quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
2451) De Moebius a Cortázar (12.1.2011)
Seja dada uma faixa plana de material maleável, mais longa do que larga, e muito mais larga do que espessa. Um modelo padrão seria uma faixa de pano, ou de papel flexível, com o formato aproximado de uma régua escolar, ou seja, 30 cm de comprimento por 3 de largura. Essa faixa tem a feição peculiar possuir duas faces reversas e opostas. Só é possível passar de uma faixa para outra indo até alguma das bordas e transpondo-a. Este aspecto é crucial, porque a faixa tem que ser achatada, diferente de uma faixa roliça (algo como uma corda, um barbante, etc). Uma corda roliça é cilíndrica, é contínua ao longo de seu eixo, não possui arestas ou bordas, não estabelece limites, parece aos nossos olhos uma única superfície. Já a faixa achatada, em forma de régua, sugere a presença de dois espaços contrapostos, duas faces.
A faixa parece ter apenas duas dimensões (comprimento e largura), porque sua espessura de meio milímetro, ou ainda menos, é mínima, quase insignificante. Mas o fato é que ela tem três dimensões, sim, e está num espaço tridimensional, o que vivemos.
O que chamamos de Faixa de Moebius é uma faixa que foi torcida sobre si própria e depois teve suas duas extremidades coladas uma à outra. Isto só é possível porque o espaço em que vivemos tem três dimensões visíveis. Ninguém se admira ao manusear uma Faixa de Moebius, ainda que a esteja vendo pela primeira vez. Parece algo curioso, mas nossa mente a assimila de imediato, porque estamos acostumamos a deformações desse tipo, e porque sabemos, mesmo sem verbalizar as coisas nestes termos, que aquela faixa embora pareça ter apenas duas dimensões tem na verdade três, como qualquer outro objeto físico.
O aspecto original da Faixa de Moebius consiste no fato de que ela nos sugere uma transição imperceptível de um universo X para um universo Y que lhe é oposto e aparentemente inacessível. Isto ocorre através de duas figuras que podemos chamar a Torção e a Juntura. porque a partir de certo ponto a faixa começa a sofrer uma Torção que, por mantê-la intacta, é quase imperceptível. A Torção se acentua até perfazer um giro de 180 graus, quando então a face e o reverso da faixa são invertidas em relação ao espaço circundante. A essa altura a Torção se estabiliza e a faixa se alonga, aparentemente idêntica a si mesma, até que as duas extremidades se encontram na Juntura. Em geral é somente neste ponto que se dá a percepção do que aconteceu.
Este é um processo clássico de muitas narrativas fantásticas em que dois universos incompatíveis acabam se encontrando e tornam-se vasos comunicantes. A Torção se produz ao longo da narrativa pela adição gradual de elementos aparentemente normais; a Juntura se dá em geral num trecho específico, quando algo impossível parece acontecer. A mais simples e clara ilustração desse processo é o conto de Julio Cortázar “Continuidade dos Parques”, no livro Final de Jogo.
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4 comentários:
O Cortázar tem um conto chamado "Anillo de Moebius", está no livro "Queremos tanto a Glenda".
Divisão, linguagem, experiência, corpo, representação, narrativas fantásticas, possibilidades; tudo isso inscrito na ordem das bordas, que, penso, é a palavra mais importante do teu texto; é nas (e pelas)bordas que tudo se define.
Cassioney, eu já vi esse conto mas se o li não lembro nada... Estou em viagem agora e não tenho o livro à mão, mas vou anotar para reler quando chegar em casa. Quem sabe ele rende mais assunto.
Caro Anônimo: o pintor pinta, o escritor borda. :-)
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