sexta-feira, 16 de maio de 2008

0396) A palavra escrita (26.6.2004)


(cartaz de "O milagre de Anne Sullivan")

O Brasil está passando direto da cultura oral tradicional para a cultura eletrônica, sem passar pelo estágio da cultura escrita. Muita gente foi analfabeta a vida inteira. Toda a sua troca de informações se deu de forma oral, através de contatos diretos: falando, e ouvindo. (Estou deixando de lado, para simplificar, outras formas de transmissão de informação – também importantes, mas minoritárias em relação à palavra falada: a linguagem gestual, visual, etc.). Aí surgem o rádio, o disco, a televisão. Estes meios parecem uma extensão natural desse mundo anterior onde a gente vê, ouve e fala, mas para chegar a ele as pessoas estão pulando um estágio: o da palavra lida e escrita. Fica um buraco. E sabe Deus o tamanho do problema que isso vai causar mais na frente.

Ler é um negócio danado de difícil, e danado de enriquecedor. No livro “Tarzan” de Edgar Rice Burroughs, há um capítulo em que Tarzan, adolescente, encontra na floresta uma cabana onde descobre alguns livros ilustrados, que chamam sua atenção por causa das figuras de animais. Ele vê embaixo de cada ilustração um grupo de formiguinhas enfileiradas. Depois nota que, quando a figura se repete, repetem-se também as mesmas formiguinhas, na mesma ordem. Ele acaba decorando as formiguinhas, a tal ponto que, quando as vê, ele lembra qual a figura a que elas se referem: e começa a associar as formiguinhas “b-o-y” à imagem de um menino. É uma descrição ingênua, mas, pelo menos para o menino que eu era, reconstituía o “flash” mental da cognição linguística, de quando um mero agregado de sinais passa a significar, passa a ser uma coisa-em-si e ao mesmo tempo a evocar uma outra coisa.

É crucial para uma mente humana ser capaz de manipular uma linguagem de sinais, um código à base de convenções. Outro momento emocionante na conquista da palavra é a cena do filme O milagre de Anne Sullivan, de Arthur Penn. Anne Sullivan foi a professora que cuidou de Helen Keller, garota surda, muda e cega de nascença. A menina era um verdadeiro capeta: ninguém conseguia se comunicar direito com ela, que vivia em casa quase como um bicho. Anne Sullivan passa o tempo todo tentando fazer com que Helen entenda a linguagem manual de sinais, em que os dedos, pressionados contra a mão da outra pessoa, formam “palavras”. A certa altura do filme, acontece a famosa cena da bomba dágua: as duas estão tirando água de um poço, num dia quente, e quando Helen molha a mão na água fria, Anne faz com os dedos os sinais que significam “água”. A menina entende, pela primeira vez, que aqueles movimentozinhos de encontro a sua mão estão associados àquela coisa fria e molhada que ela está tocando. E sai de casa afora, arrastando a professora pela mão, e perguntando o “nome” de tudo em que toca. É uma cena comovente, de dar lágrimas nos olhos. (Nunca vi esse filme, mas não preciso ter visto a cena: eu li num livro.)

Um comentário:

Alguém à bordo. disse...

Tenho vindo sempre aqui. Exercitar esse negócio "dificil e enriquecedor". Ler seus escritos, que são "fantasmos", quer dizer, fantásticos.
"A bem dizer" você é uma máquina! São mais de mil postagens por dia. Benza Deus!
Ei, me faça uma visitinha também.