domingo, 6 de abril de 2025

5169) "Flow" e a arte de narrar (6.4.2025)



 
Flow (2024), dirigido por Gints Zilbalodis, é um filme feito na Letônia, e que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Animação. Está em cartaz em vários lugares pelo Brasil afora. 
 
O  principal encanto narrativo de Flow está sugerido no próprio título, que indica a noção de fluir, de fluência, de fluxo, de um fluido que escorre sem se deixar reter. 
 
Esta imagem provém, é claro, da situação inicial do filme. Uma floresta cheia de animais (e sem seres humanos visíveis) é invadida de repente por uma inundação, devido a um tsunami ou outro fenômeno parecido. As águas invadem tudo, elevando-se irresistivelmente, em poucos minutos. 




A narrativa acompanha um grupo de quatro animais unidos pela fuga e pelas circunstâncias: um Gato, um Cão, um Lêmur e uma Capivara. Eles se esbarram durante a fuga, brigam, afastam-se, reaproximam-se, ignoram-se, salvam-se mutuamente. 
 
Tudo isto ocorre numa dinâmica de surpresas, improvisos, atitudes espontâneas, tudo condicionado  pelos problemas imediatos que um deles, ou o grupo, é forçado a enfrentar. 



 
Flow é uma lição de narrativa porque de minuto a minuto aparece uma situação nova; um problema inesperado; uma solução salvadora; uma consequência não-prevista dessa solução; um re-arranjo de comportamento para contornar esse novo obstáculo; a chegada de um personagem novo; a hostilidade inicial desse encontro; o desequilíbrio de forças que um minuto atrás pareciam ter negociado satisfatoriamente os respectivos espaços. 
 
E tudo isto sem o benefício de um diálogo sequer. 
 
Os bichos de Flow não são bichos humanizados como os da Disney ou da Pixar, que não passam de seres humanos que pensam, falam, agem e vivem como seres humanos, mesmo tendo forma exterior de animais – como o Pato Donald e o rato Mickey. 
 
Em Flow, os bichos parecem se comportar da maneira instintiva e arisca dos respectivos bichos da vida real – o gato age como um gato qualquer, a capivara como uma capivara, e assim por diante. Suas atitudes não são as de bichos capazes de raciocinar, prever, deduzir como seres humanos. São atitudes de bichos que, diante de um perigo ou de uma vantagem, agem de acordo, como um bicho o faria. 




Claro que existe um trabalho sub-liminar de humanização nesses personagens, permitindo-nos deduzir ou prever muitas de suas ações. São as ações que nós, espectadores torcendo pelo seu sucesso, esperamos que eles pratiquem. 
 
A animação do filme, ao que se diz, foi feita com o software Blender, um software tão acessível que muitos amigos meus disseram: “Tenho no meu computador... Não é dos melhores, mas é bastante bom.”  Levou cinco anos. 
 
E cabe à animação projetar nesses animaizinhos mais uma tintura de verossimilhança, dando-lhes os movimentos característicos dos animais, algo que certamente requereu muitas e muitas horas de observação e de reprodução minuciosa, principalmente no personagem Gato, o que mais aparece e que arrasta consigo a narrativa. 




Graças a isto, aceitamos que aquele gato parece de fato um gato e se move, caminha, pula, escapole, esgueira-se e briga como gato. Essa verossimilhança física nos ajuda a aceitar que nos momentos mais fantasiosos da ação é mesmo um gato que está fazendo aquilo – p. ex., algumas acrobacias mais heróicas. 
 
É algo equivalente, na extremidade oposta do espectro, ao que os gibis de Walt Disney conseguem com a turma de Mickey e Donald. Essa turma se comporta de maneira tão inconfundivelmente humana que rapidamente qualquer criança aceita suas aventuras e seu universo, sem perguntar por que razão um deles é um rato de calças e o outro um pato sem calças. 
 
Os bichos de Flow têm essa plausibilidade visual (graças à boa animação) e psicológica (graças ao bom roteiro) para que os aceitemos totalmente como bichos, mesmo naqueles instantes em que, para corresponder às exigências cada vez mais dramáticas da história, eles precisam fazer coisas que bicho nenhum faria com tal fluência. Como quando eles, refugiados num barco à deriva, começam instintivamente a manejar a vela e o leme. 


 
E aí voltamos à questão do fluxo, do desenrolar contínuo e sem descanso da narrativa. É uma narrativa que nada tem de hitchcockiana, mas parece seguir ao pé da letra um dos lemas de Alfred Hitchcock: “Se a ação for suficientemente fascinante e suficientemente rápida, o público não terá tempo de se perguntar se aquilo é plausível ou não”. 
 
Flow tem cerca de uma hora e meia de duração, não tem tempos mortos. Os animais fogem das águas que se elevam, sobem em árvores, sobem em barcos, deixam-se levar pela correnteza, são atacados por pássaros, se viram como podem. 
 
Não há seres humanos na história. A correnteza os leva às ruínas de uma cidade, mas são ruínas já muito antigas, sem relação com o tsunami presente. Quem construiu aqueles palácios, aquelas muralhas, já se extinguiu há muito tempo. Os animais não parecem guardar memória alguma daquele ambiente. 
 
Seu mundo é um eterno presente, como o dos animais em geral parece ser. O passado existe, mas só o passado recente; e o presente, um compasso de espera até a próxima decisão de sobrevivência. 
 
É uma narrativa que parece levar em conta um princípio posto em prática por muitos ficcionistas, seja da literatura, do cinema, etc.  É o da narrativa onde só conta o que acabou de acontecer, ou, como dizem alguma “a narrativa Fibonacci”. 
 
A série de Fibonacci, para quem não conhece, é um artifício matemático com mil e uma utilidades. É uma série infinita de números onde cada novo número a ser adicionado é simplesmente a soma dos dois anteriores. 
 
Eis a série de Fibonacci em sua versão básica: 
 
1 – 1 – 2 – 3 – 5 – 8 – 13 – 21 – 34 – 55 – 89 - ... ... ...
 
Cada número é a soma dos dois que o antecedem: 89 = 55 +34; 55 = 34 + 21; e assim por diante. 
 
Este princípio pode ser mais ou menos aplicado à narrativa de ficção. Sem muita exatidão, claro, para não virar uma obrigação mecânica. Mas como um recurso que pode ajudar naqueles momentos em que o escritor não sabe com muita clareza o que fazer em seguida. 
 
O princípio básico deste recurso pode ser expresso assim: A próxima cena a ser escrita precisa desenvolver elementos que estavam presentes na última e na penúltima
 
Isto não é uma obrigação. É uma possibilidade útil. 
 
Até porque outro recurso importantíssimo é justamente o reaparecimento de algum elemento (um personagem, uma situação, um local, etc.) que o espectador tinha visto meia hora atrás, e do qual já tinha esquecido. Quando aquilo reaparece, e reaparece de maneira dramática, com impacto, ele pensa, subconscientemente: “ih, é mesmo, tinha esse detalhe, nem me lembrava, mas é isso mesmo”. 
 
O efeito “série Fibonacci”, no entanto, lida com outra tática. A tática de fazer algum malabarismo com elementos que o espectador ou o leitor acabou de conhecer, tem ainda vívidos na memória, e muitas vezes espera algum desenvolvimento. Situações tipo “ih, agora eles conseguiram isto, daqui pra frente tudo vai ser diferente”. 
 
A narrativa flutua com segurança entre o grande conflito (como os bichos sobreviverão à inundação?) e os conflitozinhos menores – principalmente quando os quatro conseguem se refugiar no barco-a-vela e isso produz uma série de pequenas rivalidades, pois cada um quer uma coisa diferente a cada momento. 


 
Flow é um filme de ação. É engraçado dizer isso, porque no linguajar de hoje em dia “filme de ação” implica sempre em ação humana violenta, em confrontos físicos, brigas de arma em punho, e assim por diante. A ação não-humana deste filme torna-se humana pelo grau de empatia que conseguimos desenvolver para com um gato que tenta não morrer afogado; e com o nosso grau de entendimento desses pequenos conflitos intra-grupo, em que os bichos não são muito diferentes de nós. 
 
Flow levou cinco anos em preparação, é hoje o filme de maior sucesso na história da Letônia, um país com menos de 2 milhões de habitantes. Um estátua do Gato foi erigida em sua homenagem na capital, Riga. 


 




quinta-feira, 3 de abril de 2025

5168) Brasileiro vende quase tudo (3.4.2025)



 
O brasileiro nasceu para ser comerciante, negociante. Acredito que existe sangue fenício entre nós, não porque tenha visto provas genéticas disto, mas porque cresci ouvindo dizer que fenício e comerciante são sinônimos. 
 
O brasileiro vende tudo? Não propriamente: mas o brasileiro acredita que tem comprador para tudo. 
 
Morei alguns anos no Catete, ali entre a Nona Delegacia e a Pedreira da Glória. 
 
Andava muito pelos arredores, que amo até hoje. O zero cartesiano do meu Rio de Janeiro fica no Largo do Machado. 
 
Frequentei muito a Biblioteca da Glória, na rua homônima, num prediozinho discreto, diante da calçada cheia de árvores de onde Pedro Nava deu adeus. 
 
As calçadas da Glória são geralmente largas, como eram as calçadas numa época em que os pedestres eram mais numerosos do que os cabriolés.  São especialmente largas naquele trecho em frente ao Palácio do Bispo. 
 
Recém-desembarcado no Rio, eu era (ainda sou) curioso com um monte de coisas que os autóctones nem ligam, porque aquilo faz parte da vida deles há mais de 400 anos. Mas é assim mesmo. Os que vêm da Europa se maravilham com maracujá, capivara, marimbondo, espada-de-são-jorge, jabuticaba, sagüim. 
 
Eu me maravilhava – não com a natureza local, mas com a cultura. Os nativos estendiam lonas bem largas na calçada, diante do Palácio do Bispo, com um tijolo em cada canto, e ali distribuíam coisas à venda. Eu parava e ficava computando. 
 
Um par de tênis usados, quatro torneiras enferrujadas, lápis de todos os tamanhos e às vezes sem ponta, óculos arranhados, sandálias havaianas às vezes desemparelhadas, um calidoscópio, três canecas de louça, dois pratos de ágata, um álbum de fotos, quatro sutiãs, vários gibis da Mônica. 
 
A vendedora era às vezes uma mulher de seus 60 anos, sentada no meio-fio, pano amarrado na cabeça, cigarro no dedo. Bastava a gente parar e ela abria um sorriso incompleto e fazia um gesto largo abrangendo tudo: 
 
-- Pode olhar, meu fio!... Pode escolher! 
 
O brasileiro acredita que existe comprador para tudo. E deve mesmo existir comprador para alguma daquelas coisas, porque senão aquela senhora não se animaria a descer a ladeira de Santo Amaro e expor seus cacarecos-relíquia. 
 
Alguma coisa ela devia vender! E no fim do dia, ao recolher aquela enorme trouxa sacolejante, podia parar ali mesmo na Padaria da esquina e comprar 3 ou 4 pães. Só quem já precisou de um pão sabe o que valem três ou quatro. 
 
No outro dia eu passava e mais adiante estava uma lona também sortida, vigiada por um guri de boné pra frente com uma marmitinha do lado.
 
Uma panela de pressão com tampa, um oratório de madeira faltando uma banda, três pentes e uma escova, um mapa do Brasil plastificado, duas tampas de ralo de pia, um montinho de camisetas passadas a ferro, alguns passarinhos de plástico, um chapéu preto com peninha na fita, um colete de seda, um copo de liquidificador, uma imagem do Padre Cícero, um desentupidor de pia, alguns cadernos de espiral cheios de lições copiadas, uma gravata borboleta. 



 
Existe uma lei não-escrita do comércio que diz mais ou menos assim: se você tem 200 coisas para vender e são 200 cachimbos, você só atrai um público, o dos compradores de cachimbo. Mas se você tem 200 objetos para vender e ali tem cachimbo, vaso de louça, livro, anágua, copo, prato, chinelo... você tem mais chance de vender alguma coisa. 
 
Variedade rima com oportunidade. 
 
Claro que isto não era somente na Glória. A minha querida Rua do Catete era mostruário permanente para vendedores de livros e de elepês de vinil que viram várias vezes a cor da minha carteira. Ainda hoje começa ali um próspero mercado-persa, na esquina de frente para o MacDonalds e de quina para o caldo de cana. Mas daí em diante já são tendinhas, são barraquinhas que vão até o Cine São Luiz. Já é um comércio mais profissionalizado, mais com-estrutura. 
 
O que me atrai são as lonas e as cobertas de plástico, estendidas no chão, ao ar livre. Talvez porque me evoquem os vendedores de folheto de cordel na feira de Campina. Folhetos, aliás, que rarissimamente vi pendurados em cordéis. Sempre os vi espalhados no chão com a capa pra cima, o vento da manhã fazendo drapejarem as páginas, como pequeninas bandeiras do país da imaginação. 
 
Pois é, fico poético quando vejo a poesia dessa esperança mercantil, dessa confiança de que basta expor na calçada uma coleira-de-cachorro sem cachorro para vendê-la. Há de haver em algum lugar da cidade uma pessoa com cachorro e sem coleira, capaz de parar, erguer as mãos pro céu e dizer: “Mas olhe só que sorte a minha!...” 
 
Uma coleira-de-cachorro sem cachorro, um par de bibelôs de pastorinhas, quatro canetas-tinteiro uma sem tampa, dois pares de sapato-alto feminino, um ralador de cozinha, um estetoscópio enferrujado, uma pilha de disquetes flexíveis, um cinturão com fivela redonda, um chuveiro Lorenzetti, uma bandeja retangular de plástico, uma chupeta de bebê. 
 
Outras minas inesperadas, mas promissoras, são os arredores da Praça da Cruz Vermelha (onde fica o Instituto do Câncer; arredores de hospitais são focos permanentes de aglomeração), as imediações da Central do Brasil, as saídas do metrô do Largo do Machado, alguns trechos de calçada larga na Rua México ou Graça Aranha... 
 
Uma bola de vôlei meio murcha, um monitor empoeirado, uma vitrola portátil com tampa, um espremedor-de-laranja de vidro, uma sombrinha estampada, uma figa da Guiné em madeira, uma pilha de máscaras de carnaval, quatro benjamins, um ferro elétrico, uma viseira verde de revisor, um porta-toalhas de madeira entalhada, uma pilha de CDs sem capa, meia dúzia de frascos de remédios, um telefone preto com fio, uma gravura emoldurada de Santa Luzia, vários rolos de fio elétrico de diferentes tipos, um porta-jóias em ferro fundido. 
 
A necessidade de vender alguma coisa por alguns trocados faz o pessoal arrebanhar essa troçada, trazer com esforço, arrumar com carinho, exibir com esperança. Se a gente pergunta, eles dão de ombros e dizem: “Nunca se sabe. Pode ser que interesse a alguém.” 





Um sociólogo argumentaria, com certa razão, que essas pessoas veem-se a um passo da mendicância, mas relutam em entregar-se a ela. Em vez de pedir, preferem oferecer algo em troca, preferem sentir que ainda têm algum poder de barganha, ainda participam de transações equitativas, toma lá, dá cá. Não é esmola. 
 
Isso constitui uma faixa muito específica do conceito “comerciante”, da rubrica “comerciante”. Não é simplesmente o cara habilidoso e lucreiro. Não é simplesmente o cara bonachão e regateador. Não é simplesmente o cara raposa e impiedoso com o vacilo alheio. Não é simplesmente o cara solene e crente de que está cumprindo uma missão social. 
 
É a pessoa que percebeu os mil mecanismos randômicos que movem o mundo e se entregou a eles, feliz como quem preenche com uns números quaisquer as dezenas da loteria, como quem faz sua aposta onírica na mesinha do bicho. 
 
Tudo é acaso, tudo é sorte e azar, tudo paira numa neblina de possibilidades. e tudo despenca na bigorna de uma surpresa. 
 
Não sabemos o que vai vender, nem quem vai comprar. Temos aqui os nossos produtozinhos, eles são espalhados e expostos ao dedo indicador do Acaso. Não sabemos se tem comprador pra tudo. Para alguma coisa, tem.