Antigamente era normal um romancista passar três páginas
seguidas descrevendo o quarto de uma marquesa ou o estúdio de um artista. No
século 19 a pintura, o teatro e a ópera compensavam o lado não-visual da
literatura, e um leitor era capaz de visualizar colagens de objetos e paisagens
que afinal não estavam muito distante de sua experiência diária, mesmo vendo a
vida dos nobres à distância. O cinema, quando surgiu, demonstrou ser uma
espécie de teatro com o tempo narrativo e o tempo real tão manipuláveis quanto
os da literatura.
Um dos primeiros choques tradutórios que senti foi quando
comecei a ler S. S. Van Dine em inglês, depois de ter lido em tradução uma meia
dúzia de seus romances de crimes enigmáticos (The Benson Murder Case, etc.).
Tive um susto. Philo Vance, seu detetive, é um esnobe que gosta de discorrer
páginas inteiras sobre egiptologia ou história natural para avaliar a
importância de uma pista. Esses longos “infodumps”, ou entulhos de informação,
estavam conspicuamente ausentes das traduções de Monteiro Lobato, da Companhia
Editora Nacional. Lobato devia achar aquilo um saco e metia a tesoura, cortava
tudo. Os leitores que não gostam do dandismo de Van Dine, sua pose de J.-K.
Huysmans novaiorquino na década de 1930, podem muito bem ler as versões
lobatianas, mais enxutas, mais leves.
Como aliás dizem ser a tradução que Borges fez de “The
Purloined Letter” de Edgar Poe para uma das suas antologias. Em termos de
estilo Borges era o anti-Poe. Essa sua tradução pode ser um bom exemplo de
crítica praticada via tradução, não via ensaio. Traduzir, às vezes, é a nossa
chance de reescrever uma história que estilisticamente não nos agrada, e aí
cedemos à tentação de melhorar o original.
Lobato e Borges tomava essas liberdades porque eram
escritores traduzindo, e não tradutores de ofício. O tradutor de ofício e o
escritor sofrem as mesmas tentações, como a de melhorar o original; mas talvez
o escritor ceda com mais facilidade. Ressalvando sempre o bom senso das partes
envolvidas, o tradutor vê no autor do livro alguém ligeiramente superior a ele,
quando mais não seja pelo fato de que é o dono do texto original. Já um
escritor pensa: “Ora que diabo, estou traduzindo mas sou escritor também, vou
dar uma ajeitada nos parágrafos desse nobre colega.” O que é o mesmo que ir no museu e dizer: “Vou dar uma ajeitada no
nariz desta estátua, na perspectiva desse quadro.” Onde um tradutor sério passa uma noite inteira pesquisando e
sofrendo, um escritor às vezes não hesita em passar o rodo na estilosidade do
colega e seguir adiante, esfregando as mãos e assobiando. Ele diz que prefere
saber como salsicha é feita.
Um comentário:
Prezado,
Você sabe das dificuldades da tradução, muitas (ou todas) as vezes transliterar é pouco dado que cada cultura tem a sua língua. Não que o nosso português (pois existe o dos portugueses) seja pobre, é preciso "dar uma ajeitada" para uma melhor compreensão do texto. Somos um povo que gosta de explicar, talvez seja a tal da amabilidade, e isso transparece nas traduções.
Wandique
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