(ilustração: Clarividência, René Magritte)
Minha escola de tradução foi aula
vaga na faculdade, biblioteca, caderno, caneta e dicionário. (Isso se eu
descontar minhas experiências adolescentes de tradução de letras de músicas,
começando por Ray Charles e “Eu Não Posso Parar, Amando Você”).
Profissionalmente, comecei a
traduzir por volta de 1986, por indicação de Julio Ludemir. Livrinhos de bolso,
de banca-de-revista: histórias de amor, de faroeste. Alguns eram bem
ruinzinhos. Outros tinham uma certa aventura, uma confiança narrativa que
tornava suas fórmulas menos previsíveis. É bom começar a traduzir pelo material
profano, barato, pedestriano mas bom de entretenimento. Muitos querem começar pelos
autores que mais admiram, e dão com os burros nágua.
Assim, quando em 1987 recebi da
Editora Récord um livro de L. Ron Hubbard, soltei dez foguetões comemorando o
upgrade. Quando peguei um Isaac Asimov me senti os próprios deuses.
Traduzo por dinheiro, em
primeiro lugar, e por amor à arte em segundo. (Acho que essa ordem está errada.
Se o amor à arte desaparecesse eu não sei se faria, por dinheiro somente, uma
coisa tão cansativa e tão consumidora de tempo.) Em todo caso, eu ainda acho
quem me pague mais de 30 reais por lauda traduzida, e, como autor, meu sonho
era encontrar quem me pagasse o mesmo por uma lauda escrita. Não existe. Se
existisse, eu já teria publicado uns dez romances.
Isso me obriga a traduzir
somente o que posso traduzir rápido: seria ótimo poder fazer 2 a 3 mil palavras
por dia. Parei de traduzir livros durante anos, depois de 1994 porque me apareciam
trabalhos que pagavam muito melhor. Fiquei traduzindo somente alguns contos das
antologias que eu mesmo organizava. Mas era menos pela grana do que pelo gosto
de “traduzir Fulano”.
E só voltei porque agora tem
Google, tem tradutores online (mil), forums de discussão, o escambau. Hoje o
ofício é bem mais aparelhado do que há 20 anos. E ainda assim a gente erra.
Quanto menos a gente relê e revisa
mais a gente erra, e mesmo quando revisa mais, erra também.
Já vi editores reclamando ter
recebido uma tradução onde nem corretor ortográfico foi passado, nem os erros
de digitação foram corrigidos. E já entreguei originais assim, só para evitar
uma desgraça maior. É arte, mas é profissão também, é “silviço”. Nem todo dia a
gente acerta, e todo time grande tem uma tarde no Maracanã que é pra esquecer.
Cada um tem seu método, sua
linha de montagem de-um-homem-só. Pense Carlitos apertando parafusos em Tempos Modernos. O arquivo final é
enviado para a editora com a rubrica VALE ESTE e na mesma noite é enviado outro
com a rubrica VALE ESTE 1.
Ninguém pense que depois de digitada
a palavra FIM o trabalho acabou. O suposto fim é o fim da primeira volta no
circuito. É o recomeço, o eterno retorno. Aquela frase problemática deixada
para trás há quatro meses começa a reaparecer no horizonte.
Volto ao começo, e vou saltando ponto-a-ponto
para resolver as dúvidas, uniformizar termos, escolher entre opções, fazer cair
cada ficha.
O primeiro rascunho é um matagal
de [dúvidas???], de [alternativa 1 / altern. 2 / alt. 3], que na primeira
passada vão sendo deixadas para trás pra resolver depois, porque o importante
no momento é não perder o ritmo.
Ritmo de prosa, principalmente
prosa de ficção, romance de gêneros populares bem escritos, é muito difícil de
readquirir depois, fazendo revisão salteada, um ponto aqui, outro ali. Ritmo,
ou é na hora em que a frase está passando, ou nada.
Depois, volta-se ao começo.
Guarda-se o livro original, e se revisa frase a frase o livro todo, considerado
agora como um texto que vai falar só por si. É nessa fase que se dá o polimento
final no ritmo e na melodia.
Ganha-se algum dinheiro. E
alguma luz com isso.
Há alguns romances que prefiro não
ler logo. Prefiro traduzir à medida que vou lendo, no ritmo da narrativa,
traduzindo um parágrafo sem saber ainda o que há no parágrafo seguinte. Vou passando
por cima das palavras que não entendo, nome de planta, nome de roupa, detalhe,
deixo o original [entre colchetes] e sigo, para não perder o ritmo da narrativa.
Resolvo na revisão.
Outros livros requerem leitura
prévia, pra não se perder. No meu caso, ficção científica. A maioria dos textos
de FC propõe universos novos, criaturas desconhecidas, termos técnicos
inventados pelo autor, uma enciclopédia inteira de informações que não adianta
buscar no Google, porque só tem naquela obra.
A maior parte dos neologismos de
FC, quando o autor é atento, se resolvem na terceira incidência. O autor sabe
que aquela palavra não existe, a gente não sabe o que é o verbo “grokkar”. Na sequência
da história esses termos se auto-explicam. Mas é preciso ler na frente. Em
geral, pelo menos um capítulo inteiro adiante, para poder fazer uma idéia geral
de que mundo é aquele.
Em textos assim, o tradutor tem
que ser o batedor de si mesmo, ir na frente analisando o terreno e voltando para
informar o grosso da tropa. (O grosso da tropa é ele mesmo também.)
Traduzir é escrever. Traduzir é
trazer. O tradutor é um escritor sem licença para inventar.
Um comentário:
Caro Braulio,
O historiador é também um escritor sem licença para inventar.
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