sábado, 15 de novembro de 2014

3659) Ele será (15.11.2014)


Ele será parido e paparicado por uma sacerdotisa ou princesa de não-sei-que clã. Será a promessa messiânica da futura ponta de um iceberg heráldico. Vai brotar num mar de lama e esqualos, onde os brasões se empurram disputando espaço à luz da História. Ele nascerá infante, vermelho, franzido, berrante, friorento e finalmente aconchegado. Nada o distingue dos outros, afora o sobrenome, e por causa deste será visto como um prodígio.

 

Ele será treinado nas artes, nas ciências, nas linguagens, nas cerimônias. Será o ponto focal da herança de mil técnicas remotas que não se pode permitir que se percam, e que têm que ser transmitidas a cada herdeiro, a cada delfim, a cada primogênito que um dia se assentará no trono e despachará com os ministros da corte. Quando se formar nele a noção do “Eu”, formar-se-á conjuntamente a de cumprir uma Missão, a de desempenhar um Papel.

 

Ele será festejado, ao chegar, com girândolas e orquestras. Será coroado, condecorado, benzido, aspergido, aclamado por entre batalhões em trajes de gala e dignitários de cinco continentes, comparecerá a missas e cultos, descerrará placas comemorativas, partirá fitas simbólicas, comandará banquetes e coquetéis.  É como se o mundo ocidental inteiro estivesse vendo, estivesse acompanhando, estivesse sabendo em tempo real o que ele realiza.  Voltará para o hotel cercado de seguranças. A luz se apagará.  Depois que a luz se apaga, todos os travesseiros são iguais.

 

Ele reinará com uma mão de ferro e uma mão de ouro.  Empunhará a caneta que prende e que solta, a cruz que profere bênçãos e excomunhões, a espada que sagra cavaleiros e decapita traidores.  E se transformará  (foi este o mundo que nos coube, por castigo ou prêmio) num especialista nas artes de vender e de comprar. O poder é isto, pensará ele, ser capaz de examinar vidas alheias, deslizes alheios, e ser capaz de condená-los sem nada sentir. O Poder é poder estar do lado de fora de tudo: “sei o que vai acontecer mas não tenho nada a ver com o fato de que uma coisa assim aconteça.”

 
Ele será venerado, mas como o mero portador do anel mágico, o mero detentor do gene certo, o mero realizador da profecia alheia.  Como todo ator, será amado ou odiado pelo personagem que recebeu, e o terá vivido com tal verdade que aceitará com equanimidade tanto a idolatria quanto o repúdio alheio. Ele será ungido e canonizado após a morte, sofrerá calúnias benignas inspiradas pelo ardor dos seus seguidores, será objeto de um culto que desprezaria quando vivo, e receberá a duvidosa imortalidade das páginas da História, das lendas apócrifas, dos prodígios sem comprovação.

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