A comunidade de ficção científica dos EUA está
comemorando de maneira especial o lançamento da antologia The Last Dangerous
Visions, organizada por Harlan Ellison. O livro é bom? É ruim? Não sei – ainda
não li, e no momento o que menos importa é a qualidade literária. O livro é um
acontecimento.
Eu nunca imaginei que viveria o suficiente para ver esse
livro nas vitrines (ainda que virtualmente), porque o livro é uma lenda, é um
desses famosos “projetos irrealizáveis”. Passou décadas na gaveta. E depois que
o próprio organizador, Ellison, morreu em 2018, aí sim. Pensei comigo mesmo: “babau,
Tia Chica”.
Uma coisa interessante no mundo das letras e das artes é
a existência de obras que se tornam lendárias antes mesmo de existirem
oficialmente. Obras que são anunciadas durante anos e anos mas demoram a vir à
luz.
É o fenômeno que o inesquecível Orlando Tejo batizou como
“o Vai-e-Vem do Sai-Não-Sai”, quando narrou a via-crucis de redação e
publicação do seu clássico Zé Limeira, o Poeta do Absurdo.
Às vezes um filme é anunciado com algum estardalhaço,
chega a ficar pronto, mas... ninguém o lança. Ele vai para o depósito da
produtora. Por que? Às vezes porque todos os envolvidos concordam: ficou tão
ruim que não lançá-lo dá menos prejuízo do que lançá-lo e desvalorizar o
currículo de dezenas de pessoas.
Ou porque o assunto é espinhoso, delicado, quem sabe? É o
caso, talvez, do famoso filme de Jerry Lewis The Day The Clown Cried (1972),
que ele nem chegou a completar. Este filme é a história de um palhaço de circo
preso num campo de concentração nazista, onde recebe a missão de ajudar a levar
as crianças para as câmaras de gás. Os poucos que viram esse filme dizem que
prefeririam não ter visto.
Filmes incompletos são muitos: o fato de ficarem
incompletos ajuda a perpetuar seu mito, e não é impossível que décadas depois
alguém arregace as mangas e resolva terminá-los.
Pode ser o próprio diretor, como fez Terry Gilliam com The
Man Who Killed Don Quixote, iniciado em 2000, exilado para o freezer, e
concluído apenas em 2018. Pode ser algum amigo, como Peter Bogdanovich fez com The
Other Side of the Wind, deixado no limbo por Orson Welles.
Um filme geralmente envolve gente demais, dinheiro
demais, interesses demais. Problema atrás de problema. Já um disco parece ser
algo mais simples, pelo menos um disco de rock, com uma banda que já toca em
conjunto há anos.
Quando o Guns’n’Roses anunciou um álbum chamado Chinese
Democracy, a conturbada década de 1990 estava apenas começando. Alguns
integrantes da banda caíram fora, as brigas internas se acirraram, mais de 50
canções foram compostas e provisoriamente descartadas, e o disco chegou a ser
considerado o disco mais caro da história do rock, até ser lançado, aos trancos
e barrancos, em 2008.
Presta? Não
presta? É questão de critério pessoal; o
que ninguém discute é que é uma obra que nasce dentro de uma lenda.
Uma via-crucis parecida foi cumprida pelo filme Chatô de
Guilherme Fontes, cuja produção começou em 1995, foi intensamente discutido e
questionado durante os anos seguintes, e só foi lançado em 2015.
Prometo não fazer aqui nenhum comentário a respeito do
prometidíssimo The Winds of Winter, de George R. R. Martin, o livro final da
série “A Song of Ice and Fire”, que para muitos seria a chave-de-ouro da série
“Game of Thrones”, e para outros a derradeira pá de cal.
Voltemos a The Last Dangerous Visions.
Em 1967, Harlan Ellison lançou a antologia Dangerous
Visions, que foi um modesto terremoto na ficção científica norte-americana.
Ellison, um indivíduo brigão, hiper-ativo, articulado, dotado de um estilo
elétrico e provocador, queria uma antologia para “desafinar o coro dos
contentes”, como dizia Torquato Neto. Na introdução do livro ele dizia: “O que
você tem nas mãos é mais do que um livro. Se tivermos sorte, será uma
revolução”.
Seu objetivo era claro: ele encomendou aos autores o
conto mais desafiador, mais provocativo, mais arriscado e mais perigoso que
eles tivessem na gaveta ou fossem capazes de escrever. No tema, no estilo, na
linguagem, nas idéias – não importa. Ellison dizia: “Mande para mim aquele
conto que NINGUÉM teria coragem de publicar. Eu tenho.”
Dangerous Visions saiu com 33 contos inéditos, foi um
sucesso de vendas, teve várias reedições, alguns dos contos ganharam
prêmios. Um volume com 295 mil palavras
que teve o impacto previsto pelo organizador. Dizia ele, à página xxii da
edição de bolso da Signet, na introdução “Thirty-two Soothsayers”:
Os escritores, um após o outro, estão pré-censurando sua obra antes mesmo de escrevê-la, porque sabem que o editor Fulano não gosta de discussões políticas nas suas páginas, ou que o editor Sicrano tem receio de explorar o sexo do futuro, ou que Beltrano não costuma pagar a não ser em forma de feijão e arroz. Então... por que se dar o trabalho de queimar todas aquelas células cinzentas num conceito audacioso, quando tudo que o síndico da revista deseja publicar é mais uma história de cientista louco? (...) E ninguém dizia a esses escritores: “Tire o pé do freio! Não tem mais contraindicações! Diga o que quiser dizer!” Até que surgiu o presente livro. (trad. BT)
Os bons resultados animaram Ellison a produzir em 1972
uma segunda antologia, Again, Dangerous Visions, desta vez com 46 histórias
(algumas delas na verdade são grupos de duas ou três histórias curtas), incluindo
apenas autores que não apareceram na primeira antologia; e mais uma vez ganhou elogios
e prêmios.
Na introdução a esse segundo volume, “As Assault of New
Dreamers” (Pan, 1976), ele dizia:
Quatro anos e meio depois, depois de vender cinquenta mil livros em capa-dura e sabe Deus quantos livros em edições de bolso, Dangerous Visions tornou-se um divisor-de-águas (e pelo menos desta vez minhas fantasias ególatras se realizaram) e forçou a criação de um segundo volume, maior que o primeiro. (...) Ele foi reimpresso pelo Science Fiction Book Club e vendeu mais de 45 mil cópias. (pág. ix-x) (trad. BT)
Então... Ellison anuncia para 1973 um terceiro volume
para encerrar a série: The Last Dangerous Visions.
Que chegou às livrarias somente agora – em setembro de
2024.
O que aconteceu nesse intervalo é uma dessas histórias de
mercado editorial que nem sempre interessam ao grande público, mas servem para
nós, escritores, editores, críticos, como um termômetro para avaliar uma porção
de coisas: os riscos que autores e editores estão dispostos a correr; a
evolução (ou involução) dos conceitos do que é admissível ou não numa obra
literária; as fronteiras do “politicamente correto”; as brechas para propor
recursos de vanguarda literária numa forma basicamente comercial e popular; as
vantagens e as desvantagens da “atitude” em relação à qualidade literária, e
assim por diante.
O verbete da Wikipedia sobre The Last Dangerous Visions registra
que por volta de 1979 a antologia já tinha crescido para um total de 113
contos, a serem publicados em três volumes. Incerteza comercial, problemas
burocráticos e desentendimentos de Ellison com autores e editores foram
atrasando o projeto. Muita gente disse: “Me dá meu conto de volta, já que não
vai mesmo publicar”. O inglês Christopher Priest aborreceu-se tanto que
escreveu um livro sobre a polêmica (The Book on the Edge of Forever, 1993).
Michael Moorcock preferia reagir com bom humor:
Eu e Harlan somos bons amigos. De cinco em cinco anos eu pego de volta meu conto que está na antologia, publico em outro lugar, e depois mando um conto novo para ele.
Autores foram morrendo, contos foram retirados... e o
volume que saiu agora se anuncia com um total de 31 contos por 23 autores. A
organização coube ao heróico J. Michael Straczynski (um dos criadores das séries
Babylon 5 e Sense8), amigo de Ellison e seu executor testamentário.
Um dos aspectos dicutidos desta nova edição é a franqueza
do prefácio (que não li) em que é discutida de forma aberta a questão da
“desordem bipolar” de Ellison, fonte de muitas de suas brigas dentro do mercado
editorial e do mundo literário.
Aqui, uma entrevista (sem legendas) com Ellison nos anos
1970, na época em que ele já havia publicado os dois primeiros volumes da
série. Ellison em plena forma.
https://www.youtube.com/watch?v=DDxnsNw4FZI
E outra, de 1998, ou seja, no que podemos chamar de sua fase
“madura”:
https://www.youtube.com/watch?v=f-KueIGzn1g
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