domingo, 4 de julho de 2010

2227) E tudo acaba num samba (28.4.2010)



(Jamelão)

Diz um clichê que os artistas são uns sujeitos talentosos que vivem tentando criar, e sofrem pressão de indivíduos poderosos que tomam as rédeas do processo, prejudicam sua criação, etc. Quem não acha familiar a imagem do cineasta genial cujo filme, depois que vai parar nas mãos do produtor, é irremediavelmente mutilado, distorcendo por completo as intenções do autor? Quem não conhece mil histórias sobre o cantor-compositor de talento que entra no estúdio com um punhado de canções geniais e sai dali com um álbum cheio de versões pasteurizadas?

Nem sempre é assim. Artistas também são preguiçosos, ou se equivocam, ou simplesmente não conseguem se focar no que estão fazendo. Produtores, editores ou administradores em geral podem não saber criar, mas muitas vezes sabem coordenar o esforço dos artistas a quem promovem, exigindo e extraindo o melhor deles. Nem toda interferência num artista é para castrá-lo ou censurá-lo. Artistas precisam muitas vezes de uma sacudidela, uma crítica negativa, uma pressão para que deixem de ser comodistas e façam algo melhor. A interferência de um editor pode transformar um ótimo poema numa obra-prima – foi o que Ezra Pound fez com “The Waste Land” de Eliot.

O saite Cifrantiga (cifrantiga.blogspot.com) conta uma história interessante sobre o samba clássico “Exaltação à Mangueira”, gravado por Jamelão para o carnaval de 1956, e que todo mundo conhece: “Mangueira, teu cenário é uma beleza / que a natureza criou... / O morro com seus barracões de zinco / quando amanhece, que esplendor!” Composto por Enéas Brites e Aloísio Augusto da Costa, dois trabalhadores de uma cerâmica que ficava próxima ao morro, o samba é uma beleza de composição, gravada por muita gente. O samba (diz o saite) foi uma idéia de Enéas, e os dois o compuseram um dia, num intervalo de almoço (ver aqui: http://tinyurl.com/y2lq526). Acontece que na sequência da letra os dois poetas escreveram os seguintes versos: “Todo mundo te conhece / até no interior / não é bafo de boca / nem mania, não senhor”. O presidente da Mangueira, que se chamava Hermes Rodrigues, não gostou destes versos, e disse aos compositores que trouxessem alguma coisa melhor. Algum tempo depois, eles voltaram com os versos imortais: “Todo mundo te conhece ao longe / pelo som dos teus tamborins / e o rufar do teu tambor... / Chegou, ô-ô-ô, a Mangueira chegou, ô-ô”.

A interferência de um mero presidente de clube deu aos compositores a chance de substituir um verso medíocre por um verso que exprime a essência do que eles queriam dizer, porque se há uma coisa de que os mangueirenses de fato se orgulham é a batida característica de sua Escola. É o mesmo samba de todos, mas é diferente, assim como o pandeiro de Jackson é o mesmo coco de todo mundo, mas é diferente. Os compositores sabiam disso, mas só foram buscar lá dentro depois que alguém lhes fez uma cobrança e os forçou a focar melhor a criatividade. .

Um comentário:

Augusto Dias disse...

Preciso concordar com sua perfeita colocação, cobranças, criticas, obervações, são muito necessárias para o desenvolvimento de qualquer trabalho até mesmo o artístico.
Gosto muito de saber as histórias que envolvem as musicas, obrigado por ter compartilhado.
Tudo de bom!!!