Ursula K. Le Guin surgiu na ficção científica norte-americana na década de 1960, com um impacto considerável tanto na FC quanto na Fantasia. Ao contrário de gerações inteiras de autores cuja escola literária foi a pulp fiction dos anos 1940-50, ela vinha de um ambiente acadêmico: seu pai era um antropólogo de renome, a mãe era escritora, o marido era professor de História.
Em
seus numerosos ensaios (p. ex.: The
Language of the Night, ed. Susan Wood, Berkley, 1979; Dancing at the Edge of the World, Grove Press, 1989) ela
reconstitui seu aprendizado do gênero, sempre enfatizando que o que de início a
afastou da FC foi o fato de até uma certa época enxergar no gênero, superficialmente,
apenas uma literatura acintosamente masculina e bélica.
Indo
de encontro aos manuais-de-roteiro de hoje, para quem todo enredo se baseia em
conflito, ela dizia:
Afirmar que a Narrativa depende a esse ponto do conflito
é afirmar o Darwinismo Social em toda sua glória, desconfio eu com tristeza. A
existência como uma luta, a vida como uma batalha, tudo sendo visto em termos
de vitória e derrota: Homem vs Natureza, Homem vs Mulher, Negro vs Branco, Bem
vs Mal, Deus vs Diabo – uma espécie de visão apartheid da existência, e
da literatura. Que lamentável empobrecimento da complexidade de ambas!
(Dancing,
p. 190)
Ursula
se opunha a essa “visão gladiatorial da ficção” e trouxe para sua literatura um
enfoque de maior complexidade e sutileza. Não que ela negue a existência de
polaridades, mas sua visão é imbuída da polaridade do Taoísmo, o Yin e o Yang,
em que cada polo traz em si a semente do polo oposto.
Recomendo, aliás, sua tradução do Tao Te King de Lao Tsé (Tao Te Ching, a Book about the Way and the
Power of the Way, Shambhala, Boston, 1998.)
Sua
literatura mostra a presença permanente de uma consciência pensante, uma
lucidez serena e equilibrada que governa a construção dos enredos, a dinâmica
dos entrechoques entre os personagens. A ponto de Peter Nicholls, na primeira
edição da Encyclopedia of Science Fiction
(Granada, Londres, 1978), afirmar:
Talvez UKLG tenha sido excessivamente elogiada;
ainda é cedo para dizer que ela é a maior escritora de FC, como alguns
críticos, pelo menos, parecem admitir. (...) Se existe uma fraqueza em sua obra
é uma fraqueza paradoxal, uma espécie de certeza grave e recatada que poderia,
talvez, receber com proveito o fermento de uma certa abertura para o aleatório
e o imprevisível.
(Encyclopedia, p. 347-348)
Ou
seja: na obra dela falta doidice, falta desequilíbrio, falta uma certa
gratuidade que lembre a vida real. Le Guin é uma autora clássica em vários
sentidos do termo, e na verdade foi este impacto positivo que ela trouxe para
uma literatura onde as formas tecnológicas e populares do Romantismo (o New Romance a que William Gibson viria a
aludir com Neuromancer) mandavam e
desmandavam.
Tranquila
e cortês, nem por isto Le Guin deixou de encarar com entusiasmo uma boa
polêmica – com editores, com escritores, com críticos, com os fãs. Um dos seus
ensaios mais conhecidos é “Science fiction and Mrs. Brown”, onde ela pergunta
se há lugar para personagem encorpadamente literários numa ficção tão propensa
ao rápido, ao vistoso, ao melodramático, ao meramente extraordinário.
A ficção científica se acomodou, em grande parte,
com uma lista pseudo-objetiva de maravilhas e portentos e horrores que não
iluminam nada além de si mesmos e na verdade carecem de ressonância moral: são
apenas sonhos acordados, devaneios e pesadelos. Sua inventividade é esplêndida,
mas fechada em si mesma e estéril. E a faceta mais excêntrica e pueril do fandom da FC, os grupinhos fanáticos e
desconfiados, tanto alimentam esse tipo de trivialidade quanto são alimentados
por ela, o que em si é algo inofensivo, mas contribui para degradar o gosto,
porque mantém muito baixos os critérios dos editores, e as expectativas dos
leitores e dos críticos.
(Language,
p. 108-109)
Críticas
desa natureza nunca caem bem num ambiente de oba-oba como muitas vezes se torna
o dos fã-clubes. (Em favor destes, diga-se que o fandom da FC é muito mais crítico e tem muito mais bagagem de
idéias do que outros, como o da música pop e o das estrelas de cinema.)
Embora
outras escritoras de FC sejam muito mais identificadas como uma vanguarda
feminista dentro do gênero (como Joanna Russ, “James Tiptree Jr.”, etc), Le
Guin é uma referência permanente na discussão da questões de gênero,
principalmente depois do romance A Mão
Esquerda da Escuridão (título da edição brasileira pela Ed. Aleph, de São
Paulo) onde ela imagina uma raça humana onde cada indivíduo é sexualmente
neutro a maior parte do tempo, e uma vez por mês, na época do “cio”, torna-se
ou homem ou mulher, de modo aleatório.
Quando
seu conto “Nine Lives” foi publicado em novembro de 1969 na revista Playboy, os editores lhe pediram para
abreviar seu nome para “U. K. Le Guin”, argumentando: “Muitos dos nossos
leitores têm receio de ler histórias escritas por mulheres”, e ela
irrefletidamente concordou. Disse depois:
Não pensei muito a respeito disso; diverti-me um
pouco, senti uma certa ironia, e decidi, vagamente, que já que eles pagavam tão
bem aos autores tinham direito a pequenas venetas. (...) A supressão desta
única palavra, tão significativa, foi o único caso de Censura Mercadológica
direta que já houve sobre minha obra.
(Language,
p. 209)
Mesmo
sendo tão culta, tão filosófica, Le Guin sempre foi uma escritora voltada para
o pensamento concreto, por imagens, por enredos. Sua inclinação não é para a
Teoria Literária, mas para a mitologia, a antropologia cultural, os mitos, as
lendas. Ela lembra que seus filhos cresceram lendo a edição de 1959 das Fábulas Italianas de Ítalo Calvino.
O
romance The Left Hand of Darkness,
diz ela, nasceu de uma imagem:
Eram figuras pequenas, distantes, numa paisagem
tremendamente deserta de gelo e de neve. Estavam puxando um trenó ou coisa
parecida por cima do gelo, juntas, esforçando-se. Era tudo que eu via. Eu não
sabiam quem eram, não sabia sequer qual era o seu sexo (devo confessar que
fiquei surpresa quando descobri). Mas foi assim que meu romance teve início, e
quando penso nesse livro é ainda nessa imagem que penso. Todo o resto dele,
como todo o seu estranho re-arranjo de gênero e suas imagens de traição, solidão
e frio, é o meu esforço para alcançar essa imagem, chegar perto dela, chegar
àquele momento em que eu vi mentalmente aquelas duas pessoas na neve, isoladas
e juntas.
(Language,
p. 100-101)
Este
pensamento por imagens, comum a tantos artistas criativos, puxa de dentro do
inconsciente todos os conteúdos agarrados a essa imagem, tudo que a motivou,
tudo que a evoca. Na elaboração dos enredos, surge eventualmente uma teoria,
uma justificativa filosófica, mas não é isto que move a ficção. O que a move
são essas imagens que nos perturbam e não nos deixam em paz enquanto não
escrevemos a fábula que as comporta.
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