Eu tenho uma fascinação inexplicável por textos literários contínuos. Textos não interrompidos por nenhum ponto, nenhum corte, nenhuma pausa. Como o famoso “monólogo de Molly Bloom” que constitui o último capítulo do Ulisses de James Joyce.
Foi onde tomei conhecimento de que uma façanha assim não apenas era factível, mas podia resultar, como resultou, num texto fervilhante de sentidos e de uma estranha beleza. (E basta isto para cancelar o “inexplicável” que coloquei no começo.)
Um texto com pontuação normal, como este aqui, equivale a
andar a pé: é uma série confortável de impulsos e repousos. É diferente com um
texto onde a pontuação se limita praticamente à vírgula, este sinal que
proporciona apenas um segundinho para respirar, e também a travessões – tão
necessários quando precisamos enxertar um período qualquer bem no miolo de um
período mais longo que fica, por assim dizer, parado, à espera de que essa
melodiazinha noutro tom se encerre e a lenga-lenga retorne ao tom normal – e
quem sabe também ao uso de parênteses (os quais, aqui pra nós, eu já acho um
pouco de jogo sujo, porque tudo que estiver dentro dos limites dessas
meias-luas mágicas está pra todos os efeitos num outro plano da existência e do
discurso, o que muitas vezes chega a produzir exageros e excentricidades, como
a famosa história, tão repetida no folclore oral da literatura escrita, do
sujeito que abriu um parêntese num livro e só se lembrou de fechá-lo no romance
seguinte).
Textos assim parecem o alçar-voo de uma criatura que a partir
do instante em que se desprende do chão passa a contar somente com seus
próprios esforços para não se precipitar nele de volta com todo seu peso e momentum.
Ler esses monólogos
incessantes me lembra o esforço daqueles craques do basquetebol que quando se
elevam do chão rumo a uma “enterrada” consagradora pedalam com as pernas no ar,
como se isso fosse capaz de mantê-los em pleno voo, tal qual um colibri ou Dadá
Maravilha, que em matéria de impulsão e planadura nada devia a Michael Jordan
ou Shaquille O’Neal.
Isso me vem à mente quando leio que um dos concorrentes
ao Booker Prize (um dos principais prêmios literários da língua inglesa) deste
ano é o romance Ducks, Newburyport,
de Lucy Ellmann – um romance feito de uma única frase que se estende por mais
de 1.000 páginas.
Pelo que descreve a imprensa, “trata-se do monólogo
interior de uma dona-de-casa de Ohio, que está ruminando sobre todo tipo de
coisa, desde o cardápio de um jantar para amigos até o lado mais tenebroso da
América de Donald Trump”.
Alguém se deu o penoso trabalho de contar quantas
palavras tem o texto. (É simples: no meu teclado, é Shift + Ctrl + G.) Parece
ser algo em torno de 426.100 palavras, e nem vou falar que se trata de um
recorde, porque coisas mais ambiciosas do que isso já devem ter visto o laser das impressoras.
Textos desse tipo têm mais liberdade do que se imagina, e
isso depende apenas da habilidade do(a) autor(a).
Eu posso começar um romance, por exemplo, contando o
problema que tive hoje de manhã, quando recebi inesperadamente um telefonema
internacional, de um número desconhecido com código da China, onde com alguma
dificuldade uma voz que se exprimia num português claudicante perguntava por um
tal de Brouláiol que não imagino quem seja, mas logo conseguimos nos entender,
em parte porque o interlocutor de sotaque oriental foi logo substituído por uma
voz feminina e impaciente, de inconfundível acento mineiro, explicando com
eficiência secretarial que eu estava sendo convidado para ministrar uma oficina
de Literatura de Cordel naquele país do Oriente, o que por um lado me
surpreendeu, mas por outro nem tanto, haja visto que os portugueses que tanto
ejacularam seu DNA na América do Sul também rumaram a Catai e outras portas do
fim do mundo, não é à toa que o Macau deles não difere muito do Macau do Rio
Grande do Norte, a não ser por características geofísicas e geopolíticas que
seriam de se esperar, mas afinal de contas somos todos iguais, somos todos bípedes
implumes e caniços pensantes, como nos assevera a História da Filosofia, todos
dotados do mesmo sistema operacional básico que permitiria a qualquer um
acompanhar sem muito esforço esta xaropada que aqui estou enfileirando com o
propósito único, que talvez realize agora, de mostrar como em textos desse tipo
o que importa é produzir uma sucessão de fragmentos que alguém possa entender sem
fazer muito esforço, porque os leitores, em sua imensa e democrática maioria,
se satisfazem com pequenos triunfos e, vamos e venhamos, não estão nem aí para
o que os teóricos chamam The Big Picture, assim como as pessoas que mastigam
jujubas se satisfazem com essas façanhas rudimentares de eficiência mecânica e
com os miúdos orgasmos da glicose, e não estão nem aí, repito, para os índices
de absorção de nutrientes – o que faz com que esta sucessão de fragmentos
aparentemente inteligíveis aja em benefício do leitor, que a cada pousada-de-pé
encontra um chãozinho semântico onde se apoiar e um vetor sintático que o
conduz na direção do próximo passo, razão pela qual não é difícil a um escriba
calejado em redações e Olivettis chamar-lhe a atenção para o fato de que a
glicose e o açúcar das jujubas não difere muito, em termos químicos e
sociológicos, do sal que os nossos irmãos norte-riograndenses extraem com
desmedido e mal-pago labor, unindo dessa forma duas pontas improváveis de um
colar textual no qual podemos enxergar algo como um enorme fio onde contas da
mais variada natureza, formato e cor podem ser enfiadas uma atrás da outra, o
importante é que o fio não se parta, e seja possível estendê-lo quase que
indefinidamente, mesmo tendo que elevar a voz para abafar os irritados
protestos da mineirinha pragmática do outro lado do outro fio, que insiste em
saber se está falando com a pessoa certa, insiste em saber se eu sou eu mesmo
(como se fosse necessária outra prova além desta catadupa estilística com que a
estou banhando e enxaguando), insiste em saber se estou de brincadeira, insiste
em saber o que andei fumando, e logo se despede com um tunco e uma rabissaca e
um seco recado mandando-me “passar bem”.
É meio assim que conseguem se virar certas cobras-criadas
como David Foster Wallace e James Joyce. Não duvido que nossa amiga Lucy
Ellmann (que, vejam só, tem o sobrenome de um dos biógrafos do bardo-ribaldo
irlandês!) seja capaz de estender-se confortavelmente ao longo de um lençol de
mil páginas. Garante o resenhador do Quartzy,
onde colhi estes dados, que a certa altura do romance o fluxo-de-consciência da
narradora principal se alterna com o ponto de vista de uma leoa-da-montanha, o
que por si só já elimina qualquer chance de monotonia.
Os finalistas do Booker Prize serão anunciados em 3 de
setembro, e o nome do vencedor será dado a público em 14 de outubro.
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