sábado, 11 de outubro de 2008

0593) Os holofotes e os bastidores (11.2.2005)




São dois universos, e cada um tem sua flora e sua fauna. Mal comparando, são opostos e complementares como o Dia e a Noite. Há quem habite apenas um, e há quem transite entre os dois. 

Os termos que usei talvez sugiram em excesso o mundo do teatro, da música, do show, da política. Mas em todas as atividades humanas existem essa cara e essa coroa, essa vitrine onde se expõe e esse porão onde se trabalha.

Há quem prefira um, e quem prefira o outro. Eu, por natureza e temperamento, prefiro o porão e os bastidores. É onde se trabalha melhor, onde as coisas são feitas a sério, onde são criadas as obras que perduram. Tudo que conhecemos da arte da Grécia Antiga ou da Renascença foi produzido nos bastidores, na calada da noite, no recolhimento das oficinas e dos ateliês. 

Quando estou aqui, sentado no sofá do meu quarto-dos-livros, olho para estas estantes e penso que cada livro destes, cada uma destas páginas, só veio ao mundo porque teve uma noite em que o cara, em vez de sair com os amigos, ficou em casa escrevendo.

O parágrafo acima parece uma opção pública, uma profissão-de-fé ideológica em que eu tomo o partido de A contra B. Calma, leitor: me acompanhe e vamos em frente, porque o mundo não é tão simples. 

Basta-me parar a caneta por alguns minutos e fazer um balanço autobiográfico para constatar que não, que o que me atraiu mesmo, a vida toda, foram as luzes da ribalta, o auê dos camarins, a badalação dos bares, a curiosidade da imprensa, o cio desnorteado das tietes. 

Por mais que a gente opte por escrever à meia-noite na água-furtada à luz de uma vela, não é aí que se esgota o processo, e sim no retintim de coquetéis no lançamento, e na espera ansiosa da primeira resenha num jornal.

Coço a cabeça, tentando resolver esta grave contradição filosófica (“se A é diferente de B, não se pode ser A e B ao mesmo tempo”). Meu recurso é abandonar de vez esse bitolamento aristotélico e recorrer ao Taoísmo, ao símbolo visual do Yin-Yang. 

O círculo onde uma gota preta e uma gota branca se entrelaçam, cada qual tendo em seu núcleo um circulozinho da cor oposta. São assim as coisas do mundo, tudo está entrelaçado ao seu oposto, tudo, no momento em que mais se expande e amadurece, expande e amadurece também um grãozinho minúsculo de seu próprio contrário, de seu próprio reverso.

Tudo que foi produzido nos bastidores gregos e renascentistas foi feito para os holofotes, para as vitrines e as platéias, para o deleite de uma corte e o deslumbramento respeitoso da Multidão. 

Foram épocas em que tudo deu certo. Épocas em que as pessoas que faziam a Vanguarda entenderam que para fazer Grande Arte podiam se valer também do Mercado, e as pessoas que faziam o Mercado entenderam que podiam perfeitamente investir na Vanguarda e sair ganhando com isto. Cada qual via no outro um sócio, e não um adversário. O que realizaram juntos se cristalizou em Tradição.





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