(Gonzaga Rodrigues)
O narrador do conto-título deste livro de Gonzaga Rodrigues (João Pessoa: Ed. Dinâmica, 2005) tem origem obscura (é largado pela mãe doente na casa da família que acaba por criá-lo) e seu nome nunca é dito. Não importa; a história não é sobre ele, é sobre o pai, cujo nome só é pronunciado uma vez, quase no final, quando alguém pergunta ao filho: “Quedê Manuel?” É a pergunta que percorre todo o texto, multiplicada em variantes: Como era Manuel? Quem era Manuel?
História de uma Paraíba que perdeu contato com o passado, uma Paraíba aderida às recompensas rápidas da vida urbana, milagroso alívio quando comparadas à rotina embrutecedora do trabalho rural. Quando o Narrador desembarca, menino, em Campina Grande, vê a “maior cidade do mundo”, cheia “de imagens novas, sons novos, de novos e estranhos ritmos”. É esta cidade que acabará por seduzi-lo na adolescência, quando, recusado no Seminário (talvez por não ser filho legítimo), vai morar com os primos e se deixa encandear pelas opções de lazer, e por uma permissividade moral que desconhecia.
A literatura de fundo psicanalítico fala em “romances da psicogênese”, em que se conta a evolução do herói, partindo da infância, um estado narcísico, egocêntrico, voltado para o prazer, e alcançando aos poucos o princípio da realidade, a capacidade de ter relações maduras e de aceitar as frustrações emocionais que a vida social impõe. O Narrador do conto de Gonzaga faz o percurso inverso. Ele parte de uma infância de solidão e medo numa família taciturna, junto a um pai que só faz trabalhar, que mesmo dono de um pequeno engenho veste a mesma roupa e calça as mesmas alpercatas dos empregados, e que nas refeições leva a comida à boca com a faca. Adolescente, ele descobre na cidade a sinuca, a agitação estudantil, o volibol, e por fim o desfalque financeiro, que lhe proporciona “a roupa de linho”, o “sapato fox”, as “camisas de colarinho impermeável”.
Um dos poucos momentos em que ele, menino, emociona o pai bronco e analfabeto é quando mostra já ser capaz de ler em voz alta os folhetos de Ataíde e de José Pacheco, os mesmos que provocavam no velho a risada diante do mote profético: “Quem quer ser mais do que é / fica pior do que está”. Com seu trambique bancário, ele provoca a morte do pai, por pura vergonha, e experimenta em seguida a incapacidade de evocar com nitidez seu rosto.
O Passado era uma escravidão rude, sem horizontes e sem ternura, numa terra onde se já trabalhava antes do sol sair e ainda depois dele se pôr. Mas algo bom se perdeu desse Passado nesta Paraíba onde os produtos dos shopping-centers são tão abundantes quanto os frutos que no engenho se espatifavam no chão, por não haver gente bastante para comê-los todos. Esquecemos o rosto daquela Paraíba, e talvez estejamos nos despedindo dela um pouco às pressas demais, entusiasmados com o dinheiro fácil dos Bancos e com a promessa de que a infância consumista vai durar para sempre.
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