sexta-feira, 18 de outubro de 2024

5113) A ficção científica interiorana (18.10.2024)





Em geral, temos da ficção científica uma imagem futurista, voltada para a alta tecnologia, as megalópoles, os centros nevrálgicos do poder. Faz sentido. No século 19, as grandes obras do Romance Científico vinham de Paris (Jules Verne) ou de Londres (H. G. Wells). No século 20, as revistas e as editoras que formataram a FC norte-americana estavam quase todas sediadas em Nova York. 
 
A imagem que melhor sintetiza essa vocação megalopolitana da FC é a imagem da série “Cities in Flight”, de James Blish, em que nossas grandes cidades, protegidas por cúpulas transparentes, erguem-se no ar como espaçonaves colossais e saem viajando pelo universo afora. 




Na direção contrária, temos uma ficção científica com os pés plantados no interior, nas regiões rurais, nos cafundós remotos, no que em diferentes lugares é chamado de “backlands”, “outback”, “sertão”. Onde o confronto com o futuro (e com alienígenas, e com dobras temporais, e com portais para outras dimensões, etc.) se dá não por meio de cientistas e heróis urbanóides, mas fazendeiros, caipiras, gente simples do interior. 



(capa: Infante do Carmo)


Talvez o melhor exemplo desta vertente seja o clássico Way Station (1963) de Clifford D. Simak. Um fazendeiro solitário, Enoch Wallace, é contactado por alienígenas para que sua fazenda sirva de camuflagem para uma “estação de trânsito” de viajantes que se destinam a diferentes pontos de galáxia. A estação é instalada secretamente, ninguém fica sabendo, e Enoch passa a conviver com os viajantes mais inesperados e estranhos. 




Esta idéia básica serviu de ponto de partida para uma série recente da Amazon Prime, Night Sky criada por Holden Miller. Nela, Sissy Spacek e J. K. Simmons fazem um casal de fazendeiros idosos que descobriu, no subsolo de sua fazenda, a entrada de um portal que proporciona a visão de outro planeta, e talvez o acesso físico a ele. No decorrer da série, descobrimos que eles não são os únicos, e que no mundo inteiro, geralmente em lugares remotos do interior, há portais semelhantes. 


Outra série recente é Outer Range (Amazon Prime), em que o fazendeiro interpretado por Josh Brolin descobre um imenso buraco em sua propriedade, aparentemente sem fundo, mas que depois se percebe ser um portal para se viajar no tempo. 
 
A FC tradicional é ridicularizada pelos críticos por sua mania (principalmente no cinema) de fazer com que os extraterrestres, com todo o planeta à sua disposição para pousar, se dirijam sempre à capital do Estados Unidos. Vai de encontro inclusive a uma certa lógica que permeia toda a Ufologia – a de que supostos viajantes prefeririam evitar centros povoados e militarmente defendidos, e se sentiriam mais à vontade pousando em lugares remotos e contatando pessoas isoladas. 
 
Uma argumentação interessante sobre os usos literários disto é desenvolvida pelo crítico Gary K. Wolfe (Locus Magazine, março de 1999), ao comentar a obra de dois escritores “interioranos” que ambientam suas histórias em sua região de origem: Robert Reed (de Nebraska) e Bill Johnson (de South Dakota). 
 
Wolfe faz comparações entre a paisagem de origem dos autores (as planícies intermináveis do Meio Oeste) e os cenários surreais que imaginam. Faz também uma curiosa análise de um dos contos mais conhecidos de Bill Johnson, “We Wil Drink a Fish Together”, sobre uma complicada interação envolvendo caipiras locais, alienígenas e agentes do governo. Ele comenta, a certa altura: 
 
Um dos motivos pelos quais os vilarejos do interior acabam servindo como local de acolhida para visitantes extraterrestres é simplesmente o fato de que essas cidadezinhas sempre tiveram que lidar com alienígenas. Qualquer visitante de fora é para eles um risco bastante visível de intervenção cultural, mas ao mesmo tempo são esses visitantes que mantêm viva a economia local. Com exemplos como os de Robert Reed e Bill Johnson, já podemos especular sobre o que define a Ficção Científica das Grandes Planícies: não apenas as paisagens vastas e vazias e o céu imenso, mas as pequenas comunidades que sobrevivem no meio de amplos espaços hostis, desconfiadas em relação aos intrusos e orgulhosas de suas estratégias de sobrevivência – o que não as torna muito diferentes de bases espaciais em asteróides, estações orbitais e colônias interplanetárias. (trad. BT)
 




(BING – Prompt: “Desenho hiper-realista, preto-e-branco. Uma paisagem caipira, do interior, com uma casinha de agricultor, cerca, riacho, e parada ali perto uma pequena espaçonave com um alienígena ao lado.”) 


A FC é acusada por muita gente, inclusive por mim, de alimentar um veio excessivamente militarista, explorando conceitos tipo “a conquista do espaço”. Para estas obras,  o Sistema Solar e a Galáxia são espaços a serem conquistados, invadidos, dominados por bem ou por mal. Em sua faceta mais paranóica, os invadidos somos nós, mas isto faz pouca diferença. Para esses autores, a FC é um ramo da ficção militarista, de guerra, de conquista, mesmo quando somos nós os conquistados. 
 
Do lado oposto, há esse tipo de FC interiorana, o qual se conecta com outro, que sempre me interessou: as histórias de presença alienígena entre nós, mas uma presença discreta, despercebida, porque eles são parecidos conosco, biologicamente adaptáveis (à nossa atmosfera, alimentação, etc.), e podem perfeitamente passar por seres humanos como nós. 
 
E não estão aqui para invadir ou guerrear. Vieram a trabalho, ou a estudo, ou apenas por curiosidade; mantêm-se incógnitos porque rapidamente descobrem que aqui na Terra o destino de um extraterrestre desmascarado será, na melhor das hipóteses, o cárcere num laboratório subterrâneo de pesquisas, e na pior o linchamento sumário no meio da rua. 
 
E é nesse filão literário que as histórias de FC se aproximam do que podemos chamar de “ficções do imigrante”, um tipo de ficção que nos EUA tem um papel mais importante do que o que tem na literatura brasileira. Os EUA já se orgulharam de ser um “melting pot”, um cadinho onde se misturaram irlandeses, ingleses, alemães, holandeses, judeus, mexicanos, italianos, o escambau. Esses migrantes todos produziram uma literatura vasta, ou foram objeto dela. 
 
O extraterrestre é um imigrante a mais, um tanto esquivo, um tanto arredio, sempre observador, cumprindo sempre alguma agenda secreta (cada história tem premissas diferentes) mas não propriamente hostil. Tudo que ele quer é ser aceito, é que o deixem em paz. 




Há um romance de Algis Budrys, Hard Landing (1993) em que um grupo de extraterrestres se acidenta na Terra, perde a nave e não consegue voltar. Eles se misturam à população, e cresce daí uma história de suspense, porque cada um deles (são quatro astronautas durões, cheios de recursos) tem um comportamento dierente, e há uma tensão maior entre eles do que entre eles e os terrestres. 
 
Budrys, autor de excelentes romances como Rogue Moon (1960) e Who? (1950), nasceu na Lituânia, e veio criança para os EUA; seu pai era exilado político. Ele diz: 
 
Uma boa parte da minha vida, quando criança, se passou em carros, ou trens, conversando com gente estranha, falando em vários idiomas, nunca parando quieto em lugar nenhum. 
 
O migrante será sempre um Outro, será sempre visto, em qualquer país, como alguém que “não é um de nós”, um estrangeiro, um estranho, um extra-terrestre, um alienígena. Alguém que “não é daqui da nossa terra”.  Essa perspectiva pode ser usada para histórias que transcorrem no anonimato das grandes cidades, é claro; mas parece que muitos escritores preferem se focar no choque cultural das pequenas comunidades diante da chegada rara e repentina de um Estranho. 
 
 
 



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