Esta música ficou conhecida por caminhos meio tortuosos,
até porque não surgiu com a intenção de “ser uma música”, nem de ser gravada.
Dentro do ambiente dos cantadores de viola e dos
“apologistas” (os “defensores” da cantoria) é comum o habito de dar motes aos
cantadores para que eles desenvolvam versos. O mote pode ter muitas formas. Vou
explicar a forma usada nesta música, que é a do mote de dois versos
decassílabos.
A estrofe de dez versos usada pelos cantadores de viola
nordestinos é uma estrofe típica da poesia barroca da península ibérica, muito
usada em Portugal e na Espanha, e trazida para cá pelos colonizadores. Uma
prova disso é que em toda a América Latina a mesma estrofe é usada. Já a
encontrei na poesia popular e nas canções da Argentina, Chile, Uruguai, Peru,
Cuba e por aí afora.
Essa estrofe, chamada de décima, tem este formato, com as letras indicando a posição
obrigatória das rimas:
1....................................A
2....................................B
3....................................B
4....................................A
5....................................A
6....................................C
7....................................C
8....................................D
9....................................D
10..................................C
Ou seja: cada estrofe desse tipo utiliza quatro rimas
diferentes, uma nas linhas 1, 4 e 5, outra nas linhas 2 e 3, outra nas linhas
6, 7 e 10, e outra nas linhas 8 e 9.
O violeiro não tem apenas que improvisar os versos: ele
tem que improvisar colocando as rimas exatamente nessa posição, porque se ele
estiver cantando no sertão pode ter certeza que mais da metade da platéia
conhece isso e vai perceber toda vez que ele errar. É como Ginástica Olímpica.
Errou, perde ponto. (Simbolicamente, é claro – na cantoria ninguém conta
ponto.)
Já com relação ao aspecto de métrica, o Nordeste
Independente é uma letra feita em decassílabos, versos de 10 sílabas, que nesse
estilo tem uma acentuação mais forte na 3ª., na 6ª, e na 10ª. sílabas.
I-ma-GI-no-Bra-SIL-ser-di-vi-Di(do)
Eo-nor-DES-te-fi-CAR-in-de-pen-DEN(te)
Coloquei em negrito as sílabas com acentuação mais forte.
A última sílaba, que coloquei entre parênteses, não é contada por ser (no caso)
uma sílaba átona – só se conta até a última sílaba tônica, que no exemplo acima
são respectivamente DI e DEN.
Complicado? Sim, é uma estrofe que vem sendo elaborada e
praticada há seculos. Difícil de fazer, ou até mesmo de compreender? Sem
dúvida. Como diz Zé Ramalho, “se fosse perto, todo mundo ia”.
O mote é quando a gente sugere ao cantador
a última ou as 2 últimas linhas do verso, para que ele improvise o resto. É uma
tradição, um hábito, um desafio.
Você está bebendo num bar às 4 da manhã e o garçom se
aproxima querendo fechar. A mesa está cheia de cantadores. Aí você diz:
Seu garçom, por favor, mais uma Brahma
que eu só saio depois do sol nascer!
Esse é o mote. Seriam as linhas 9 e 10 da estrofe, e aí
todo mundo se assanha, cada um querendo fazer o verso mais “tampa”. Faz parte
da cultura.
Em 1980, no Bar de Seu Manu (atualmente Bar de Genival),
em Campina Grande, eu estava com alguns cantadores, e Ivanildo Vila Nova se
queixava das discriminações contra os nordestinos, narrando algum episódio
recente. No fim desabafou:
– Era melhor separar logo os dois, em dois países
diferentes.
E eu disse:
– Pois vou lhe dar o mote: Imagine o Brasil ser dividido / e o Nordeste ficar independente.
Todo mundo achou graça. Ele estava de saída, mas decorou.
No outro dia, trouxe algumas estrofes rabiscadas no papel. (Porque esses motes
não são apenas para glosar de improviso. Se você gostar do mote, leva pra casa,
e escreve. É como eu faço.)
Ele produziu várias glosas, eu escrevi outras, e um dia
Elba Ramalho me viu cantando numa mesa de bar e decidiu gravar. Foi um grande
sucesso no show Coração Brasileiro,
no Canecão, em 1983 (quando eu já estava morando no Rio), e foi gravado ao vivo
e incluído no disco seguinte dela, Do Jeito
Que a Gente Gosta (1984).
Por que eu disse acima que “não é uma canção”?
Uma canção é uma coisa mais ou menos redonda, pronta,
fechada. Depois de feita e gravada, ninguém mexe mais. (Há muitas exceções, é
claro.)
Mas quando a gente dá um mote assim, o mote começa a
circular. Outras pessoas começam a fazer glosas. Eu mesmo, quando vejo um mote
bonito, decoro e quando chego em casa tento escrever algumas glosas. E é de
bom-tom, de boa educação, citar sempre que possível o autor do mote. Embora
muitos deles a gente não consiga rastrear de quem é.
Tem motes maus de 40 anos atrás que eu vejo hoje sendo
sugeridos aos cantadores, eu estou na platéia, e ninguém sabe que o mote é meu.
Não tem problema. Cultura oral. O poeta passa e o verso fica.
Depois da gravação de Elba Ramalho, Ivanildo lançou um
disco com Severino Feitosa, onde gravou as estrofes dele. Porque eram muitas.
Na época do show de Elba, eu mostrei para ela umas 20 estrofes diferentes e ela
gravou 6. No disco dela, as primeiras 4 são de Ivanildo, e são minhas as duas
últimas.
Depois disso, Ivanildo produziu muitas outras estrofes, e
eu também.
Aqui, versos só de Ivanildo, gravados em dupla com o grande Severino Feitosa:
https://www.youtube.com/watch?v=CvMAJnwF16s
São minhas por exemplo, estas outras, que ninguém gravou:
Se São Paulo é a tal locomotiva
que carrega estes mais de 100 milhões
então deixe pra trás estes vagões
que lhe tornam a carga cansativa.
Eles vão ter a iniciativa:
ser puxados por boi, cavalo e gente
talvez andem bastante lentamente
mas seu rumo é seguro e conhecido;
imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
Todo ano no Rio de Janeiro
chegam levas e levas de migrantes
são milhares de braços retirantes
que fabricam montanhas de dinheiro;
pois que o Rio prossiga em seu roteiro
e o Nordeste não seja um afluente
que conduz mil riquezas na torrente
e nem mesmo no mapa é conhecido;
imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
Se houver essa tal separação
através de um acordo ou um tratado
o Brasil se verá desobrigado
de amparar esta imensa região;
e o Nordeste será uma nação
mais vistosa, mais rica e mais contente,
sem ninguém que lhe humilhe e lhe sustente,
sem um pai, um patrão ou um marido;
imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
A música foi proibida pela Censura Federal (era o último
ano da ditadura militar) por “pregar o separatismo”. E muita gente no próprio
Nordeste adotou essa perspectiva: “Vamos separar!”.
Quando pedem a minha opinião sobre o assunto, digo sempre
que a simples separação não adiantaria de nada se o Nordeste continuasse sendo
o paraíso de desigualdade social que é ainda hoje. Se separarem, comecem
fazendo uma Reforma Agrária rigorosa, taxando as grandes fortunas, moralizando
a administração pública etc. Se não, continuarão iguais ao Brasil.
Acho possível que isso aconteça? Não. Essa canção, para
mim, é uma canção meio de ficção científica, na base do “What if...” perguntando: “E se... (tal e tal coisa acontecesse,
como seria?)”.
E atentem para o mote. Imagine o Brasil ser dividido.
Imagine there’s no heaven. É um sonho hippie, impossível como tantos,
necessário como todos.
Letra (gravação de
Elba Ramalho):
Versos de
Ivanildo Vila Nova:
1
Já que existe
no Sul este conceito
que o Nordeste
é ruim, seco e ingrato
já que existe a
separação de fato
é preciso
torná-la de direito.
Quando um dia
qualquer isto for feito
todos dois vão
lucrar imensamente
começando uma
vida diferente
da que a gente
até hoje tem vivido.
Imagine o
Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
2
Dividindo a
partir de Salvador
o Nordeste seria
outro país
vigoroso, leal,
rico e feliz
sem dever a
ninguém no exterior.
Jangadeiro
seria o senador
o
cassaco-de-roça era o suplente
cantador de
viola o presidente
e o vaqueiro
era o líder do partido.
Imagine o
Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
3
Em Recife o
Distrito Industrial
o idioma ia ser
Nordestinense
a bandeira de
renda cearense
“Asa Branca”
era o hino nacional
o folheto era o
símbolo oficial
a moeda, o
tostão de antigamente
Conselheiro
seria o Inconfidente
Lampião o herói
inesquecido.
Imagine o
Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
4
O Brasil ia ter
de importar
do Nordeste:
algodão, cana, caju,
carnaúba,
laranja, babaçu,
abacaxi e o sal
de cozinhar.
O arroz e o
agave do lugar
a cebola, o petróleo,
o aguardente:
o Nordeste é
auto-suficiente
e seu lucro
seria garantido...
Imagine o
Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
(Versos de
Braulio Tavares:)
5
Se isso aí se
tornar realidade
e alguém do Brasil nos visitar
neste nosso país vai encontrar
confiança, respeito e amizade;
tem o pão repartido na metade
tem o prato na mesa, a cama quente:
brasileiro será irmão da gente
venha cá, que será bem recebido...
Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.
6
Eu não quero
com isso que vocês
imaginem que eu tento ser grosseiro
pois se lembrem que o povo brasileiro
é amigo do povo português.
Se um dia a separação se fez
todos dois se respeitam no presente
se isso aí já deu certo antigamente
nesse exemplo concreto e conhecido,
imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.