segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

4908) O realismo e a imaginação (30.1.2023)

 

(Juan Gris, “The Open Book”, 1925)

 
Por que motivo a literatura de gênero (fantástico, policial, aventura, etc.) é vista como uma frivolidade de gente imatura, e a dita literatura realista seria (por esta mesma ótica) um privilégio dos adultos?
 
A questão parece bem formulada, mas seria possível empregar a mesma equação, com um enfoque diferente, e dizer: “Por que motivo a literatura de gênero é um prazer reservado às pessoas de mente jovem, e a dita literatura realista seria (por esta mesma ótica) um penoso estudo utilitário imposto aos adultos?”.
 
Tudo depende do modo de qualificar os elementos da pergunta. Mas por todo lado vigora o conceito difuso de que existem dois tipos de literatura – um que serve aos garotos, aos adolescentes, aos que só são capazes de absorver coisas simplórias, e outro que é mais elevado, ou mais profundo (o ângulo varia muito), e que é reservado aos adultos, que têm maior capacidade mental, maior cultura, maior envergadura moral para enfrentar os grandes problemas contidos nesses livros.
 
Uma experiência curiosa que tive por volta dos dez ou doze anos foi ao ler um dos meus primeiros livros de ficção científica de autor brasileiro, que foi A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa, uma coletânea de contos encabeçada pela noveleta-título, que aliás é a única história de FC em todo o volume.
 
Tenho hoje a primeira edição (Rio, Empresa Gráfica “O Cruzeiro”, 1948), com onze histórias no total; mas a que li naquela época foi uma versão reduzida (quatro contos apenas) publicada na saudosa “Coleção Futurâmica”, das Edições de Ouro, no início dos anos 1960.


O último conto deste volume, “Reencontro”, trata justamente do reencontro do narrador com um dos seus amigos de infância, um garoto chamado Julinho que no internato era conhecido como “o chorão”. Era bom atleta, inteligente, esperto, mas chorava com facilidade. Os dois se reencontram em São Paulo, como soldados, na Revolução Constitucionalista de 1932.
 
O narrador começa a lembrar os tempos de escola, e recorda um dia em que ele próprio tentou “fazer  bullying” com o colega (este termo não aparece no livro, é claro) para que chore, mas acaba desistindo, porque no fundo são amigos.
 
Tive remorso. Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago pra o fascículo que trazia na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que o Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele assunto inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro policial. Agora ia ler somente grandes escritores. Taunay, Alencar, Machado de Assis.
 
Fiquei com a crista baixa ao ler isto. Naquele tempo, era muito raro ver uma menção a Sherlock Holmes em livros alheios; mas essa referência era ao mesmo tempo simpática e desencorajadora. Por que livro policial seria “aquela besteira”? E digo isso sem partidarismo, porque naquela época eu tanto lia Conan Doyle quanto o volume dos “Contos Completos” de Machado, da Aguilar (o mesmo que tenho até hoje, todo surradinho e aconchegante).
 
Era irritante essa obrigação de chamar de “besteiras” aqueles livros de onde eu extraía tanta coisa: tanta situação nova, tanta paisagem estranha, tanto vocabulário, tanta informação prática, tantos traços reveladores da insondável psicologia dos adultos... Eu extraía isso tanto de Sherlock quanto de Machado, então por que motivo um dos dois era besteira e o outro não?!
 
Depois que fiquei velho dediquei-me a torcer o sentido dessas fórmulas questionáveis. E posso refazer aquele parágrafo inicial com outra formulação. 

A literatura de gênero (ou aquilo que em inglês se chama de “romance”) atrai o leitor jovem pela extensão e variedade dos assuntos que aborda, pagando por isto o preço de uma certa superficialidade. Mas ela apela ao senso de aventura, ao senso de deslumbramento diante do improvável (o sense of wonder), à curiosidade factual pela cultura-de-almanaque, à excitação dos perigos, mistérios, fugas e perseguições, e a todo um conjunto de experiências mentais que para esse leitor jovem, essa leitora jovem, estão entre as coisas mais importantes do mundo.
 
A literatura mainstream, realista, aquilo que em inglês se chama de “novel”, atrai o leitor adulto porque conta com uma certa atitude já definida diante do mundo. É o que os críticos chamam “a literatura burguesa”, não no sentido de uma literatura feita por gente rica, mas feita por gente que já assumiu uma posição definitiva diante do mundo, da vida, da sociedade. Gente que não tem mais interesse por idéias que não rendam resultados práticos em sua vida profissional e pessoal (familiar, sexual, financeira, etc.). O realismo tem, para esse leitor(a) uma função utilitária, aprofundadora: conhecer melhor as sutilezas da psicologia humana e da dinàmica da ascensão social. Mas, de preferência, nunca sugerir a existência de outros mundos, outros planos da realidade, outros planetas habitados, etc. etc. – outros jogos com outras regras.
 
Esta é uma simplificação extrema, como toda generalização; mas existe nela um irredutível grãozinho de verdade.


Curiosamente, no mesmo ano do conto de Orígenes Lessa, 1948, o grande T. S. Eliot emitia este juízo sobre a obra de seu conterrâneo Edgar Allan Poe:
 
Poe era dotado de um intelecto brilhante, isto não se pode negar; mas ele me parece o intelecto que tem uma pessoa jovem, altamente dotada, antes da puberdade. Sua vívida curiosidade assume formas que são os deleites típicos de uma mentalidade pré-adolescente: maravilhas da natureza, da mecânica, do sobrenatural, cifras e criptogramas, quebra-cabeças e labirintos, autômatos que jogam xadrez e voos delirantes de especulação. A variedade e o ardor da sua curiosidade nos deleitam e nos assombram, mas no final das contas a excentricidade e a falta de coerência dos seus interesses acabam nos fatigando.
(T. S. Eliot, citado em Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe, Daniel Hoffmann, Anchor Press, 1973, trad. BT)
 
Podem achar uma avaliação antipática, mas tudo que Eliot diz me parece bastante justo. Poe não é somente isto – mas é tudo isto, e o detalhe revelador está na frase final: o sisudo e circunspecto Eliot acaba se fatigando com a imaginação desenfreada e mórbida de outro. Eliot foi um poeta e um intelectual condenado à vida adulta, à vida burguesa, à gravata e ao cachimbo. Era norte-americano e virou inglês, era Unitário e tornou-se Anglicano; teve uma carreira pública e literária totalmente distinta da que teve Poe. (Quanto a este, talvez tenha sido um adolescente até morrer aos 40 anos, com sua fascinação pelo jogo, suas bebedeiras, suas paixões um tanto escandalosas.)
 
A literatura de gênero é extensa mas superficial; o romance mainstream é limitado mas profundo. O leitor “jovem” gosta de tentar uma grande quantidade de experiências e vivências através da literatura; o leitor “adulto” quer se concentrar nos aspectos sociais e psicológicos que podem ter um reflexo prático na sua vida já estabelecida, já focada num único caminho.
 
Tudo isto são regras fervilhantes de exceções, é claro, mas mesmo não que não sejam verdades estatísticas devem coresponder a arquétipos que flutuam, pairam, esvoaçam pelas nossas vidas, e nos identificamos ora com um, ora com o outro.



Para encerrar, uma bela imagem de Primo Levi em A Tabela Periódica (1975; Relume Dumará, 1994, trad. Luiz Sergio Henriques), no conto “Chumbo”:
 
Eu estava entusiasmado com a colaboração e veio-me à cabeça fazer espelhos até com as calotas do vidro soprado, vertendo-lhes o chumbo por dentro ou espargindo-o por fora: olhando-nos nesses espelhos, vemo-nos muito grandes ou muito pequenos, ou ainda inteiramente deformados; esses espelhos não agradam às mulheres mas todas as crianças querem comprá-los.
 
As mulheres (=os adultos) querem certezas e confirmações a respeito de uma Realidade dentro da qual labutam e pela qual se sentem parcialmente responsáveis. As crianças querem o improvável, o diferente, o estranho, o bizarro, o inesperado, porque para elas o mundo está começando e as possibilidades, como sempre, são infinitas.
 
Por mim, ficaria com este depoimento sincero de Fernando Pessoa, um temperamento que via na literatura uma forma de vida e não um tema de estudo:
 
Todo o livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de emoção, seja um estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no momento em que o leio, a única coisa que tenho lido.  Todos eles têm uma suprema importância que passa no dia seguinte.
(Fernando Pessoa, O Eu Profundo)


(Fernando Pessoa, por Rui Pimentel)
 
 
 






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