Arthur Laurents, o roteirista de Festim Diabólico (“Rope”, 1948), queixava-se de que o assassinato cometido na primeira cena do filme não foi idéia dele, e sim do diretor Alfred Hitchcock.
Para quem não viu o filme: é uma história que transcorre
inteiramente (em tempo real) no interior de um apartamento, durante um jantar
oferecido por dois rapazes a um grupo de amigos. Antes do jantar, eles
assassinam outro amigo, David, e colocam o corpo num enorme baú, cobrem-no com
uma toalha, e colocam sobre eles os pratos da refeição.
O suspense do filme é sabermos que o rapaz está morto e
bastaria levantar a tampa do baú para descobri-lo. E quem comparece ao jantar
são o pai e uma tia do rapaz assassinado, a noiva dele, outros amigos etc.
Laurents dizia que seu roteiro não incluía a cena do
assassinato. Viam-se apenas os dois assassinos comentando o fato entre si, mas
não tínhamos certeza de que um crime havia de fato sido cometido. Para ele o
suspense estaria na questão: “Existe mesmo, ou não, um cadáver dentro desse
baú?”
A partir do momento em que Hitchcock mostra o crime
acontecendo, o público entende que houve mesmo uma morte, e que os assassinos
serão punidos.
Essa diferença de concepções entre o roteirista e o
diretor pode ser ilustrada com um exemplo famoso que Hitchcock deu em várias
entrevistas. Dizia ele que é sempre bom informar o público com clareza. Suponhamos
um restaurante. Alguém entra, coloca uma bomba-relógio ligada embaixo da mesa,
e some. Dois homens sentam na mesa e começam a conversar. Se não soubéssemos
que existe uma bomba ali, a cena não teria suspense nenhum.
Neste sentido, eu diria que em termos de “mistério”
(aquele elemento não-explicado que se torna o centro dramático muitos filmes e
livros) Hitchcock tinha uma posição conservadora: “o público tem que ser
informado de forma cabal e inconfundível”. E Laurents tem uma posição mais
moderna: “um excesso de certeza prejudica o mistério; é bom que o público não
saiba ao certo o que aconteceu”.
Muitos filmes posteriores a Festim Diabólico se baseiam num crime, ou desaparecimento, que
nunca fica bem explicado.
O cadáver fotografado involuntariamente num parque (Blow-Up, Antonioni); um homem amnésico
que investiga a morte da esposa (Amnésia,
de Christopher Nolan); a moça que some durante um passeio de barco a uma ilha
minúscula (A Aventura, Antonioni); o
imigrante que vai morar num apartamento cuja inquilina anterior pulou da
janela, e que começa a imaginar que está se transformando nela (O Inquilino, Roman Polanski); são
inúmeros os exemplos.
(O Inquilino, Polanski)
Arthur Laurents
defendia a tese de que a mente do espectador deve ficar trabalhando o
tempo todo com duas suposições igualmente plausíveis, e (complemento eu) seria
até mais interessante se depois do filme nenhuma delas fosse confirmada.
Toda esta discussão acaba sendo conduzida numa direção
que me parece conter um erro: “Qual é a técnica certa? Qual é a melhor técnica
– revelar, ou não revelar?”.
É uma preocupação constante nos aspirantes a escritor ou
aspirantes a roteirista. Porque na mentalidade de estudante vigora uma
impressão de que existe “a maneira certa” de fazer as coisas, e um milhão de
maneiras erradas. Infelizmente, é esse o tipo de raciocínio que nosso sistema
educacional impõe no juízo das pessoas.
Uma obra de arte, e mesmo uma obra de entretenimento,
propõe uma experiência. Você vai entrar num cinema, a luz vai se apagar, e
durante duas horas alguma coisa vai acontecer ali na tela. Claro que existe uma
expectativa prévia, e o resultado da experiência depende muito da expectativa.
Se eu entro no cinema pensando que vou assistir algo na
linha de “Homem Aranha” e o filme é algo na linha de “Loucademia de Polícia”,
talvez eu saia decepcionado. E vice-versa.
Se eu entro no cinema pensando que vou assistir algo na
linha de “Metropolis” de Fritz Lang e o filme é algo na linha de “Os
Incompreendidos” de François Truffaut, talvez eu saia decepcionado. E
vice-versa.
Propositalmente comparei dois “filmes de entretenimento”,
e depois dois “filmes de arte”, porque não se trata de opor um tipo de filme a
outro. Eu gosto dos quatro filmes citados, cada um ao meu modo.
E – voltando ao tema principal – gosto de filmes que
deixam uma sensação de história incompleta, de história que não ficou muito
clara, com coisas que não foram explicadas, que não se encaixam. E gosto de
filmes bem amarradinhos, onde tudo se esclarece, principalmente se for filme
policial no estilo “whodunit”.
O que nos conduz de novo a Alfred Hitchcock. O diretor
disse, repetidamente, ao longo da vida inteira, que não gostava de filmes
policiais nesse estilo. Numerosas vezes os produtores lhe propuseram que
filmasse um romance de Agatha Christie ou de outros autores clássicos, e ele se
recusava. Seu interesse nunca foi o de mostrar uma investigação policial, mas
de investigar aquilo que a divulgação dos filmes chama “os recessos obscuros da
alma humana”.
(Rebecca, Hitchcock)
Hitchcock nunca se interessou por Agatha Christie; em
compensação, adaptou três obras de Daphne du Maurier (Jamaica Inn, 1939; Rebecca,
1940 e The Birds, 1963). Uma
escritora que pendia para o gótico, o soturno.
Dos clássicos do romance
policial, ele adaptou Cornell Woolrich (Janela
Indiscreta, 1954) e Patricia Highsmith (Pacto
Sinistro, 1951), ambos mais próximos do roman
noir de crime, alucinação e tensão do que da novela detetivesca de
raciocínio.
Isso de certa forma me deixou surpreendido ao ver os
extras do DVD de Festim Diabólico e
acompanhar a entrevista de Artur Laurents. O roteirista preferia mostrar um
jantar onde dois indivíduos, quando a sós, comentam o assassinato que acabaram
de cometer, e cujo cadáver está ali, escondido, no meio da sala cheia de gente.
Será verdade? Será um jogo sádico de gabolice dos dois?
Ao mostrar o assassinato, Hitchcock conseguiu um dos seus
famosos planos de “choque”: poucos filmes têm como primeira imagem um homem
sendo estrangulado por dois outros. Daí por diante, ele cancela totalmente a
ambiguidade proposta no roteiro inicial, e o filme se transforma em suspense
puro, porque já sabemos quem são os culpados.
E no fim das contas, o filme não é um “whodunit” (”quem
praticou o crime?”) e sim um “whydunit”: por que o crime foi cometido? Este é o
grande tema de Festim Diabólico.
Um comentário:
Acho que se mexer um pouco na montagem dá pra fazer o filme que Laurents queria rs. Mas sim, o whydunit do filme é que impressiona. Posso estar lendo demais mas, considerando o pouco tempo do término da II GM, o público precisava aprender a se precaver com ideias semelhantes expressas pelos assassinos - como vemos, elas continuam em voga.
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