Proposta Inicial: “Toda palavra é uma mensagem que pode
ser decifrada, mesmo não tendo sido cifrada antes por ninguém.”
"Decifrar" pode ser também inventar uma intencionalidade a-posteriori. Não é a “descoberta”, e sim a invenção de significados. Decifrar não é apenas encontrar o que estava escondido, é criar o que não existia antes.
Uma caixa vazia e fechada, que a gente abre e no momento
em que ela é aberta se enche de coisas.
Há muitos anos, na Bahia, tomei uma noitada de cerveja
com o cineasta Miguel Borges, que divertiu todo mundo na mesa com
interpretações onomástico-numerológicas do nome de cada um. Ele pegava cada
nome, explicava (inventava) um significado, uma mensagem. A pessoa morria de
rir vendo o truque, mas concordava que tinha tudo a ver com ela.
Sim, era o mesmo Miguel Borges que dirigiu As Escandalosas e O Enterro da Cafetina – ele também foi editor da “revista mística” Ano Zero e tinha uma certa propensão ao
Realismo Fantástico.
(Infelizmente, as testemunhas da veracidade do que estou
dizendo, Guido Araújo, Pedro Camargo, estão a esta altura debruçados numa
varanda lááá de cima, me cochichando: “Não se preocupe, vai em frente, faz de
conta que está inventando mesmo.”)
A palavra “exu”, por exemplo, que neste amanhecer
sonolento se depara comigo numa página (a página de abertura) do livro novo de
Luiz Antonio Simas, O Corpo Encantado das
Ruas. Essa palavra contém o quê?
Ela contém um E, um X e um U.
É a palavra “EU”, só que no centro dela, cravado nela,
dividindo-a, está um X, uma incógnita, o símbolo do desconhecido (uma
quantidade que não sabemos qual seja) e do arbitrário (uma quantidade que nos
permite decidir: “é tanto”).
No centro do Eu, dois machados cruzados, duas lanças,
duas espadas, simbolizando o conflito, mas não apenas o conflito negativo (a
guerra, a destruição), mas o conflito gerador, o cruzamento entre o macho e a
fêmea gerando vida, o cruzamento entre duas lascas de pedra gerando fogo.
Esse X é uma encruzilhada no centro do Eu, assim como
existe um grão de areia no centro da ostra. É em redor desse conflito incômodo
que camadas sucessivas de luz começam a se sobrepor e a se irradiar.
O Exu (diz Simas) é “o mensageiro entre o visível e o
invisível”. É o equivalente ao Hermes grego e o Mercúrio romano. (Essa analogia
é por minha conta e risco.) Não é uma pessoa, é um portal que pensa, um portal
ambulante com intencionalidade e algo de emoções humanas. Uma passagem e ao
mesmo tempo um passageiro.
Como todo mundo sabe, o símbolo da cruz é visto por
alguns como o instrumento de suplício em que Jesus Cristo foi sacrificado. E é
visto por outros como a Cruz de Descartes, o eixo das abscissas e ordenadas, do
X e do Y, do visível e do invisível.
O X e a cruz são o mesmo símbolo, em diferentes momentos
de sua rotação. São o contato com o Incógnito, o Desconhecido, o Mistério
Inefável.
Exu não é o diabo cristão, como muita gente insiste em
vê-lo. O Diabo cristão é por um lado uma personificação (uma antropomorfização)
do Mal, um Mal que de fato existe no mundo físico-espiritual. Mas no varejo ele
acaba sendo o personagem preferido das correntes puritanas e repressoras, como um elemento
contaminador que serve para envenenar tudo que torna a vida mais intensa e por
isso causa medo. O sexo é coisa do Diabo, o riso é coisa do Diabo, a festa é
coisa do Diabo, o prazer é coisa do Diabo, a comida saborosa é coisa do Diabo,
a bebida é coisa do Diabo...
Essas coisas não são do Diabo, não são do Mal: são do
Exu, são dessa contradição cravada em nós – a contradição entre o físico e o
espiritual, duas forças que nos puxam em direções opostas e nos dilaceram, mas
nesse puxar e dilacerar geram a energia que nos move.
Não podemos existir só no físico – nem só no espiritual.
Temos que existir neste ponto onde os dois se encruzam, neste X. Neste
cabo-de-guerra onde essas duas energias se enfrentam, como numa queda-de-braço
onde centímetros de vantagem se alternam mas um é sempre incapaz de derrubar de
vez o outro.
Na adolescência eu olhava fascinado um livro que me foi
muito importante, e que não reli desde então: Sexus de Henry Miller. E eu via o Exu dentro desse título. O sexo
(cujo mundo eu estava adentrando pé ante pé, virginiano que sou) tinha cravado
dentro de si esse diabrete irrequieto com o pau duro de fora, e quando eu
prestava atenção via que o diabrete era eu.
Era o trupizupezinho que reencontrei anos depois numa
xilogravura e usei como carimbo dos meus folhetos e livros de poemas. Um
diabinho do bem, de asas, mas olhando de soslaio as coxas das
moças. Um diabinho que dança. “Só posso acreditar num diabo que seja capaz de
dançar”.
SEXUS é uma palavra que tem EXU no centro e dois S nas
extremidades. Por que um S? O que diz essa letra? Quem dá a resposta é a
sextilha famosa de Pinto do Monteiro:
Eu só comparo esta vida
à curva da letra S:
tem uma ponta que sobe
tem outra ponta que desce
e a volta que dá no meio
nem todo mundo conhece.
A Vida nas duas extremidades. O Eu dentro dela. E no
centro do Eu esse X mercurial, instável, desequilibrante, arlequinal, ora rude
ora terno, ora violento ora apaixonado, com duas correntes de energia que se
cruzam e se reforçam uma à outra.
Não estou “viajando”, aliás são 10:55 da manhã e tudo que
tomei foi meia garrafa de café, com um sanduíche de queijo. “Sexus” era uma
palavra onde se cifrava esse sentido da vida como algo que tem no seu centro
uma encruzilhada, o lugar das oferendas (a oferenda é o nosso corpo, que
deixamos aqui para que o espírito possa subir – segundo a crença de muitos).
A prova de que não estou delirando é que o próprio Henry
Miller sub-titulou aquela sua trilogia como “A Crucificação Encarnada”, “The
Rosy Crucifixion”. Uma dessas expressões onde a forma traduzida é superior à
original, porque “encarnado” não significa apenas “cor de rosa, avermelhado”,
mas “transformado em carne”.
Assim diz, na página de abertura do seu livro,
compartilhada em foto nas redes sociais, o autor Luiz Antonio Simas:
A ruas são de Exu em dias de festa e de feira, dos malandros e
pombagiras quando os homens e mulheres vadeiam e dos Ibêjis quando as crianças
brincam.
Tudo começa com o ipadê, o padê de Exu, a cerimônia propiciatória com
farofa de dendê, cachaça (oti) e
cantos rituais, para que Exu traga bom axé para as festas nos terreiros, cumpra
seu papel de mensageiro entre o visível e o invisível, chame os orixás e não
desarticule, com suas estripulias fundadoras da vida, os ritos da roda, aqueles
em que os deuses dançam pelo corpo das iaôs (as filhas de santo). O padê de Exu
também pode ser colocado na encruzilhada, lugar em que as ruas se encontram e
os corpos da cidade circulam.
A encruzilhada é a crossroads
onde se diz que os cantores de blues como Robert Johnson “fizeram um pacto com
o Mal para aprender a tocar”. O que é uma falácia, uma calúnia. Nas
encruzilhadas o único pacto possível é com o fluxo, o trânsito, a passagem, a
travessia. A encruzilhada representa (entre outras coisas) o lugar onde o Bem e
o Mal se cruzam, se tocam, se contaminam: a Vida.
E quem tem jurisdição sobre a encruzilhada é esse
trickster, esse diabrete, esse anjinho da cara suja, esse palhacinho
exuberante, exultante, exumado do fundo da terra e que ao ser trazido de volta
à luz está eternamente vivo, transgressor, desarrumando o arrumado, viramundo virado, fechando
um caminho aqui, abrindo outro acolá, ponto de energia ora em corrente
alternada, ora em corrente contínua, cravado no centro do Eu do mundo.
3 comentários:
Massa!
TEXTO FOOODAAAAAAA!
Exu me contaminou ...
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