Estilo é uma coisa que caracteriza um artista, mas que
muitas vezes pode ser absorvida por outros. Pode ser estudado; dissecado;
meditado – e depois imitado, com maior ou menor sucesso.
Alfred Hitchcock, por exemplo, criou um estilo próprio de
contar histórias, misturando suspense, humor, romance, mistério... Locações exóticas,
situações inverossímeis, precisão coreográfica na execução de cenas complexas,
intuição infalível de onde colocar a câmera, uma dose certa de implausibilidade...
Fui um grande admirador de Hitchcock desde muito cedo
(acho que vi O Terceiro Tiro quando
tinha uns dez anos) e já no meu tempo de cineclubista comecei a perceber filmes
que pareciam seguir a tabuada do mestre.
Filmes como Charada
(1963) de Stanley Donen (com Cary Grant e Audrey Hepburn), A Mulher de Palha (1964) de Basil Dearden (com Sean Connery e Gina
Lollobrigida), Criminosos Não Merecem
Prêmio (1963) de Mark Robson (com Paul Newman e Elke Sommer)... E por aí
vai. Virou um templeite. Um conjunto de recursos que qualquer um pode usar –
desde que saiba.
Um caso parecido se dá com Woody Allen, diretor de obra
tão numerosa e tão marcadamente estilística que posso sem medo propor o
conceito de “Comédia Udiálem” para designar esse tipo de filme que ele pegou da
tradição do cine norte-americano, e depois refinou com sua “mão boa de
cozinheiro”. E com isso passou a influenciar outros.
É o caso de Um Amor
a Cada Esquina (“She’s Funny That Way”, 2014) de Peter Bogdanovich, que
assisti agora em meio às homenagens e lembranças provocadas pela morte do
diretor. Revi também Essa Pequena é uma
Parada (“What’s Up, Doc?”, 1972), e para mim são dois tipos diferentes de
comédia.
A crítica chama tudo de “screwball comedy”, “comédia amalucada”, e de fato o rótulo cobre as
duas. Há uma leveza, uma inverossimilhança dramática. Por um lado as emoções
são reais, o que garante o suspense imediato (“Meu Deus! Ela vai descobrir
tudo”) mas por outro a gente sabe que é tudo brincadeira, e que entre mortos e
feridos vai sair todo mundo sem um arranhão. É o mundo fabuloso das comédias
onde ninguém morre e só os chatos vão presos.
Há nas histórias uma tensão sexual permanente, cheia de
subentendidos e provocações, entre pessoas mais escoladas e pessoas mais
reprimidas ou ingênuas. Pessoas simpaticamente cínicas azarando pessoas simpaticamente
românticas, ou vice-versa. Os mal-entendidos envolvem geralmente namoro,
azaração, infidelidade, “imagem pública”...
Essa Pequena é Uma
Parada tem dois aspectos que a distinguem. E que são bem dos anos 1960-70.
O primeiro é o velho clichê dos Objetos Iguais que acabam sendo trocados, sendo
um deles totalmente inocente e o outro algo que envolve crime, espionagem,
feitiçaria, tudo que possa se tornar ameaçador. Em Essa Pequena..., são nada menos do que QUATRO maletas idênticas, de
quatro pessoas que não se conhecem, no mesmo hotel, contendo respectivamente
jóias valiosíssimas, documentos secretos do Governo, relíquias arqueológicas e
lingerie feminina.
O segundo é A Perseguição Amalucada, um velho recurso da
comédia screwball, que mobiliza um
alto esquema de produção para acompanhar (no presente caso) uma caçada feroz de
bicicletas, limusines, táxis e o escambau que ameaçam destruir com sua fúria a
própria cidade de San Francisco. É comédia. Ninguém se machuca, mesmo que acabe
no gesso. A comédia é um Olimpo de corpos sem morte e finais felizes.
Já a comédia Udiálem
prescinde desses detalhes persecutórios, que Allen aliás chegou a usar em seu
começo de carreira. Mas Bogdanovich fez em She’s
Funny That Way um filme que se eu visse sem ter acesso à ficha técnica,
diria “na-lata” que era do diretor de Vicky
Cristina Barcelona, Celebridades,
Annie Hall, Todos Dizem Eu Te Amo, Você
Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos...
A lista é longa, variada, mas o estilo está todo aí. É um
humor baseado na velha estrutura do vaudeville
teatral. Primeiro, personagens nítidos e voluntariosos, aqueles que a gente
entende em dois minutos, mas que mesmo assim nos prometem surpresas (“prometem,
e deliveram!”, como dizia uma amiga minha).
Segundo, situações complicadas baseadas em mentiras, para
que haja sempre duas versões conflitantes em jogo, para que haja sempre algo
que alguém-não-pode-saber, etc. E em coincidências – porque se não houver uma
cena em que maridos, esposas, amantes, detetives particulares e psicanalistas
vão todos ao mesmo tempo jantar no mesmo canto, então pra quê fazer um filme?!
E o humor é basicamente de situações vexatórias e diálogos
cortantes. No caso de Woody Allen o humor pastelão (de peripécias físicas) foi
se diluindo com o passar das décadas, e parece que o de Bogdanovich também. É
tão simples botar todo mundo num restaurante, num corredor de hotel, num teatro!
Para que mobilizar 300 pessoas, fechar ruas, alugar helicópteros, pagar
quentinhas para duzentos “innocent bystanders”?
She’s Funny That
Way não tem o diálogo de Woody Allen, um diálogo que já foi
consistentemente brilhante mas nos últimos anos tem sido apenas satisfatório.
(Quero ver os diálogos dos críticos dele quando tiverem mais de 80 anos.) Tem,
por outro lado, outras marcas do diretor. Um elenco com rostos familiares que
por um lado atraem o público e por outro garantem o profissionalismo necessário
para gravar um filme em 29 dias.
Tem a dinâmica folhetinesca necessária para pular narrativamente
da confusão de A para a imprudência de B, e dali para a indecisão de C, que faz
o gancho para a esperteza de D, que quando vai “dar merda” é interrompida pela
interferência da confusão de A, e desse modo nós e mais nós vão sendo amarrados
uns sobre os outros.
(Bogdanovich dirigindo Owen Wilson)
Os diálogos deste filme não chegam a ser woodyanos, mas,
e daí? Bogdanovich é apenas um cinéfilo que virou diretor. Allen era um
comediante stand-up, cujas frases de
uma-linha foram mortais durante meio século, o que não é pouco. Não importa, neste
caso: Bogdanovich arranjou um elenco que se vira com espontaneidade e leveza, e
é tudo que o filme pede.
Um outro aspecto “udiálem” que vejo (além das locações
novaiorquinas) é no uso de um fio condutor meio memorialístico: no caso, a
ex-garota de programa (Imogen Poots, ótima) costurando os fatos com seus
comentários; a narrativa que Allen usou largamente (A Era do Rádio, Poucas e Boas,
Broadway Danny Rose etc.)
E há outro detalhe: nos filmes de Allen (tal como neste
exemplo de Bogdanovich) ele escolhe como alvo o mundo das artes: o teatro, o
cinema, a TV, as artes plásticas, a música popular...
É o mundo que ele conhece, o mundo em cujas coxias sem
luz ele se move sem tropeçar. São as proverbiais ansiedades, as neuroses
costumeiras, as fantasias de sempre. Allen já mexeu com mafioso, com cientista
louco, com guerrilheiro, com soldados napoleônicos, com assaltantes... Mas seu
universo é o universo dos artistas, aquele que todo mundo que é de fora pensa
que conhece, e não sabe da missa um terço.
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