domingo, 1 de maio de 2011

2544) O charme da transgressão (30.4.2011)



Todo mundo pensa que a intenção de Hitler ao criar o nazismo era se instalar no poder e fazer com que o seu III Reich durasse mil anos. Ledo engano. Ele sabia muito bem que isso era impossível. Quem matou a charada foi Jorge Luís Borges, no seu conto “Deutsches Requiem”. A intenção de Hitler foi trazer para o mundo o reino da violência, da guerra, da crueldade absurda e planificada, o reino do fogo e do metal. Como diz Otto Dietrich zur Linde, o oficial nazista que narra o conto: “Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã”. O nazismo teria, assim, conseguido seu objetivo: transformar o mundo inteiro numa máquina de guerra e de violência insensata. Para destruir o Mal, o mundo teve que se tornar tão Mau quanto ele.

Acontece algo parecido com o conceito de transgressão. Minha geração cresceu num mundo que por um lado era asfixiantemente conservador e tradicionalista (na casa, na família, na escola, no trabalho) e por outro lado, devido à ditadura militar, brutalmente repressor (nas comunicações, nas artes, nas manifestações públicas). Daí que um dos principais valores endeusados por todos nós foi a Transgressão. Era preciso transgredir para continuar respirando. Era moralmente obrigatório transgredir para que a gente não ficasse se considerando o mais covarde dos vermes.

Essa geração criou todos os tipos de endeusamento à transgressão. Sob a forma de arte de vanguarda, de poesia marginal, de humorismo, de comportamento rebelde, de estética pessoal (cabelo, roupas), de uso do palavrão e da nudez (no teatro, p. ex.), de uso de drogas, etc. E, espalhando-se como uma nuvem ou uma neblina em volta de tudo isto, uma atitude transgressora permanente. Nossos filhos se impregnaram dessa neblina cultural sem saber muito por onde ou por quê. Herdaram aquela frasezinha-de-efeito: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”, e os que cunharam a frase têm 50 agora. A ditadura passou, o mundo virou pop. E aí está uma população jovem que ganhou a liberdade de graça e mantém uma atitude desafiadora, sarcástica. Às vezes apenas simbolicamente agressiva, outras vezes rancorosa e hostil (tudo depende do contexto em que nasce e vive cada um).

Criou-se um mito de que é preciso transgredir sempre, desobedecer sempre, ser contra tudo, ridicularizar sempre, continuamente, a quem quer que seja, ricos e pobres, velhos e novos, nacionais e estrangeiros. Não importa quem, e importa ainda menos por quê. É como uma geração criada na prisão, que ouviu dizer que é preciso arrombar as portas, e que depois que o fez saiu pela cidade afora, arrombando do mesmo jeito todas as portas que encontrava pela frente. Bem que se diz que na vida não existem prêmios nem castigos, apenas consequências.

Um comentário:

Unknown disse...

Isso me incomoda também. Existem muitas distorções e a visão que a maioria das pessoas tem hoje do que seria transgredir é uma visão religiosa. Essas distorções, por exemplo, fazem com que um reacionário como Diogo Mainardi faça pose de transgressor.