É um truísmo muito antigo, e foi popularizado por Paulo
Coelho em alguns dos seus livros místicos. O seu teor é mais ou menos este:
“Quando você se envolve na busca de um objetivo, o Universo inteiro conspira a
seu favor”.
É uma frase muito lembrada sempre que acontece uma
coincidência favorável. Vou na barbearia, tem um cliente na minha frente, entro
numa livraria para enrolar meia-hora e acho o livro raríssimo que procurava há
anos, e está por dez reais. Alguém me encarrega de um trabalho e penso em
recorrer a um cara cujo contato perdi há muito tempo; na volta para casa,
encontro-o no metrô e o problema está resolvido.
Paulo Coelho popularizou essa expressão, mas nos últimos
anos já a vejo sendo substituída por “o algoritmo de Deus”. “Rapaz, eu precisava saber urgentemente o
autor de uma citação que vi na época da Faculdade, liguei para várias pessoas,
aí resolvi relaxar, peguei um livro policial... e lá estava a informação,
porque o algoritmo de Deus não perde tempo.”
Cabe aqui, portanto, a indagação séria: é possível que o
Universo inteiro conspire a favor de uma pessoa, para que ela alcance os seus
objetivos? Ou isso não passa apenas de mais uma cenoura de otimismo pendurada
diante das ventas de burros-de-carga como eu, para que eu continue “buscando o
meu objetivo”, “me esforçando para superar os obstáculos”, “acreditando no meu
potencial”, “conquistando meu espaço no mercado de trabalho” e outras receitas da
escravitude empreendedorista?
Acreditar nisso significaria acreditar que esse Universo
Conspirador possui consciência, possui vontade, possui poder de ação
localizado, e que ele se importa comigo. Com a minha insetóide presença nas
suas entranhas.
Lembro disto porque numa festa de São Pedro em Campina,
anos atrás, estávamos em turma tomando alguma coisa ao redor de uma fogueira. Um
amigo meu (chamemo-lo Rogério) estava mergulhado na sua tese de doutorado, as
dificuldades de pesquisa, as necessidades de consultas bibliográficas. A certa
altura, falou que conhecera por acaso, numa parada para abastecer o carro, alguém
que tinha um documento científico obscuro do qual ele precisava; e saiu-se, bem
satisfeito, com essa bendita frase sobre o Universo.
Eu tinha tomado algumas doses de Matuta e resolvi cortar
o trunfo dele. Acendi um cigarro e perguntei:
– Tu acredita mesmo que o Universo, um departamento tão
ocupado, larga as suas tarefas mais urgentes só pra ajudar na tua pesquisa?
– Não é assim que funciona – replicou Rogério, que não é
bobo. – O que estou dizendo é que nas ações humanas existe um sistema invisível
de correspondências, uma espécie de convergência estatística. A nossa percepção
individual aprende isso de forma empírica e não-verbalizada ao longo da vida.
– Converse mais que eu pago seu lanche – disse alguém.
– Vocês são uns fariseus do conhecimento – rebateu ele. –
Só acreditam no que diz no Manual. Pois eu digo a vocês que o Universo percebe,
sim, o que nós precisamos, e age de acordo.
– Ele manda botar um livro numa prateleira dum sebo só
porque viu que você dobrou aquela esquina e vai passar na frente?
– Não é assim tão simples. Há linhas de convergência.
Enquanto minha mente consciente se preocupa com a necessidade da informação, há
camadas mais profundas avaliando: Onde pode haver esse dado? Que tipo de livro?
Que tipo de local acessível? Como estimular a Mente Consciente dele, essa
senhora tão pedante e egocêntrica, a procurar a informação no lugar mais
provável?
– E se a informação estiver num açougue, numa sapataria
ou numa lanchonete?
– Não está, é claro. O Universo não é caótico. Há linhas
de convergência.
– Eu já passei semanas numa biblioteca atrás de um dado
qualquer e não achei – disse alguém. – O Universo estava de mal comigo?
– Eu poderia dizer que é porque você não estava
suficientemente focado no seu objetivo – disse Rogério, – mas prefiro ser
diplomático e dizer: Nem tudo na vida dá certo sempre. Por que teria de ser
assim? São processos instáveis, sujeitos à influência de muitas variáveis. Às
vezes você até pegou o livro certo, onde estava o tal dado; mas se interessou
pelo título de outro capítulo e foi noutra direção... coisas assim.
– Mas por que motivo o Universo simpatizaria com um ser
humano? – questionei. – Muito paternalista esse seu Universo. Muito bonachão...
um universo querendo ajudar os jovens... Isso é coisa de quem já estudou em Seminário.
Toquei no calcanhar-de-Aquiles dele, que abespinhou-se.
– Existe uma energia subjacente, que permeia tudo –
afirmou. – Nós somos sensíveis a ela, e ela a nós.
– Por que essa energia não salvou Saulinho? – disse
alguém. Saulinho era um amigo nosso que tinha sido atropelado na véspera e
estava no hospital, enclausurado em gesso.
– Excelente exemplo – tornou Rogério. – As sociedades
humanas se organizam de um modo muito semelhante à dinâmica dos fluxos da
energia natural. O trânsito precisa fluir, certo? Fluxos convergentes precisam
parar de vez em quando para dar vez ao outro, e depois retomar seu curso.
Saulinho é um abestado, vinha pensando na namorada e entrou no fluxo errado.
– E aí o Universo conspirou contra ele.
– Não “conspirou”, criatura. Isso é terminologia de filme
de James Bond. As energias do universo circulam de acordo com lei do menor
esforço, lei da economia energética... Quando estiver num avião, olhe a
trajetória de um rio. O que é aquilo? Água solta, sendo atraída para o “centro virtual
da Terra”, e procurando caminho ao longo de um terreno acidentado. A energia
invisível é a mesma coisa. A gente larga uma balsa no rio e o rio vai levando,
sem precisar de vela, de remos, de nada. Isso seria um exemplo do “conspirar a
favor”, mas na verdade o que ocorre? A gente entende como aquela água está se
comportando, e usa a nosso favor. Apenas isso.
– São as leis na Natureza – disse alguém que finalmente
achou um meio de entrar na conversa.
– Chamar isso de leis é o mesmo que chamar de
conspiração. Não são “leis”. São constantes, padrões de regularidade da
matéria. A matéria se comporta de modo coerente. Temperatura, pressão,
movimento, aceleração, ciclos biológicos, tudo isso se comporta de maneira constante,
e a gente estuda isso há 10 mil anos.
– Mais – disse eu.
Ele fez um gesto de olímpico desdém, e prosseguiu:
– São detalhes. O homem usou o ímã, o magnetismo
metálico, durante milênios, sem saber por que acontecia aquilo, mas entendendo
como, e pronto. O conhecimento vai
galgando degraus, de um em um.
Eu voltei à carga:
– Certo. Mas esse fato que você contou. O carro da UFCG
parou para abastecer no Riachão. Vocês aproveitaram para tomar um café. Ficaram
conversando, aproximou-se um cara que reconheceu você de uma palestra anos
atrás. Puxou um assunto, depois outro, você descobriu que ele tinha a cópia de
uma pesquisa de um professor dele, de “xis” anos atrás...
– Sim. Desculpe ter falado em conspiração-a-favor. Na
verdade, foi uma convergência. Se eu faço uma palestra sobre um tema científico
para 200 pessoas do ramo, estou lançando 200 anzóis com isca, sabendo da
possibilidade de que mais cedo ou mais tarde algum dos 200 pegue num documento
precioso e pense: “Ih rapaz, professor Rogério da UFCG mexe com isso... será
que ele se interessa?...” Convergências.
– E quem fez o carro parar para abastecer justamente ali,
naquela hora?
– O Acaso. Um lance de dados jamais abolirá o Acaso.
– Então basta só esperar pelo Acaso.
– O Acaso funciona muito pouco com quem está esperando.
Estar parado é fechar janelas de possibilidade. Estar em atividade constante é
abrir, multiplicar janelas. Se eu não tivesse encontrado o cara lá no Riachão,
talvez batesse com ele uma semana depois, um mês...
– Ou talvez depois de ter publicado a tese com um buraco
no meio.
– E daí? Toda tese tem mais buracos do que a defesa da
Seleção Brasileira. E a gente precisa ajudar o Acaso. Precisa ser como aquele
atacante que estava de costas para o gol, numa confusão dentro da área, a bola
bateu na trave, bateu nas costas dele e entrou. Se ele não estivesse ali, o gol
não acontecia.
– Coitado de Saulinho! – disse alguém. E bebemos à saúde
dele.
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