Flow (2024),
dirigido por Gints Zilbalodis, é um filme feito na Letônia, e que ganhou
recentemente o Oscar de Melhor Animação. Está em cartaz em vários lugares pelo
Brasil afora.
O principal encanto narrativo de Flow está sugerido no próprio título, que indica a noção de fluir,
de fluência, de fluxo, de um fluido que escorre sem se deixar reter.
Esta imagem provém, é claro, da situação inicial do filme.
Uma floresta cheia de animais (e sem seres humanos visíveis) é invadida de
repente por uma inundação, devido a um tsunami ou outro fenômeno parecido. As
águas invadem tudo, elevando-se irresistivelmente, em poucos minutos.
A narrativa acompanha um grupo de quatro animais unidos
pela fuga e pelas circunstâncias: um Gato, um Cão, um Lêmur e uma Capivara.
Eles se esbarram durante a fuga, brigam, afastam-se, reaproximam-se,
ignoram-se, salvam-se mutuamente.
Tudo isto ocorre numa dinâmica de surpresas, improvisos, atitudes
espontâneas, tudo condicionado pelos
problemas imediatos que um deles, ou o grupo, é forçado a enfrentar.
Flow é uma
lição de narrativa porque de minuto a minuto aparece uma situação nova; um
problema inesperado; uma solução salvadora; uma consequência não-prevista dessa
solução; um re-arranjo de comportamento para contornar esse novo obstáculo; a
chegada de um personagem novo; a hostilidade inicial desse encontro; o
desequilíbrio de forças que um minuto atrás pareciam ter negociado
satisfatoriamente os respectivos espaços.
E tudo isto sem o benefício de um diálogo sequer.
Os bichos de Flow
não são bichos humanizados como os da Disney ou da Pixar, que não passam de
seres humanos que pensam, falam, agem e vivem como seres humanos, mesmo tendo
forma exterior de animais – como o Pato Donald e o rato Mickey.
Em Flow, os
bichos parecem se comportar da maneira instintiva e arisca dos respectivos
bichos da vida real – o gato age como um gato qualquer, a capivara como uma
capivara, e assim por diante. Suas atitudes não são as de bichos capazes de
raciocinar, prever, deduzir como seres humanos. São atitudes de bichos que,
diante de um perigo ou de uma vantagem, agem de acordo, como um bicho o faria.
Claro que existe um trabalho sub-liminar de humanização
nesses personagens, permitindo-nos deduzir ou prever muitas de suas ações. São as
ações que nós, espectadores torcendo pelo seu sucesso, esperamos que eles
pratiquem.
A animação do filme, ao que se diz, foi feita com o software Blender, um software tão acessível que muitos amigos
meus disseram: “Tenho no meu computador... Não é dos melhores, mas é bastante
bom.” Levou cinco anos.
E cabe à animação projetar nesses animaizinhos mais uma
tintura de verossimilhança, dando-lhes os movimentos característicos dos
animais, algo que certamente requereu muitas e muitas horas de observação e de
reprodução minuciosa, principalmente no personagem Gato, o que mais aparece e
que arrasta consigo a narrativa.
Graças a isto, aceitamos que aquele gato parece de fato
um gato e se move, caminha, pula, escapole, esgueira-se e briga como gato. Essa
verossimilhança física nos ajuda a aceitar que nos momentos mais fantasiosos da
ação é mesmo um gato que está fazendo aquilo – p. ex., algumas acrobacias mais
heróicas.
É algo equivalente, na extremidade oposta do espectro, ao
que os gibis de Walt Disney conseguem com a turma de Mickey e Donald. Essa
turma se comporta de maneira tão inconfundivelmente humana que rapidamente
qualquer criança aceita suas aventuras e seu universo, sem perguntar por que
razão um deles é um rato de calças e o outro um pato sem calças.
Os bichos de Flow
têm essa plausibilidade visual (graças à boa animação) e psicológica (graças ao
bom roteiro) para que os aceitemos totalmente como bichos, mesmo naqueles
instantes em que, para corresponder às exigências cada vez mais dramáticas da
história, eles precisam fazer coisas que bicho nenhum faria com tal fluência.
Como quando eles, refugiados num barco à deriva, começam instintivamente a
manejar a vela e o leme.
E aí voltamos à questão do fluxo, do desenrolar contínuo
e sem descanso da narrativa. É uma narrativa que nada tem de hitchcockiana, mas
parece seguir ao pé da letra um dos lemas de Alfred Hitchcock: “Se a ação for
suficientemente fascinante e suficientemente rápida, o público não terá tempo
de se perguntar se aquilo é plausível ou não”.
Flow tem cerca
de uma hora e meia de duração, não tem tempos mortos. Os animais fogem das
águas que se elevam, sobem em árvores, sobem em barcos, deixam-se levar pela
correnteza, são atacados por pássaros, se viram como podem.
Não há seres humanos na história. A correnteza os leva às
ruínas de uma cidade, mas são ruínas já muito antigas, sem relação com o
tsunami presente. Quem construiu aqueles palácios, aquelas muralhas, já se
extinguiu há muito tempo. Os animais não parecem guardar memória alguma daquele
ambiente.
Seu mundo é um eterno presente, como o dos animais em
geral parece ser. O passado existe, mas só o passado recente; e o presente, um
compasso de espera até a próxima decisão de sobrevivência.
É uma narrativa que parece levar em conta um princípio
posto em prática por muitos ficcionistas, seja da literatura, do cinema,
etc. É o da narrativa onde só conta o
que acabou de acontecer, ou, como dizem alguma “a narrativa Fibonacci”.
A série de Fibonacci, para quem não conhece, é um
artifício matemático com mil e uma utilidades. É uma série infinita de números
onde cada novo número a ser adicionado é simplesmente a soma dos dois anteriores.
Eis a série de Fibonacci em sua versão básica:
1 – 1 – 2 – 3 – 5 – 8 – 13 – 21 – 34 – 55 – 89 - ... ...
...
Cada número é a soma dos dois que o antecedem: 89 = 55
+34; 55 = 34 + 21; e assim por diante.
Este princípio pode ser mais ou menos aplicado à
narrativa de ficção. Sem muita exatidão, claro, para não virar uma obrigação
mecânica. Mas como um recurso que pode ajudar naqueles momentos em que o
escritor não sabe com muita clareza o que fazer em seguida.
O princípio básico deste recurso pode ser expresso assim:
A próxima cena a ser escrita precisa desenvolver
elementos que estavam presentes na última e na penúltima.
Isto não é uma obrigação. É uma possibilidade útil.
Até porque outro recurso importantíssimo é justamente o
reaparecimento de algum elemento (um personagem, uma situação, um local, etc.)
que o espectador tinha visto meia hora atrás, e do qual já tinha esquecido.
Quando aquilo reaparece, e reaparece de maneira dramática, com impacto, ele
pensa, subconscientemente: “ih, é mesmo, tinha esse detalhe, nem me lembrava,
mas é isso mesmo”.
O efeito “série Fibonacci”, no entanto, lida com outra
tática. A tática de fazer algum malabarismo com elementos que o espectador ou o
leitor acabou de conhecer, tem ainda vívidos na memória, e muitas vezes espera algum
desenvolvimento. Situações tipo “ih, agora eles conseguiram isto, daqui pra
frente tudo vai ser diferente”.
A narrativa flutua com segurança entre o grande conflito
(como os bichos sobreviverão à inundação?) e os conflitozinhos menores –
principalmente quando os quatro conseguem se refugiar no barco-a-vela e isso
produz uma série de pequenas rivalidades, pois cada um quer uma coisa diferente
a cada momento.
Flow é um filme
de ação. É engraçado dizer isso, porque no linguajar de hoje em dia “filme de
ação” implica sempre em ação humana violenta, em confrontos físicos, brigas de
arma em punho, e assim por diante. A ação não-humana deste filme torna-se
humana pelo grau de empatia que conseguimos desenvolver para com um gato que
tenta não morrer afogado; e com o nosso grau de entendimento desses pequenos
conflitos intra-grupo, em que os bichos não são muito diferentes de nós.
Flow levou
cinco anos em preparação, é hoje o filme de maior sucesso na história da
Letônia, um país com menos de 2 milhões de habitantes. Um estátua do Gato foi
erigida em sua homenagem na capital, Riga.
O brasileiro nasceu para ser comerciante, negociante.
Acredito que existe sangue fenício entre nós, não porque tenha visto provas
genéticas disto, mas porque cresci ouvindo dizer que fenício e comerciante são
sinônimos.
O brasileiro vende tudo? Não propriamente: mas o
brasileiro acredita que tem comprador para tudo.
Morei alguns anos no Catete, ali entre a Nona Delegacia e
a Pedreira da Glória.
Andava muito pelos arredores, que amo até hoje. O zero
cartesiano do meu Rio de Janeiro fica no Largo do Machado.
Frequentei muito a Biblioteca da Glória, na rua homônima,
num prediozinho discreto, diante da calçada cheia de árvores de onde Pedro Nava
deu adeus.
As calçadas da Glória são geralmente largas, como eram as
calçadas numa época em que os pedestres eram mais numerosos do que os cabriolés. São especialmente largas naquele trecho em
frente ao Palácio do Bispo.
Recém-desembarcado no Rio, eu era (ainda sou) curioso com
um monte de coisas que os autóctones nem ligam, porque aquilo faz parte da vida
deles há mais de 400 anos. Mas é assim mesmo. Os que vêm da Europa se maravilham
com maracujá, capivara, marimbondo, espada-de-são-jorge, jabuticaba, sagüim.
Eu me maravilhava – não com a natureza local, mas com a
cultura. Os nativos estendiam lonas bem largas na calçada, diante do Palácio do
Bispo, com um tijolo em cada canto, e ali distribuíam coisas à venda. Eu parava
e ficava computando.
Um par de tênis usados, quatro torneiras enferrujadas,
lápis de todos os tamanhos e às vezes sem ponta, óculos arranhados, sandálias
havaianas às vezes desemparelhadas, um calidoscópio, três canecas de louça,
dois pratos de ágata, um álbum de fotos, quatro sutiãs, vários gibis da Mônica.
A vendedora era às vezes uma mulher de seus 60 anos,
sentada no meio-fio, pano amarrado na cabeça, cigarro no dedo. Bastava a gente
parar e ela abria um sorriso incompleto e fazia um gesto largo abrangendo tudo:
-- Pode olhar, meu fio!... Pode escolher!
O brasileiro acredita que existe comprador para tudo. E deve
mesmo existir comprador para alguma daquelas coisas, porque senão aquela
senhora não se animaria a descer a ladeira de Santo Amaro e expor seus
cacarecos-relíquia.
Alguma coisa
ela devia vender! E no fim do dia, ao recolher aquela enorme trouxa
sacolejante, podia parar ali mesmo na Padaria da esquina e comprar 3 ou 4 pães.
Só quem já precisou de um pão sabe o que valem três ou quatro.
No outro dia eu passava e mais adiante estava uma lona
também sortida, vigiada por um guri de boné pra frente com uma marmitinha do
lado.
Uma panela de pressão com tampa, um oratório de madeira
faltando uma banda, três pentes e uma escova, um mapa do Brasil plastificado, duas
tampas de ralo de pia, um montinho de camisetas passadas a ferro, alguns
passarinhos de plástico, um chapéu preto com peninha na fita, um colete de
seda, um copo de liquidificador, uma imagem do Padre Cícero, um desentupidor de
pia, alguns cadernos de espiral cheios de lições copiadas, uma gravata
borboleta.
Existe uma lei não-escrita do comércio que diz mais ou
menos assim: se você tem 200 coisas para vender e são 200 cachimbos, você só
atrai um público, o dos compradores de cachimbo. Mas se você tem 200 objetos
para vender e ali tem cachimbo, vaso de louça, livro, anágua, copo, prato,
chinelo... você tem mais chance de vender alguma coisa.
Variedade rima com oportunidade.
Claro que isto não era somente na Glória. A minha querida
Rua do Catete era mostruário permanente para vendedores de livros e de elepês de
vinil que viram várias vezes a cor da minha carteira. Ainda hoje começa ali um
próspero mercado-persa, na esquina de frente para o MacDonalds e de quina para
o caldo de cana. Mas daí em diante já são tendinhas, são barraquinhas que vão
até o Cine São Luiz. Já é um comércio mais profissionalizado, mais
com-estrutura.
O que me atrai são as lonas e as cobertas de plástico, estendidas
no chão, ao ar livre. Talvez porque me evoquem os vendedores de folheto de
cordel na feira de Campina. Folhetos, aliás, que rarissimamente vi pendurados
em cordéis. Sempre os vi espalhados no chão com a capa pra cima, o vento da
manhã fazendo drapejarem as páginas, como pequeninas bandeiras do país da
imaginação.
Pois é, fico poético quando vejo a poesia dessa esperança
mercantil, dessa confiança de que basta expor na calçada uma coleira-de-cachorro
sem cachorro para vendê-la. Há de haver em algum lugar da cidade uma pessoa com
cachorro e sem coleira, capaz de parar, erguer as mãos pro céu e dizer: “Mas
olhe só que sorte a minha!...”
Uma coleira-de-cachorro sem cachorro, um par de bibelôs
de pastorinhas, quatro canetas-tinteiro uma sem tampa, dois pares de
sapato-alto feminino, um ralador de cozinha, um estetoscópio enferrujado, uma
pilha de disquetes flexíveis, um cinturão com fivela redonda, um chuveiro
Lorenzetti, uma bandeja retangular de plástico, uma chupeta de bebê.
Outras minas inesperadas, mas promissoras, são os
arredores da Praça da Cruz Vermelha (onde fica o Instituto do Câncer; arredores
de hospitais são focos permanentes de aglomeração), as imediações da Central do
Brasil, as saídas do metrô do Largo do Machado, alguns trechos de calçada larga
na Rua México ou Graça Aranha...
Uma bola de vôlei meio murcha, um monitor empoeirado, uma
vitrola portátil com tampa, um espremedor-de-laranja de vidro, uma sombrinha
estampada, uma figa da Guiné em madeira, uma pilha de máscaras de carnaval,
quatro benjamins, um ferro elétrico, uma viseira verde de revisor, um
porta-toalhas de madeira entalhada, uma pilha de CDs sem capa, meia dúzia de
frascos de remédios, um telefone preto com fio, uma gravura emoldurada de Santa
Luzia, vários rolos de fio elétrico de diferentes tipos, um porta-jóias em
ferro fundido.
A necessidade de vender alguma coisa por alguns trocados faz
o pessoal arrebanhar essa troçada, trazer com esforço, arrumar com carinho,
exibir com esperança. Se a gente pergunta, eles dão de ombros e dizem: “Nunca
se sabe. Pode ser que interesse a alguém.”
Um sociólogo argumentaria, com certa razão, que essas
pessoas veem-se a um passo da mendicância, mas relutam em entregar-se a ela. Em
vez de pedir, preferem oferecer algo em troca, preferem sentir que ainda têm
algum poder de barganha, ainda participam de transações equitativas, toma lá,
dá cá. Não é esmola.
Isso constitui uma faixa muito específica do conceito
“comerciante”, da rubrica “comerciante”. Não é simplesmente o cara habilidoso e
lucreiro. Não é simplesmente o cara bonachão e regateador. Não é simplesmente o
cara raposa e impiedoso com o vacilo alheio. Não é simplesmente o cara solene e
crente de que está cumprindo uma missão social.
É a pessoa que percebeu os mil mecanismos randômicos que
movem o mundo e se entregou a eles, feliz como quem preenche com uns números
quaisquer as dezenas da loteria, como quem faz sua aposta onírica na mesinha do
bicho.
Tudo é acaso, tudo é sorte e azar, tudo paira numa
neblina de possibilidades. e tudo despenca na bigorna de uma surpresa.
Não sabemos o que vai vender, nem quem vai comprar. Temos
aqui os nossos produtozinhos, eles são espalhados e expostos ao dedo indicador
do Acaso. Não sabemos se tem comprador pra tudo. Para alguma coisa, tem.