segunda-feira, 22 de junho de 2009

1112) Três lapsos da língua (7.10.2006)




(a Torah)

A história das visitações do Santo Ofício (a Inquisição) ao Nordeste, no século 16, registra um episódio curioso. Murmurava-se que alguns cristãos novos (ex-judeus) praticavam sacrilégios, entre os quais a adoração da Toura, uma cabeça de boi sem chifres. Hoje, acredita-se que essa efígie, que de fato aparece nos registros, era uma forma cifrada de dizer “a Torá”, o livro sagrado dos judeus. A confusão era causada por alguém que entendia mal o que ouvira, e o erro depois teria sido assimilado pelos próprios judeus, que usavam a efígie da “Toura” como disfarce para sua verdadeira referência de culto.

Antigamente havia na Semana Santa uma brincadeira chamada “Serra-Velho”. Escolhia-se algum velho avarento que houvesse na vizinhança, e, durante a noite, a casa dele era trancada pelo lado de fora. Portas e janelas eram pregadas com tábuas e pregos, enquanto os brincalhões faziam um barulho danado para despertá-lo, serrando tábuas para fazer seu caixão, e lendo em altos brados um testamento cômico em que ele legava os seus bens, a viúva, etc. O nome da brincadeira, na verdade, é Cerra-Velho (“cerrar”, trancar), mas por contaminação auditiva o verbo “serrar” apareceu na história, surgindo depois, para justificá-lo, o pretexto de serrar as tábuas para o caixão.

No Nordeste, os crentes ou protestantes eram chamados muitas vezes de Nova Seita (hoje em dia, esse termo foi substituído por “evangélico”). Ou seja, era uma nova seita religiosa que estava aparecendo. Por contaminação auditiva, muita gente escrevia (há folhetos de cordel que escrevem assim) “Nova Aceita”. E justificava-se: eram pessoas que aceitavam uma nova religião.

Estes três processos, que nada têm a ver entre si, ilustram a maneira como Sigmund Freud via a formação dos erros e dos lapsos involuntários de linguagem, os quais denunciam o modo como nosso Inconsciente funciona. Misturamos o conteúdo de duas palavras que não guardam entre si nenhuma relação senão a semelhança de som. Como o resultado é aparentemente absurdo, sentimo-nos na obrigação de justificá-lo dizendo que não, que aquilo surgiu em função do significado. E inventamos uma explicação das mais complicadas para mostrar que aquilo ali faz sentido, sim, claro que faz, claro que tem uma explicação racional – que papo é esse de que as palavras são livres para violar a hierarquia da Significação?

Nosso pensamento funciona assim. A linguagem individual e a linguagem coletiva obedecem a processos parecidos. Nos sonhos, nos atos falhos, nos neologismos, na gíria, na criação poética, produzimos associações de palavras que se organizam por critérios às vezes aleatórios, às vezes totalmente “de veneta” por parte do autor, às vezes por uma associação de idéias que só ele entende. Aquilo é passado adiante, e a certa altura surgem as pessoas que tentarão racionalizar, retrospectivamente, como aquilo teve origem. E inventarão exemplos como as três pequenas jóias citadas acima.




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