/Música/Fotografia/Elenco), nem os incontáveis cadernos onde copiava com fervor religioso os jogos do Treze (data/local/juiz/renda/gols do 1º. Tempo/gols do 2º. Tempo/placar final/escalação do time).
 
Perderam-se ao longo das minhas muitas mudanças de cidade em cidade. Espalharam-se com meus livros de bolsos, minhas revistas de contos policiais, meus Argonautas, meus Vampiros, para não falar nas pilhas de Pasquim, Opinião, Movimento, Versus, Flor do Mal, Rolling Stone... Meu tesouro se espalhou pelo tempo afora, tal como o Tesouro de Agra que hoje repousa no fundo do Tâmisa.
 
Quando alguém vem na minha casa e diz: “Puxa vida, você tem muitos livros, e acumula muito papel”, eu respondo baixinho: “Isto é apenas a ponta de um iceberg que derreteu”.
 
Todo maníaco é um obstinado, dizem os tratados médicos. Meu pai não desistiu e durante a década de 1970 iniciou um novo projeto faraônico: o Dicionário do Que, um dicionário inverso que ele datilografou em stêncils e rodou no mimeógrafo-a-tinta que mantinha no quarto dos fundos da casa do Alto Branco.
 
Cabe aqui, para os leigos (as pessoas normais) uma explicação sobre os dicionários inversos. Quando a gente vai resolver uma “palavras-cruzadas”, a gente se depara com uma definição que nos encaminha para a resposta. “Pedra de sacrifício”, é o que nos pedem: e a gente cedo ou tarde descobre que é “ara”. Minha iniciação à obra de Sigmund Freud veio ao descobrir que “o substrato instintivo da psique” é “id”.
 
Ora, muitas dessas pistas se iniciam pela palavra “Que”, esse coringa verbal que é para nosso idioma um problema e uma solução. “Que tem duas pernas” = não demoramos muito a entender que a palavra é bípede. Entretanto, os dicionários comuns são organizados em função da palavras, e não de suas definições. Sem saber a palavra, jamais encontraremos a definição-pista.
 
Vai daí que os cruzadistas dedicam-se a compilar “dicionários inversos”, organizados a partir das definições, e indicando no fim a palavra correspondente. Meu pai se dedicou a organizar todas as definições começadas com “Que...”, um projeto babélico, borgiano. Bem ou mal, ele produziu alguns volumes mimeografados, que distribuiu entre seus confrades da TERNOR (Tertúlia Nordestina), um grupo de aposentados bonachões que se dedicava ao mesmo passatempo.
 
Corta para a década de 1990, eu já morando no Rio de Janeiro, trabalhando como redator da TV Globo. Discutíamos pautas para os programas, e alguém sugeriu uma matéria sobre clubes de decifradores de charadas e palavras cruzadas: “é um pessoal excêntrico, mas simpático”. Eu me ofereci para pesquisar, e certa tarde bati à porta de um desses clubes, numa transversal da Av. Rio Branco. Havia dois ou três senhores conversando, entre poltronas, estantes e um balcão. Expliquei que era da TV (o que sempre produz um alvoroço de solicitude), estava fazendo uma matéria...
 
Mandaram-me sentar, crivaram-me de perguntas. Tive que demonstrar o meu conhecimento do assunto – e olhe, nunca me faço de rogado nesse departamento. Quando falei que meu pai pertencia à TERNOR, soltaram exclamações de familiaridade.
 
– Qual o pseudônimo dele? – perguntaram. (Todo charadista se assina com pseudônimo, mesmo que sua identidade seja conhecida de todos).
 
Respondi:
 
– “Pequeno Polegar”. Ele inclusive compilou um dicionário inverso, chamado Dicionário do Que.
 
Os caras arregalaram os olhos. Um deles foi à estante e não demorou a trazer o volume com capa de papelão, que folheei e reconheci, comovido. Apertaram minha mão, serviram-me cafezinho, responderam tudo que perguntei. A matéria da TV acabou saindo de pauta, mas aquela tarde foi ganha. Não estou sendo demagógico se disser que ver um livro meu na vitrine de uma livraria carioca me dá muito prazer, mas ainda menos do que tive ao encontrar naquela salinha modesta o resultado da mania mansa de Seu Nilo, e a vindicação das muitas noites que passou compilando (sem ambição de glória, sem cobiça de fortuna) o seu livro de areia.
 
 





sábado, 21 de outubro de 2023

4994) Fellini: as mulheres e as luzes (21.10.2023)



 
O cinema de Federico Fellini sempre circulou em torno de meia dúzia de temas, e um dos mais constantes é o que hoje chamaríamos de show business, mas na Itália onde ele se tornou diretor tinha o nome de varietà. É o nosso teatro de variedades, centrado não numa obra dramatúrgica mas numa sucessão de pequenos esquetes ou entremezes, números musicais, números de mágica de salão, quadros humorísticos, danças, contação de piadas (o que hoje chamamos de stand-up comedy) e assim por diante.
 
É o mundo dos artistas mambembes, das companhias ambulantes que vão de cidade em cidade na esperança de faturar uns trocados enquanto vivem o "momento mágico do palco”, que para muitos deles, pobretões e esfomeados, parece ser paga suficiente.



Este primeiro filme de Fellini foi dirigido em parceria com o mais experiente Alberto Lattuada. Luci del Varietà (“Mulheres e Luzes", 1951) é a história de Checco dal Monte (interpretado por Peppino de Filippo), uma mistura de canastrão e dono-de-companhia, e sua trupe de artistas mambembes, viajando de trem (e de carroça, e a pé) pelas cidadezinhas do interior. Checco se apaixona por Liliana, uma moça bonita (Carla del Poggio) doida para virar artista; e causa uma grande decepção em Melina – Giulieta Masina no papel da mulher um pouco mais velha, mais vivida, mais realista, e que lê com olhos de raios-X o entusiasmo do companheiro pela nova estrela da companhia.
 
Não muito distante (pela data, inclusive) daquelas chanchadas nacionais em que o trêfego Zé Trindade, casado com a ameaçadora Violeta Ferraz, ficava todo de risadinhas e salamaleques rumo a vedetes como Anilza Leoni e outras. 
 
Se o tema for do interesse de algum leitor, sugiro ver The Travelling Players, de Theo Angelopoulos (1975), filme grego que acompanha um grupo similar de vaudeville ambulante, desta vez na Grécia, e com um viés trágico percorrido pela II Guerra e a ditadura militar que foi imposta ao país logo depois. Há cenas em que Angelopoulos parece estar citando diretamente o filme de Fellini/Lattuada – o dia nasce e os atores andam de rua afora, sonolentos, malas na mão, rumo à estação do trem e à próxima aventura de bilheteria. 



(The Travelling Players

 
Não é a única referência que me veio à mente quando vi agora Mulheres e Luzes. Aqui, a primeira dança da bela Liliana, ainda sem jeito, ainda uma estranha na companhia, acaba provocando aplausos quando sua roupa se rasga. O número, incorporando o detalhe, torna-se sucesso nas noites seguintes. Em Viva Maria (1965, Louis Malle) acontece algo semelhante nos primeiros números de dança da amadora Maria II (Brigitte Bardot) com a profissional Maria I (Jeanne Moreau).   
 
Os críticos têm comentado também a semelhança do enredo com o de A Malvada (“All About Eve”, 1950) – a atriz jovem, bela e ambiciosa que rouba o marido e a carreira de uma atriz mais experiente. Fellini e Alberto Lattuada, os dois diretores, colocaram suas respectivas esposas (Giulieta Masina e Carla del Poggio) nesses papéis, mas ao contrário do filme norte-americano a ênfase deles é no personagem masculino, em que Peppino de Filippo arrasta a asa à jovem enquanto é ridicularizado por todo o mundo. 


 
“Quebrando” uma companhia atrás da outra, Checco dal Monte se endivida, mete os pés pelas mãos, mas não desiste nem da beldade (que o explora até não poder mais) nem do palco. 

Vem daí uma das cenas famosas do filme. Desalentado e sem grana, impedido de entrar na pensão onde estava em dívida, ele caminha de madrugada pelas ruas desertas da cidade, na companhia de um norte-americano negro, trumpetista, um dos muitos soldados do exército dos EUA que se deixaram ficar na Itália depois do fim da guerra. Os dois se deparam com uma moça ao violão (apresentada como “a grande artista brasileira, Moema”) que não é outra senão Vanja Orico, que poucos anos depois ficaria famosa aparecendo em O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto. 



(Vanja Orico)


É curioso ver no filme de estréia de Fellini uma cantora entoando “Meu Limão, Meu Limoeiro” em puro português. Não é surpreendente, no entanto – é bom lembrar que a década de 40, entrando pela de 50, foi o auge do baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, e muitos filmes estrangeiros da época incluíam canções brasileiras em sua trilha. Foi também o caso de Noites Brancas (1957) de Luchino Visconti, onde escutamos “Muié Rendeira”, a composição de Zé do Norte tornada famosa em O Cangaceiro.
 
E o próprio Lattuada viria a incluir em seu Anna (1951) um nímero musical cantado por Silvana Mangano, “El negro Zumbón”, um dos mais conhecidos baiões compostos fora do Brasil – a música é de Armando Trovajoli, grande “trilheiro” do cinema italiano, e letra de Francesco Giordano.  
 
Aqui, “Meu Limão, Meu Limoeiro”:
https://www.youtube.com/watch?v=CoKUmGP9FCw&ab_channel=gelsomminna
 
E aqui, “Sodade, Meu Bem, Soidade” (O Cangaceiro):
https://www.youtube.com/watch?v=_rqMBScsrgY&ab_channel=RADIOSANTOS%28REM%29
 
Fellini, mesmo em seu primeiro filme (e um filme co-dirigido por um amigo mais experiente) já era o cineasta do grotesco e do bizarro. Encontrei aqui neste filme uma cena de submundo que seria depois recriada na tela pelo carioca Miguel Borges. São os homens que “dormem na corda”, ou seja, sentados num banco comprido e debruçados sobre uma longa corda amarrada horizontalmente. Quando o dia amanhece, o dono do pulgueiro desamarra a corda, todo mundo tomba para a frente, levanta e vai embora. 
 
E há a cena inesquecível de quando a companhia de vaudeville se apresenta numa cidadezinha e desperta a simpatia de um ricaço local, que convida a todos para jantar, na esperança de exibir seus próprios dotes artísticos (cantando o “Figaro”) e de tirar uma casquinha da desejada-das-gentes, Liliana. A companhia está esfaimada, e o jantar é uma longa cena em que a câmera percorre a mesa mostrando uma dúzia de rostos que mastigam com concentração, voracidade e êxtase, sem trocar uma palavra sequer. 



 





quarta-feira, 18 de outubro de 2023

4993) A pior sensação da vida (18.10.2023)



(Manuel Bandeira)
 

“A vida inteira que poderia ter sido e não foi”, pensou um dia Manuel Bandeira, durante um poema.
 
Frágil, ameaçado pela tuberculose desde a adolescência, o poeta  não tinha como não fantasiar outras vidas, o que aliás fez lindamente em “Vou-me embora pra Pasárgada”. Tanta coisa para viver, tantas aventuras, tantos prazeres! E a vida se resume ao esforço fatigante de preservar uma existência sem atrativos. Por isso, talvez, gente como Janis Joplin dizia preferir viver dez anos a mil-por-hora do que mil anos a dez.
 
Janis conseguiu o que queria. A maioria das pessoas prefere viver pianinho, prefere pegar leve, poupar-se, mesmo que resignando-se a uma certa pasmaceira. E abrindo mão daquilo que a cultura-de-massas chama “a realização do seu sonho”.


 
Paulo Coelho popularizou (não foi ele quem criou) a expressão “quando você vai atrás do seu sonho, o universo inteiro conspira a seu favor”. É uma frase eficaz no sentido motivacional, porque todos nós precisamos de uma aplicação de otimismo quando temos que encarar uma tarefa, mesmo algo simples como arrumar a escrivaninha ou lavar o banheiro de casa.
 
É preciso acreditar que o objetivo vai ser atingido. Times de futebol, equipes de vendedores, grupos de militantes políticos, soldados no campo de batalha – todos eles precisam acreditar no sucesso, precisam da hipnose benéfica do otimismo.
 
Esse tipo de auto-ajuda funciona de forma paradoxal, porque as pessoas conseguem acreditar ao mesmo tempo no livre-arbítrio (“eu tomei esta decisão e tenho certeza de que alcançarei meu objetivo”) e no destino (“está escrito que serei vencedor”). O que é compreensível: sempre que os fatos parecem desmentir um desses aspectos, basta-nos trocar de chave, e acreditar no outro.



(Hugh Mac Leod)
 
Hugh MacLeod, autor de livros de auto-ajuda, afirma (em Ignore Everybody):
 
Toda pessoa foi trazida para a Terra com um Monte Everest privado para escalar. Talvez você nunca chegue ao pico, e isto é compreensível. Mas se você não fizer pelo menos um esforço sério para chegar ao cume nevado, anos depois você vai se ver deitado em seu leito de morte, e tudo que vai sentir é um enorme vazio. (trad. BT)
 
A auto-ajuda consiste muitas vezes em reafirmar, com suas próprias palavras, algo que você leu e lhe pareceu fazer sentido.


(Franz Kafka)

 
Franz Kafka tem uma parábola famosa chamada “Diante da Lei”. Um homem chega diante de uma porta que dá acesso à Lei. Diante dela há um guarda enorme, ameaçador, que o dissuade de tentar entrar ali. “Depois desta porta há outra,” explica ele ao homem, “com um guarda ainda maior que eu, e depois outra ainda maior, e assim por diante; eu próprio não consigo olhar para eles sem ficar tomado de terror.”
 
O homem hesita, acha que não vai ser capaz, e passa o resto da vida ali, ao pé da porta. Perto de morrer, ele chama o guarda e pergunta por que motivo, durante todos aqueles anos, não apareceram outras pessoas ali à procura da Lei. O guarda responde: “Porque esta porta existia somente para ti, e como agora vais morrer, terei que fechá-la”.
 
A porta da Lei e o Everest privado são o mesmo conceito – existe algo que somente você será capaz de tentar, e não adianta tentar se beneficiar da experiência alheia ou do efeito manada, invadindo o recinto junto com uma multidão. As conquistas pessoais são solitárias, por definição. Dependem só de você.



(Henry James)

Henry James glosou este mote em sua misteriosa noveleta “A Fera na Selva” (1903). Seu protagonista, John Marcher, é um homem inteligente, pacato, metódico, que confessa viver à espera de um evento extraordinário que (por uma intuição qualquer) ele pressente estar à sua espera no futuro. Preparando-se para esse evento (que tanto pode ser uma epifania quanto um desastre), ele  se poupa, se protege, evita embarcar em outros compromissos. E no final, nada acontece. O evento extraordinário talvez estivesse no seu caminho se ele tivesse se lançado à vida, ao invés de se proteger dela.


(John Crowley)
 

Ter medo da vida é doloroso. O que dizer de quem tem medo da literatura? John Crowley tem um conto, “Novelty”, na coletânea do mesmo nome (Foundation / Doubleday, 1989), cujo protagonista, um indivíduo cheio de ambições literárias, um dia se depara, dentro de si mesmo, com uma revelação acabrunhante.
 
Muitos anos depois, ele percebeu que a diferença entre ele e Shakespeare não era propriamente de talento, mas de fibra. A capacidade de não se intimidar diante das idéias mais vastas ou mais poderosas e de simplesmente (simplesmente!) sentar-se à mesa e pôr mãos à obra. A terrível languidez que se apossava dele quando algo imenso e complexo tornava-se subitamente claro aos seus olhos, algo com as dimensões de um “Rei Lear” e a minúcia de um soneto. Se ao menos não desabasse sobre ele assim, de uma vez, tudo tão monumental e tão perfeito, deixando-o amedrontado e frouxo diante da perspectiva de articular tudo aquilo, cena por cena, página por página!... (...) Gemendo como um fantasma desprezado, a idéia grandiosa ruflava as asas e sumia no vazio.  (trad. BT)
 
Alguns autores são assim, capazes de se maravilhar (e se aterrorizar) com as dimensões de uma empreitada. Outros são mais pragmáticos.



(Thomas Carlyle)
 

Conta-se que Thomas Carlyle recebeu de seu colega John Stuart Mill, em 1834, a encomenda da redação de uma história da Revolução Francesa. Mill recebera essa proposta mas não tinha condições de executá-la. Carlyle aceitou, e pôs mãos à obra. Depois que concluiu o livro (cuja edição atual tem cerca de 800 páginas), enviou o manuscrito para Stuart Mill. Na casa deste, por engano, uma criada pegou o pacote com o manuscrito e o queimou, achando que era destinado ao lixo. Quando recebeu a notícia, Carlyle sentou-se à mesa, pegou pena e tinteiro, escreveu “Capítulo 1”, e refez o livro por completo.
 
 
 




domingo, 15 de outubro de 2023

4992) Lupin e a pérola negra (15.10.2023)




A série francesa Lupin voltou agora pelo Netflix, em sua terceira temporada. Houve um certo receio de que não voltasse, porque as duas primeiras temporadas mostraram o começo, meio e fim da aventura de Assane Diop (o “Arsène Lupin” moderno) para destruir a família do milionário Pellegrini, algoz de seu pai. 
 
A terceira temporada inicia uma aventura nova, “A Pérola Negra”, com o mesmo ótimo elenco, roteiros espertos e direção agradável. É um folhetim, e estas aventuras têm momentos dramáticos mas não buscam a tragédia, têm momentos engraçados mas não se pretendem propriamente cômicas. 
 
Vi algumas críticas às temporadas anteriores: “Ah, mas assim é muito fácil, alguém deixou uma porta destrancada, sem perceber, e ele fugiu...” Facilidades deste tipo fazem parte da dramaturgia do folhetim, que não tem que ser 100% plausível. Uma dramaturgia séria como a de Breaking Bad não poderia usar de forma tão relaxada a coincidência, ou o fato de que o herói possui justamente o recurso necessário (instrumento, informação, contato, amizade) que lhe permite sair de uma sinuca. 
 
O folhetim não é uma narrativa realista, é uma prestidigitação com acontecimentos. Uma série de truques, como os da magia de palco, onde sabemos muito bem que aquilo é impossível (a mulher não foi serrada ao meio, a água não virou confetes), mas aplaudimos a fluência com que a falsa magia é apresentada. 
 
Lupin emprega reiteradamente alguns efeitos narrativos que aumentam em muito o interesse do espectador, principalmente o espectador que leu os romances originais de Maurice Leblanc e a cada episódio lembra-se de um truque, uma situação, um golpe, um suspense que estavam nos livros e são agora recuperados em contextos diferentes, atuais. 
 
Os livros de Maurice Leblanc sobre Arsène Lupin foram sucesso absoluto entre 1905 e 1935. Há exatamente 100 anos ele estava publicando As Oito Pancadas do Relógio, um dos seus melhores livros, com oito contos em que Lupin (nessa época mais para detetive amador do que para simples ladrão elegante) decifra uma série de crimes. Incluí um conto desse livro, “A Morte na Praia” (“Thérèse et Germaine”) na minha antologia Crimes Impossíveis (Bandeirola, 2021). 




É típico do aventureiro Arsène Lupin estar numa das pontas de um triângulo complementado pela “polícia” e pelos “vilões”. Lupin não é o vilão. É apenas um desapropriador contumaz de fortunas mal ganhas. Quando ocorre um assalto ou um crime de grande repercussão, a polícia naturalmente o atribui ao “usual suspeito”, ou seja, ele. Lupin arregaça as mangas, mergulha por conta própria na investigação, decifra o mistério, ridiculariza a força policial, entrega-lhe manietado o criminoso, e foge com algum tipo de riqueza ou jóia com que se deparou no transcurso da aventura (ou pelo menos uma mulher bonita). 
 
Um dos charmes desta série de TV é que o herói original, um  bonitão elegante com porte de Omar Sharif, é apenas a inspiração literária para Assane Diop (o ótimo Omar Sy), um negro enorme, simpático, atlético, de papo convincente, e com um talento para o disfarce que consegue atenuar (usando inclusive a “invisibilidade social” do negro) a extrema visibilidade de sua estatura.




Um detalhe importante da série é a presença do policial Guédira, que tal como Diop é um fã dos romances de Maurice Leblanc, e os conhece a fundo. Isto é pretexto para um jogo de pistas e alusões em que Guédira percebe as intenções de Diop, mas não consegue explicar aos demais membros da polícia a importância das alusões literárias.
 
Dessa maneira, existe um diálogo à distância entre o ladrão e o policial, uma “fanzice” compartilhada, com uma aproximação gradual que vem se estreitando ao longo da temporada. E que de certa forma “atualiza” a simpatia meio paternal que o Lupin original tinha pelo sofredor Inspetor Ganimard.



(Omar Sy, como Assane Diop, e Soufiane Guerrab, como o policial Guédira) 
 
Dois recursos narrativos do roteiro da série (criada por George Kay e François Uzan) ajudam a dar dinamismo à situações mostradas – que, como é habitual no gênero dos “heist movies” ou “filmes de assalto”, precisam ter um pouco frouxas as rédeas da verossimilhança.
 
O primeiro é o fato de que a narrativa conta em paralelo a vida adulta e a infância de Assane Diop (e nesta parte encontramos várias das pessoas que virão a ser importantes na sua vida de adulto). E muitas vezes, quando o Assane adulto está num beco sem saída qualquer, surge um flashback de sua infância mostrando que quando adolescente ele passou por uma situação parecida, deu-se bem ou deu-se mal, mas aprendeu uma lição. Lição que agora põe em prática.



(Mamadou Haidara, como o jovem Assane)
 
O segundo recurso é uma espécie de “rewind” da narrativa. No momento crucial do perigo, surge uma interferência salvadora aparentemente “do nada” para resolver a situação. Nesse instante, a narrativa se interrompe, surge um letreiro tipo “Três dias antes...”, e só então entendemos como Diop tinha antevisto o perigo e preparado sua salvação.
 
Lupin é uma série que teve a sabedoria de, ao invés de fazer uma série de época, de cem anos atrás, dando vida ao personagem, preferiu mostrar um Lupin atual, um leitor-fã com inteligência suficiente para se meter em aventuras semelhantes ao de seu personagem favorito. E de fazê-lo numa Paris de hoje, uma Paris multirracial, cheia de novas tensões sociais e de novas tecnologias.
 
É interessante notar que este último aspecto já havia sido adotado pela série inglesa Sherlock  (com Benedict Cumberbatch e Martin Freeman). Ali, os personagens originais foram “transplantados” para o presente. Holmes continua detetive – mas Watson é blogueiro. E se faz uma exploração intensa de celulares, computadores, GPS, internet, etc., ou seja, é necessária uma mudança estrutural em alguns enredos que se baseavam numa sociedade onde o telégrafo, o telefone e a fotografia eram o máximo de recursos high-tech à disposição.



 





quinta-feira, 12 de outubro de 2023

4991) A Empregada e o Professor (12.10.2023)




A pulp fiction consagrou uma imagem típica da ficção científica, a do cientista louco. Em geral é um pesquisador solitário, isolado da comunidade acadêmica, com delírios de grandeza e de poder sobre o resto da humanidade. Reúne traços de inventores obsessivos como Thomas Edison, empreendedores implacáveis como Steve Jobs ou Elon Musk, e autocratas como Vladimir Putin.
 
O cientista louco da pulp fiction, é claro, é um cara tipo Dr. Silvana, é Lex Luthor, é o Dr. No...
 
O cinema e a literatura de anos mais recentes têm abordado um tipo que acho muito mais interessante, em termos de dramaturgia, e mais próximo da nossa realidade. Podemos chamá-lo “o cientista excêntrico”, ou “o gênio fora-de-esquadro”. Ele não é ambicioso, não é vilão, não sabe de política, não busca riqueza, não ameaça ninguém (a não ser ele mesmo, por descuido). É apenas um sujeito que vive num mundo mental próprio. 
 
Já abordei alguns destes personagens aqui, mas o tema me voltou agora após a leitura do romance The Housekeeper and the Professor (“Hakase no ai shita suushiki”, 2003) de Yoko Ogawa.  Há uma tradução brasileira, A Fórmula Preferida do Professor (Estação Liberdade, 2017, trad. Shintaro Hayashi).



Yoko Ogawa é uma escritora japonesa contemporânea, de quem li recentemente o ótimo Hotel Iris (1996), uma espécie de roman noir japonês sobre a relação mórbida entre uma adolescente e um homem mais velho.
 
Este outro livro tem como foco também a relação de uma mulher mais jovem (uma criada doméstica de trinta e poucos anos) e um velho professor que sofre de amnésia parcial. A mulher vai servir de empregada na casa dele através de uma agência de empregos, e se depara com um homem idoso, considerado um gênio matemático. Ele sofreu um acidente e agora sua memória só consegue reter os últimos 80 minutos de sua vida. 



O Professor (assim chamado durante todo o livro) vive num “eterno presente” parecido com o de Leonard, o personagem de Guy Pearce em Amnésia (“Memento”, 2000) de Christopher Nolan. O personagem do filme tatuava e escrevia recados para si mesmo na própria pele. O Professor anota as informações essenciais em papeizinhos e os prega com alfinetes no terno. 
 
A relativa tensão na convivência entre a Empregada e o Professor decorre do seu distanciamento social bem japonês, bem respeitoso; e do fato de que todos os dias ela precisa se reapresentar a ele. O gelo começa a ser quebrado quando o Professor descobre que ela tem um filho de 10 anos que fica sozinho em casa esperando que ela volte do trabalho. O Professor é radical. Crianças merecem toda a atenção. Ele obriga a Empregada a trazer o filho do colégio e ficar com ela até o fim do expediente. 
 
O Professor começa a ajudar o garoto a fazer suas tarefas de casa. Os dois gostam de beisebol, e começam a trocar figurinhas”, enquanto o Professor fala de Matemática com tanto entusiasmo que a Empregada começa, por conta própria, a estudar a teoria dos números primos e outros capítulos abstrusos da Matemática Pura, seduzida pelo entusiasmo que ele demonstra. 
 
O livro não é um thriller, não tem peripécias, não tem suspense (a não ser os pequenos e ingênuos suspenses da vida banal de todos nós, talvez os únicos que venhamos a experimentar). É um estudo de delicadeza e de aproximação gradual entre pessoas muito diferentes. E do mistério de uma mente capaz de resolver problemas complicadíssimos de raciocínio mas que precisa todos os dias ser apresentado de novo às pessoas que lhe são mais próximas. 


 
O mundo mental do Professor me trouxe à memória (a minha ainda funciona, podem testar) o matemático do filme Pi (1998) de Darren Aronofsky. Neste caso, o matemático é mais jovem e mais amalucado. Max Cohen é um rapaz cujas viagens no mundo abstrato da alta Matemática o deixaram meio maluco, meio paranóico, profundamente convencido de estar a apenas um passo de desvendar os segredos fundamentais do Universo. 
 
São duas histórias muito diferentes, mas ambas nos dão um vislumbre do estado alterado de consciência que é a prática do raciocínio abstrato em alto nível. 
 
E não é somente a Matemática Pura. Um dos filmes mais intrigantes e “em surdina” que vi nos últimos tempos foi The Sound of Silence (2019, Michael Tyburski), em que um técnico de som dedica-se a gravar e analisar os sons produzidos numa grande metrópole (no caso, Nova York). 

Gravando e ouvindo, obsessivamente, ele desenvolve uma teoria que é uma espécie de “Feng Shui do som” – um modo de alterar o background sonoro de uma casa a fim de melhorar as condições psicológicas de quem mora nela. 
 
Peter Lucien, o personagem, não tem nada de doido nem de paranóico, e é interpretado por Peter Sarsgaard num diapasão contido e discreto que somente aos poucos vai nos fazendo resvalar para o mundo de obsessão e de monomania. Lucien é manso, educado, sensível; mas tem uma total incapacidade de explicar às “pessoas comuns” as coisas que vê, que pensa e que ouve. 



("The Sound of Silence")
 

Um dos ângulos mais fascinantes destas histórias é o fato de que esses cientistas excêntricos não são propriamente perseguidos nem ameaçados com as fogueiras da Inquisição. Eles simplesmente não conseguem fazer com que ninguém (nem mesmo as pessoas que os amam) entenda as descobertas prodigiosas que fazem. 
 
Li anos atrás um conto de Joyce Carol Oates, cujo título não recordo, em que um astrônomo idoso e sem família é cuidado por uma enfermeira ou governanta, numa situação parecida com a de A Empregada e o Professor. O astrônomo é tido como senil, caduco, mas inofensivo; e a criada o trata de acordo. Ele fala o tempo todo nos cálculos e nas descobertas prodigiosas que está fazendo; e ela, atarefada, limpando a poeira, responde no tom de “ah, que bom, professor, que bom que seu trabalho está dando certo, não esqueça de comer sua aveia”. 
 
Nas últimas páginas do conto o astrônomo está febril, enfraquecido, mas fica empurrando um maço de folhas de papel nas mãos da criada, dizendo que ligue para aquelas pessoas, aqueles telefones, explique o que está acontecendo, explique que ele fez uma descoberta que vai mudar o mundo, e ela, “ah, claro, professor, não esqueça de tomar seu remédio”. E o conto se encerra com uma dupla leitura extraordinária, porque ele tanto pode ser um velhinho caduco quanto um novo Einstein a quem ninguém dá ouvidos.  
 
 
 




segunda-feira, 9 de outubro de 2023

4990) O real-irreal de W. J. Solha (9.10.2023)




W. J. Solha acaba de lançar O Irreal e a Suspensão da Credulidade (Cajazeiras: Arribaçã, 2023), o mais recente volume da sua série de poemas filosóficos, iniciada há alguns anos, e que andei resenhando aqui neste blog. Conheço o trabalho de Solha desde o tempo em que morava em Campina Grande; nossa amizade presencial tem tido proporcionalmente poucos encontros em carne e osso, se divididos pelo período de tempo. Ainda assim, é um diálogo dos mais compensadores, porque sou um dos beneficiários diretos de sua experiência existencial e literária.
 
Paulista radicado na Paraíba, Solha faz romance, poesia, pintura; é ator de cinema, ator e diretor de teatro (aposentado, diz ele – mas nunca acredite quando um ator diz que não sobe mais no palco); libretista de ópera; e acho que tem mais prêmios do que eu tenho títulos publicados. Com inteiro merecimento, porque é uma avalanche de criatividade.
 
O Irreal e a Suspensão da Credulidade é um volume fininho (menos de 100 páginas) mas dá um novo impulso ao poema-rio que Solha vem publicando há anos. O mestre Hildeberto Barbosa Filho, em seu posfácio, descreve a obra como “uma poética em espiral”, e como “uma espécie de autobiografia intelectual, artística e filosófica”, o que vai no centro do alvo.
 
Neste comentário irei acabar repetindo algo que devo ter falado quando comentei alguns dos volumes anteriores: Trigal com Corvos (2004), Marco do Mundo (2012), Esse é o Homem (2013), Deus e outros quarenta problemas (2015), Vida Aberta (2019), 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite (2021).




O tema principal deste enorme poema-serial é o conhecimento do mundo e o estabelecimento de associações, contrastes e analogias entre coisas aparentemente não-relacionadas. Como se fosse (para usar uma expressão de Carlos Drummond de Andrade em sua Antologia Poética) “uma tentativa de exploração e interpretação do estar-no-mundo”. Ou quem sabe a tentativa de estabelecimento de uma sintaxe das formas individuais e coletivas de produção de significado. 
 
Solha abre este novo poema com algumas citações, entre elas a do poema de Jorge Luís Borges que agradece pelo “divino labirinto dos efeitos e das causas” e pelo “poema”  que ele sabe ser um só, e “inesgotável”. Essa intuição totalizante (justificada ou não), de que universo e literatura são feitos da mesma trama e tecido, percorre a obra do escritor argentino, e Solha se emparelha com ele ao enxergar o mundo inteiro como uma linguagem em que algo ou alguém tenta nos explicar alguma coisa.
 
Alguma coisa que percebemos sem saber direito como isto acontece:
 
(...) pensando numa bela palavra
do português e
espanhol:
sol
e me lembro de que o vi,
na infância,
da urgência do
meu trem,
a correr – irreal, vertiginoso – no poente,
por trás das árvores negras,
até... “morrer”
lentamente,
deixando-me... diferente. (p. 8-9).
 
A vida é uma sucessão de pequenas revelações que percebemos sem decifrar; como dizia o próprio Borges em “O Fim” (em Ficções):
 
Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a compreendemos mas é intraduzível como uma música... (trad. Carlos Nejar)
 
Traduzir esses recados é uma das tarefas a que Solha se propõe, e não somente os recados do morro ou da planície, mas os da arte e da cultura acumuladas pelos milênios. Sem negar a existência do talento ou da genialidade dos indivíduos, o poeta parece retroceder alguns passos e encarar em conjunto o grande mural da História, e somente dessa distância, paradoxalmente, consegue perceber a simetria de dois detalhes situados em espaços opostos.
 
Assim como Jessier Quirino define um poeta como “um prestador de atenção”, Solha é um observador intenso, quase monomaníaco, dessas pequenas simetrias ou assimetrias improváveis no bordado do mundo. Percebe inclusive os pontos onde está faltando um fio, uma linha, um cordel, uma ligação qualquer entre dois pontos:
 
E isto é sério:
Montaigne... e Rabelais,
cada um a seu tempo e em sua redoma,
foram – não pela fé – a Roma
...e escreveram,
deslumbrados,
sobre o milenar Império,
nada, porém – o que é um petardo – sobre Miguelângelo e Leonardo,
sobre nenhum dos dois!
porque só se veria a importância do Renascimento a partir
de Jacob Burckhardt,
...trezentos anos depois!  (p. 35)
 
O mundo físico e o mundo da cultura são feitos tanto de fios quanto de vazios:
 
Entre mil arapucas:
se alguém quiser montar a Paixão de Cristo com base apenas em Lucas,
não terá uma coroa de espinhos,
e
se em depoimento de João,
sozinhos,
ficará – e a lacuna é tamanha – sem o Sermão da Montanha!
 
 
Na capa do livro (e no corpo do texto), o poeta usa no lugar da letra “R” a imagem do “olho de Hórus”, que José Eduardo Degrazia, em outro posfácio, descreve como “o olho clarividente e onipresente (aí entra a maçonaria), que tudo sabe, tudo vê e tudo julga.” Esse olhar implacável é o do poeta, que anota e cataloga cada detalhe a lhe atrair a atenção, e não só isso: que reconhece na cultura humana um tecido de olhares, de coisas que somente um percebeu, e que ao registrar e publicar transformou em dez mil percepções.
 
Daí que – mais uma vez – gracias quiero dar
ao aparente inacabamento – irreal – fundamental
do
conhecimento,
que se vê também nas pequenas coisas,
como na... solidão – que nos comove – da mulher enlutada
a cruzar a ponte levadiça
em Arles,
século XIX,
sem saber que lhe faz companhia o van
Gogh,
uns trinta metros – à esquerda – atrás dela,
e que a inclui na tela,
sem saber que eu e você agora “vemos” os dois,
tanto tempo
depois.  (p. 50)
 


É o peso do real-da-arte, mais real (porque mais intenso e mais deliberado) que o real-da-vida. Algo que observamos, também, quando a ilusão teatral sugere (=exibe) a presença de um artefato gigantesco e inconcebível mediante efeitos simples:
 
Suspensão da
INcredulidade é o fenômeno digerido de Coleridge,
em espetáculos por mim dirigidos,
quando – por exemplo – a guerreira olha para o alto e grita
que a nave do inimigo está
descendo,
coisa que a platéia – sem obstáculos – “vê” ocorrendo
nos cento e tantos refletores acesos,
presos... à parafernália das gigantescas e sempre até então
ocultas varas de luz que eu baixo ao palco,
entre a zoada de turbinas e nuvens de
talco. (p. 13)
 
Fenômeno semelhante ao da persistência retiniana que recria, no cinema, um movimento do mundo físico, através de um movimento que só existe em nosso conjunto olho-e-cérebro:
 
Surreal:
com incapacidade
total
de ver
nenhum
dos vinte e quatro fotogramas de uma sequência projetada
em disparada,
numa tela
no velho cinema,
passou a nela ver a... irreal reprodução
não registrada!
...da ação
“filmada”!  (p. 32-33)
 
O projeto poético-filosófico de Solha, expresso nestes (até agora) seis livros é um projeto universalista, totalizante, uma tentativa de salvar o mundo registrando tudo que nele parece fazer sentido. Algo como a obra de Bispo do Rosário, a “enciclopédia do apocalipse”, onde o artista julgava estar salvando da destruição tudo que reproduzia em sua linguagem pessoal.
 
Ao longo dessas obras, Solha tem desenvolvido um estilo próprio de versejar, uma combinação pessoal entre o verso livre e a rima. Ele usa insistentemente o verso livre, a linha sem tamanho fixo, ora muito curta, ora muito extensa, “quebrada” em qualquer ponto, como uma forma de criar “quebra-molas verbais” capazes de suster e cadenciar o fluxo da leitura.
 
Sua dicção, mesmo quando usa imagens retóricas poderosas, é sempre a dicção da prosa, da prosa expositiva, consequencial, em que um argumento ou uma descrição se desenrolam com rigor e clareza. O corte da linha funciona, neste caso, como um alerta permanente de que o ritmo de leitura-e-degustação deve ser outro.
 
Vai daí que Solha emprega seus artifícios para atenuar essa tendência à linguagem prosaica. “Prosaica” no bom sentido, da fala sem excesso de artifícios, como lembrava T. S. Eliot em “The Music of Poetry” (em On Poetry and Poets, Noonday Press, 1961):
 
“A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos.  Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...)  Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num retorno à fala comum.”  (trad. BT)
 
Solha abre mão de metrificar, não por não saber fazê-lo (quando ele produz letras para serem musicadas, suas sextilhas e seus martelos são impecáveis), mas porque sua aventura não é só poética, é poético-filosófica, e requer a convivência (tensa) entre os recursos de ambas as linguagens.
 
Surge também daí (acho eu) seu uso personalíssimo das rimas, que em seu texto não têm localização fixa, e aparecem distribuídas meio aleatoriamente no interior dos versos, às vezes surpreendendo pelo inusitado de sua presença, às vezes invisíveis (inaudíveis) pelo modo sem-costura com que se integram ao conteúdo do discurso.
 
Se este projeto ambicioso de Solha tem aquilo que Borges descrevia como “balbuciante grandeza”, que os seus leitores esperem a maciça “Auto/b/i/o/grafia” que ele vem há tempos distribuindo em fragmentos pelo Facebook. Fiel ao seu propósito de pensar o mundo enquanto mundo e pensamento existam.