sábado, 3 de maio de 2008

0383) Folclore e cultura digital (11.6.2004)




A cultura digital surgida com o computador e a Internet está fechando um ciclo e nos trazendo de volta ao tempo da cultura oral, de antes da imprensa. 

Por um lado, temos a possibilidade técnica de reproduzir diferentes tipos de linguagem (textos, sons, imagens) que em conjunto cobrem grande parte da produção cultural de qualquer sociedade. 

A invenção da imprensa teve uma função semelhante: numa época em que um monge levava anos para fazer à mão uma cópia inteira da Bíblia, tornou-se possível imprimir centenas de bíblias em poucos meses. A invenção da mídia digital, contudo, elevou isto ao cubo. E botou na roda, além do texto, a reprodução sonora e a de imagens.

Uma consequência interessante disto é que, com esta facilidade inédita de copiar e passar adiante, está se tornando cada vez mais irrelevante o conceito de “original”. Distinguimos um original de uma cópia porque existem diferenças técnicas entre um e outro, e geralmente a cópia envolve algum tipo de perda, de piora de qualidade. 

No caso da mídia digital, isto não ocorre, e neste ponto o pirateamento de CDs é muito mais eficaz do que seu antecessor histórico, o xerocamento de livros. A multiplicação das cópias faz empalidecer o conceito de original, quebra a aura de “obra-de-arte” que o cercava. 

Isto já foi analisado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”. E disto nasce, por exemplo, a cultura do “remix”, das canções que mesmo depois de lançadas não param de ser manipuladas pelo próprio autor ou por outras pessoas. Não apenas se copia, mas se interfere.

Este estado de coisas parece nos remeter ao tempo da literatura oral, em que não existia uma versão oficial de um texto, mas versões conflitantes e hierarquicamente parelhas. 

Um romance ibérico do século 14 era conhecido e recitado por milhares de pessoas, e ninguém estava preocupado em saber qual seria a versão original. Não existia. Ou talvez tivesse existido, mas isto era irrelevante.

Nasce daí também uma outra característica que a cultura digital partilha com o folclore pré-letrado: a diminuição do poder conferido ao Autor, devido à diluição do próprio conceito de autoria. Estamos entrando numa fase de intensa prdução e reprodução sonora, em que as músicas passarão a obedecer à famosa frase atribuída ao sambista Sinhô: “Samba é como passarinho, é de quem pegar primeiro”. 

Alguém “ripa” um CD de uma banda desconhecida, pega uma música, interfere nela, e a coloca em seu próprio CD. Outro pega este segundo CD, faz o mesmo e passa adiante. É quase impossível rastrear essa cadeia de cópias e apropriações. A música tinha dono, mas agora é de todos. 

Uma situação de certa libertinagem estética, que no plano jurídico e financeiro cria um impasse: quem merece ganhar dinheiro de direito autoral, ao longo deste processo? Quem paga? Quem recebe? São questões que vão surgindo enquanto não assenta a poeira da revolução digital.






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