segunda-feira, 19 de abril de 2021

4695) A bênção do anonimato (19.4.2021)



 

Queixam-se muitos escritores, os jovens principalmente, de que trabalham no escuro, como completos desconhecidos. Ninguém lhes dá atenção, ou lhes dedica respeito, enquanto eles elaboram, sabe-se lá com que sacrifício, o livro com que pretendem um dia estrear nas letras.
 
Entendo isso, mas entendo também o anonimato como uma bênção. Ninguém os elogia, mas ninguém também os esculhamba em público. Ninguém lhes pede contas de sua vida pessoal. Ah, a imprensa não noticia suas viagens, seus aniversários, as noites em que recebem amigos para jantar? Aproveitem.
 
Pobre escritor que desembarca sozinho no aeroporto, arrastando a mala de rodinhas, e não há uma multidão pedindo autógrafos e selfies? Em verdade vos digo que quem anseia por essas coisas e se dedica à literatura está batendo à porta errada num prédio que não vai ser construído.
 
O anonimato pode ser uma bênção. Se não o anonimato total, mas o fato de que muitas vezes o escritor trabalha no centro de um mundinho de algumas dezenas de pessoas que o consideram O Gênio Da Raça, mas são só algumas dezenas. Parentes, amigos, colegas, alunos... Ele escreve, as pessoas leem, os anos se passam e todo mundo diz que ele merece o Prêmio Nobel. Isso é bom. Dá-lhe ânimo para continuar escrevendo.
 
Não foi outro, por exemplo, o destino de Jorge Luís Borges entre os 35 e os 50 anos, época em que produziu, podemos admitir, suas obras fundamentais, as que deram um abalo no conceito de literatura na segunda metade do século: História Universal da Infâmia (1935), História da Eternidade (1936), Ficções (1944), O Aleph (1949).
 

(Jorge Luis Borges) 

Dizer que foram escritas no anonimato é talvez um exagero. Borges era conhecido em Buenos Aires e Montevidéu, mas era o ídolo de uns happy few, uns poucos felizardos que acompanhavam suas publicações e suas palestras. Nada disso, porém, se compara à explosão que ele experimentou a partir dos 60 anos, quando dividiu o Prix International com o irlandês Samuel Beckett. Traduções em penca, reedições, viagens pelo mundo todo. As intermináveis, insuportáveis, incontornáveis entrevistas.
 
Escritores deveriam ser poupados de duas tragédias: a penúria e a fama.
 
José Veríssimo, em sua equilibrada e judiciosa História da Literatura Brasileira (1916), observa alguns casos curiosos entre nossos autores:
 
Na literatura brasileira dá-se freqüentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato passou-se com Alencar com o Guarani, com Macedo com a Moreninha, com Taunay com a Inocência, com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas primeiras Poesias, e se está acaso passando com o Sr. Graça Aranha com o seu Canaã
 
Até onde vai meu conhecimento é um julgamento merecedor de exame. O próprio Veríssimo, comentando a obra de Alencar, não deixa de observar que o temperamento deste, seu excesso de zelos, sua disposição para a polêmica, seu envolvimento com a política, foram alguns fatores que tiveram influência direta na sua obra, principalmente na segunda fase desta, a partir de 1870, em que se assinava “Sênio”, e que para Veríssimo é claramente inferior à primeira fase.


(José de Alencar ]
 
Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente incompatibilizado.
 
Para muitos autores o excesso de exposição pesa na mão, na hora de escrever. O excesso de expectativas positivas, por exemplo. Estou cansado de ver a imprensa literária publicando matérias no tom de “O mundo inteiro aguarda com enorme expectativa a nova obra magistral de Umberto Eco. Os originais foram entregues na semana passada à editora Einaudi, e um frenético leilão já está em curso pelos direitos de tradução em dezenove idiomas.”
 
Tem quem escreva com um barulho desse? Precisa ter nervos de jogador de basquete na hora do lance-livre.
 
Alguns se dão bem com isso. Outros não.
 
No cinema, acho que foi François Truffaut quem se referiu à “maldição do segundo filme”, porque o jovem diretor derrama tudo que sabe e tudo que pode em seu primeiro trabalho pra valer, vê como este é recebido com admiração e entusiasmo, o que gera uma tremenda expectativa para seu filme seguinte – que ele não sabe o que vai ser, porque gastou toda a munição que tinha na obra-prima com que estreou.
 
Com ele aconteceu mais ou menos isso, porque estreou com o “universalmente aclamado” Os Incompreendidos (1959), “o filme que inventou a Nouvelle Vague”, e ninguém lembra mais do filme que fez no ano seguinte, um policial noir baseado em David Goodis, Atirem no Pianista. Truffaut conseguiu – como tantos – fazer filmes numerosos e superiores ao seu primeiro, mas porque era um cinemeiro, vivia do e para o cinema, tinha muito talento, queimou tudo quanto tinha para queimar, morreu com 52 anos.


(François Truffaut)


Talvez o menor impacto que teve a obra de Eric Rohmer o tenha ajudado a ser ele mesmo e produzir dezenas de filmes simples, discretos, feitos sem alarde e assistidos com silenciosa simpatia por um público pequeno mas até hoje fiel.



(Eric Rohmer)


Na literatura, que é um ofício mais solitário, vejo muitos casos em que um primeiro romance, mesmo com as limitações naturais de uma obra de estréia, reflete a pessoa e o mundo do seu autor. Quando há um grande sucesso, acontece às vezes que quem escreve os livros seguintes não é o mais o autor que escreveu o primeiro, e sim o autor que ele imagina ser depois de ter lido tudo que se escreveu sobre ele.
 
Como tudo na vida, esse excesso de auto-consciência pode ajudar e pode atrapalhar. Nem todo mundo administra o sucesso com mão firme. Para os mais extrovertidos, o anonimato é um peso insuportável e a fama é o voo libertador. E quem pode dizer que estão errados? Outros, no entanto, trocariam boa parte da badalação pública pelo direito de escrever sem prestar contas a ninguém, sem ter por cima do ombro um grupo de críticos prontos a sentar-lhe a chibata ou a chamá-lo de gênio por dá cá aquela palha.
 
 
 






2 comentários:

Anônimo disse...

O escritor é um bicho solitário que escreve, só isso. Qualquer expectativa além da necessidade de escrever não faz sentido. Falo do verdadeiro escritor, e não do caçador de fama. Aos jovens que sofrem com o anonimato (coisa compreensível nessa sociedade doente movida por grana e aparências), uma dica: além de escrever, saia da zona de conforto. Envelheça, ame, sofra, erre, trabalhe duro em coisas sem qualquer relação com a literatura, mire bem no olho da morte e do esquecimento, que é o destino de todos nós. Roa o osso da vida até não sobrar nada. Até perceber que a fama é uma quimera inútil. Aí sim, sua escrita vai brotar com força.

Braulio Tavares disse...

Anônimo, vi uma palestra de meu amigo Rubens Figueiredo, onde lhe perguntaram se ser professor e tradutor (como é o caso dele) ajuda a literatura. Ele disse que a profissão-paralela ideal para um escritor seria algo como taxista, enfermeiro, técnico da Net, etc.: algo que o obrigasse a sair de dentro do seu gabinete cheio de livros e de citações, e o forçasse a passar o dia relacionando-se com numerosas pessoas desconhecidas, de diferentes idades, classes sociais, visões do mundo, etc., e num contato destinado a resolverem juntos um problema de ordem prática.