sexta-feira, 5 de março de 2010

1747) O texto impenetrável (16.10.2008)



(Ulysses, de Joyce)

Andei relendo, para postar no meu Blog, o texto “O poema incompreensível” (29.10.2004). Como já falei aqui, todos estes meus artigos se interconectam de acordo com um sistema que só eu sei e que Deus vem pesquisando há vários anos. Aproveito esta chance para qualificar melhor alguns conceitos.

Há textos impenetráveis porque são complexos. Vejam o inevitável exemplo dos romances de James Joyce. Não digo que são bons, nem que são bonitos, que são importantes, são úteis, não digo nada, mesmo que sejam isto tudo. Digo que são complexos, e quem não gostar de coisa complexa vire noutra esquina. Diante do mundo de Joyce talvez não caiba a palavra “impenetrável”, porque o número de seguidores que nele penetra, de mãos dadas, acendendo velas, é superior ao de muitas religiões organizadas. Mas o leitor entenderá o que estou dizendo.

Há obras impenetráveis por inesperadas. Simplesmente fazem as coisas de um jeito diferente, onde nossa mente não acerta a pousar o pé. Anos depois, uma nova geração dirá: “Mas o que tem isso de incompreensível? O que tem de vanguardista? O que tem de bom?”. Talvez seja o caso de Acossado, de Godard. Quando ele cortou de Belmondo fumando no quarto para Belmondo andando na rua, metade da França deu um salto na poltrona. Hoje, pestanas nem batem.

Existe a obra impenetrável por diferente. Isto se dá comigo quando vou ler muitos autores clássicos, alguns romancistas orientais, poetas da Roma Antiga... A obra passou por uma série de filtros heterogêneos (biografia, sensibilidade pessoal, influências literárias, influências locais) e esses filtros são tão distantes da experiência de um leitor brasileiro em 2008 que o resultado final fala uma língua que nos é estranha. Nada existe aí de genialidade ou de barroquismo. É a distância cultural colocando tantos decodificadores entre a obra e o leitor que este não mais a alcança.

E existe o impenetrável por incompetência. É o autor que gostaria de ser claro e de ser compreendido, mas não consegue. Escreve daquele jeito porque é daquele jeito que pensa, que sente, que raciocina. Pensa complicado, pensa incoerente, pensa fora de foco. A obra é um disjunto de pedaços conflitantes, de estímulos que produzem a reação inversa à que pretendiam, de textos que parecem dizer e nada dizem, porque lhes falta intenção no começo e resultado no fim. Imagino às vezes que muitos livros ruins que chegam a ser publicados devem isto à circunstância de terem pousado na mesa do editor misturados a outros muito piores. Quem foi jurado de concurso já teve a experiência de esbarrar numa quantidade tão grande de coisas péssimas que a primeira mediocridade bem-vestida é recebida com alívio, e apertada de encontro ao peito. No meio de trinta muros impenetráveis, uma porta que se abre em dobradiças bem azeitadas é um refrigério, é um antídoto contra o desconsolo. E cruzamos com gratidão essa porta, mesmo que não nos leve a lugar nenhum.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Bráulio! minha saída para o impenetrável oculto do mistério fibroso de nenhum aprumo final para o compreensível, somente o sensível do quase isto mas já aquilo é... "O que faço com as baratas/peladas na luz do dia/em minha kit alugada/toda nudez será castigada? // as baratas noite e dia convivem comigo e teimam/poucas e muitas baratas desaparecem na queima./negociamos o espaço com assassinatos baratos/basta apertar qualquer coisa em seus tamanhos exatos. // Clarice comeu barata/no quarto da empregada/pichou a parede e disse/- nojenta vou te comer! // o que bebo de água benta para livrar-me da culpa/- barata peço desculpa/peça desculpa pra mim. (Mara de Aquino 2013)