quarta-feira, 9 de junho de 2010

2130) Os negros somos nós (5.1.2010)




O Coração das Trevas de Joseph Conrad provoca num leitor civilizado de hoje (mais de um século depois da publicação original do livro) impressões contraditórias. Temos a sensação de que é a história do nosso povo que está sendo contada; em outros momentos, temos uma sensação parecida mas distinta. Tentarei esclarecer essa ambiguidade.

Heart of Darkness é a história de Kurtz, um europeu que se embrenha no Congo para administrar um entreposto comercial e, como tarefa colateral, civilizar os nativos. Não é bem isso o que ocorre, como Marlow (o narrador da história, que viaja de barco rio acima para trazer Kurtz de volta) vai percebendo aos poucos. 

 Kurtz é saudado por todos os europeus que o conheceram como um homem excepcional, um intelectual, artista, humanista, orador de enorme carisma. É o que o colonialismo europeu tem de melhor para enviar para essas colônias remotas, um “emissário da piedade, da ciência, do progresso”. 

Mas Marlow ouve rumores de que Kurtz coordena um enorme esquema de tráfico de marfim, feito à base de muita violência e desonestidade; e que estaria se entregando, nas profundezas da mata, a “certas danças, à meia-noite, que se encerravam com rituais indescritíveis, dedicados a ele, a Mr. Kurtz em pessoa”.

Em sua análise do livro de Conrad, Luiz Costa Lima (O Redemunho do Horror, Planeta, 2003) indica a falência do projeto colonial europeu afirmando que “em nenhum instante o desvio afirma a norma”. 

Ou seja: as coisas indizíveis praticadas no coração da selva pelos europeus não são uma traição à norma do colonialismo, não afirmam (por contraste, por serem irregularidades) a justeza do projeto colonial. Pelo contrário: são consequência inevitável dele. O desvio, diz ele, “é a prova de que o móvel primeiro da civilização branca é tão criminoso quanto as condutas que a moral vitoriana condenava”.

É a História do Brasil, não é mesmo? Nossa sociedade escravista baseada no sequestro e na tortura de milhões de negros; no extermínio e na degradação de milhões de índios. Mas existe uma frase-chave no livro, quando Kurtz afirma: 

“Nós, brancos, no estágio de desenvolvimento a que chegamos, devemos necessariamente parecer aos selvagens seres sobrenaturais – nós os abordamos com o poder de verdadeiras divindades, e pela simples manifestação da nossa vontade podemos exercer uma influência praticamente ilimitada para o Bem”.

Nesse momento das grandes crises econômicas, na década da Enron, de Dubai, do estouro da bolha capitalista, constatamos que é nossa história, sim – mas agora os selvagens somos nós, os pseudo-civilizados. 

O novo colonialismo é exercido por super-homens cuja existência, com cacifes de bilhões de dólares, ocorre numa estratosfera inacessível ao nosso pensamento. São seres sobrenaturais, sim, esses bilionários com seus jatos de luxo, banheiras de ouro, hotéis faraônicos. São os novos Kurtz com poder ilimitado para fazer o Bem – e o Mal. Os novos negros somos nós.






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