domingo, 15 de setembro de 2024

5102) A arte de inventar palavras (15.9.2024)




Devem ser poucos os leitores jovens que tenham ouvido falar no Dr. Castro Lopes (1827-1901), um filólogo que foi um dos grandes defensores da pureza do nosso idioma.  
 
Defender a pureza absoluta do idioma é tão utópico quanto como defender a pureza absoluta do ar que respiramos.  O mais que podemos fazer é controlar o nível de poluição e lutar para que o resultado seja bom para a saúde.  
 
O Dr. Castro Lopes defendia nossa saúde verbal combatendo os galicismos, palavras de origem francesa. Naquela época, o grande referencial para quem queria ser “chic” no Brasil era o francês; hoje, o referencial para quem quer ser “cool” é o inglês.  
 
Para combater essa influência, que considerava nefasta, Castro Lopes passou a inventar palavras com raízes gregas ou latinas. Pelo seu raciocínio, ao que parece, o Brasil tinha mais a ver com Roma e a Grécia antiga do que com a França. 
 
O problema era que na sua mente de erudito bastava que a palavra fizesse sentido, filologicamente, para estar justificada.  Por exemplo: ele não gostava de “abajur”, palavra derivada do francês “abat-jour”; e propunha, para substituí-la, “lucivelo”.  Por que não usá-la? É uma palavra que contém as mesmas idéias, de “luz” (jour/luci) e de “ocultar” (abat/velo). 
 
Por algum razão, a palavra inventada não pegou.  Em toda minha vida, só vi essa palavra em artigos sobre o Dr. Castro Lopes. Por outro lado, na Paraíba todo mundo chamava o objeto de “quebra-luz”. 
 
Outro galicismo que ele abominava era “piquenique”, aportuguesamento do francês “pic-nic”: e propôs  em seu lugar “convescote”.  Esta chegou a ter uma certa aceitação, mas não substituiu a outra.  O doutor não gostava de “chofer” (do francês “chauffeur”) e sugeriu dizermos “cinesíforo”.  Não gostava de “galocha”, e propôs usarmos “anidropodoteca”.  E assim  por diante. 
 
Tenho grande admiração pelo doutor. Ele parece ter sido (não sei quase nada de sua biografia) um desses cientistas puros de coração, que se guiam pela razão e pela lógica, e ficam meio surpresos quando a Humanidade não os acompanha. Uma espécie de Sheldon Cooper das letras brasileiras. 
 
O exemplo do heróico doutor bastaria para chegarmos à conclusão falsa de que palavras inventadas não “pegam”, não se incorporam espontaneamente à língua.  Mas não é o que acontece.  Escritores (e também filólogos) criam palavras do nada, ou da justaposição inesperada de elementos, e em pouco tempo elas estão fazendo parte da nossa linguagem diária.  

Num dos seus prefácios a Tutaméia (“Hipotrélico”), Guimarães Rosa lista uma série de palavras e os autores que as inventaram (ou puseram em circulação): altruísmo (Auguste Comte), niilista (Turgueniev), egolatria (Rui Barbosa), necrotério (Alfredo de Taunay)... 




A estas poderíamos juntar intertextualidade (Julia Kristeva), anestesia (Oliver Wendell Holmes), eugenia (Sir Francis Galton), agnóstico (Thomas Huxley)...  
 
Atribui-se ao editor John W. Campbell, que pilotou durante décadas a revista Astounding Science Fiction, a criação do termo “hiperespaço” (“hyperspace”), para designar um espaço alternativo a este em que vivemos, um espaço onde fosse possível a uma nave viajar mais veloz do que a luz. 
 
Um método simples para inventar palavras é produzir uma variante de uma palavra já existente. Como Campbell fazia suas naves viajarem no “hiperespaço”, não me custou muito esforço sugerir (em A Espinha Dorsal da Memória, 1989) que os meus alienígenas, os Intrusos, viajavam no “hipertempo” (que em inglês seria “hypertime”), uma vez que tempo e espaço são apenas modos diferentes de nossa percepção do mesmo fenômeno. 
 
Guimarães Rosa foi um grande inventor de palavras novas, e há muitos livros dedicados exclusivamente a esse aspecto de seu talento literário.  
 
Rosa nem sempre inventava: às vezes recuperava, com pequenas alterações, palavras esquecidas.  “Nonada” e “tutaméia” são termos que ele repôs em circulação (pelo menos nos círculos literários), ambos significando ninharias, miudezas, coisas sem importância.  




No próprio volume de Tutaméia o autor nos presenteia com “fifrilim”, coisa insignificante (em “O Outro e o Outro”), “letrilhas”, versinhos populares (em “Sota e Barla”), “furta-flor”, o colorido do rosto de uma menina (em “Tresaventura”), “infinilhões”, grande quantidade (em “Estória no. 2”)... 
 
Por que ninguém usa estes termos, tão vívidos, tão intuitivamente verdadeiros?  Talvez porque sua origem literária seja evidente demais.  Os livros do escritor mineiro nos dão às vezes uma sensação constante de desperdício, de um léxico inteiro à disposição do povo, mas este não se sente à vontade para utilizá-lo porque o vê protegido (ou encarcerado) pela aura protetora da “literatura”. 
 
Os poemas de Carlos Drummond estão cheios de palavras cujo sentido e função poética são captados num instante: monstruário, incurioso, tremulargentina, ingaia...  
 
O poeta as inventa ou compõe por uma necessidade de expressão específica: para o assunto daquele poema, o tom de voz que o produz, os códigos verbais implícitos em cada um (erudito, irônico, paródico, etc.).  Talvez sejam palavras tão precisas, tão exatas, que só possam ser usadas uma vez. 
 
Ninguém pode prever se uma palavra vai ser incorporada à língua.  O próprio Dr. Castro Lopes, cujos fracassos mais retumbantes foram citados acima, nos proporcionou “cardápio”, que ainda hoje trava uma luta equilibrada com o francês “menu”.  “Cardápio” é uma palavra que pegou, pelo menos nos restaurantes. Por que?  É difícil saber.  
 
É relativamente mais fácil uma palavra nova se impor no meio mais erudito, no meio científico, quando corresponde à necessidade de encapsular num só termo um conceito novo ou complexo. É uma palavra que já nasce com a intenção de tornar-se propriedade coletiva. 
 
A palavra inventada com fins literários, porém, parece mais presa à personalidade de quem a inventou.  Basta ver a obra de notórios inventores como Lewis Carroll e James Joyce, para perceber que é ínfima a percentagem de palavras suas que chegaram à linguagem do dia a dia.  Talvez o uso desses termos, num contexto ficcional ou poético, as deixe demasiadamente personalizadas, ao passo que o uso “científico” de uma palavra nova a marque como sendo uma palavra impessoal, que pode pertencer a todos. 
 
Um exemplo recente de que tomei conhecimento foi a palavra “contradução” (“contraduction”), proposta pelo escritor Dan Barker, que a explica como um raciocínio feito às avessas, fazendo um efeito parecer a causa e vice-versa. Ele dá dois exemplos: quando estamos num trem parado na estação e vemos o trem ao lado entrando em movimento, temos a sensação de que é nosso vagão que está se deslocando. 
 
O segundo exemplo, mais útil, é o da popular falácia científica de achar que a gravidade e a atmosfera da Terra foram concebidas por alguém para favorecer os seres humanos, quando é mais sensato imaginar que foram os seres humanos que se adaptaram a ambas. É o mesmo raciocínio de quem diz: “Como é sábia a natureza, fazendo os rios passarem bem pelo meio das cidades, justamente onde sua água é mais necessária!...”  
 
 
 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

5101) A palavra catalisador (12.9.2024)



 
O que é um catalisador? É um termo científico para designar, por exemplo, um agente qualquer cuja presença ajuda a desencadear uma reação química. Ele não está diretamente envolvido, e em geral não se altera; mas sem a presença dele aquela reação química não se produz. Ele cria as condições, por assim dizer, e depois que o evento acontece ele vai embora, inalterado. 
 
Estou simplificando, é claro, mas é mais ou menos isto. Um websaite me dá a seguinte definição: “Um catalisador é uma substância que pode ser adicionada a uma reação para aumentar a sua velocidade sem ser consumida durante o processo.” 
 
A primeira vez que vi essa palavra foi no romance Planeta Maldito, de Vargo Statten, livrinho de bolso da antiga coleção “Futurâmica” das Edições de Ouro, cujo título original em inglês é justamente “The Catalyst” (1951). É uma história completamente pulp fiction, tendo como tema uma rocha extraída do planeta Mercúrio, a qual, em contato com a água, pode transformá-la em ouro. O que – evidentemente – provoca um caos econômico nas nações da Terra. 
 
Um catalisador é também uma pessoa capaz de criar e estimular um ambiente criativo sem que seja, ela própria, uma artista. Não deve ser confundido com o “mecenas”, o indivíduo rico que tem bom gosto, que tem entusiasmo pela arte, e que se dedica a financiar filmes, comprar quadros, bancar de seu bolso peças de teatro, etc. 
 
O catalisador não tem esse poder, essa “bala na agulha”, esse talão-de-cheques providencial. Geralmente ele é um membro de uma turma de indivíduos mais talentosos do que ele, e os incentiva com sua companhia, suas idéias, etc. 
 
Andei pensando nisso ao pesquisar sobre Luís Buñuel recentemente. Pela primeira vez parei e perguntei a mim mesmo: “Mas, quem diabo é Pepín Bello?...”  É um nome onipresente em muitos veios criativos da cultura espanhola, e sempre que estudei a obra de Buñuel ele aparece, reiteradamente. Lendo alguma coisa sobre Federico Garcia Lorca, lá aparece Pepín Bello. Vou ler sobre o surrealismo na Espanha e sobre Salvador Dalí... lá está Pepín. 
 
Procurei livros seus nas livrarias, nas bibliotecas, no Projeto Gutenberg... e nada. 



(Salvador Dalí, Federico Garcia Lorca e Pepín Bello, em 1923)
 

Pepín Bello foi, na juventude, companheiro de Buñuel, Garcia Lorca e Salvador Dalí na famosa Residência Universitária de Madri, um centro atrator de jovens estudantes criativos que depois se tornariam famosos. As cartas que Buñuel lhe escreveu durante décadas são citadas pelos biógrafos do cineasta como documentos importantes, dado o respeito intelectual e a amizade descontraída entre os dois. 
 
Nascido em 1904, Pepín faleceu em princípios de 2008, aos 103 anos de idade. Era considerado, dentro de sua turma, “um artista sem obras”. De certa forma, servia de “escada” aos colegas mais talentosos, funcionando como interlocutor, incentivador, consciência crítica, parceiro de aventuras intelectuais. 
 
Um catalisador, em resumo; alguém que não produz arte, mas sabe atrair para perto de si os que a produzem, e lhes dá algum tipo de estímulo intelectual de que os artistas – sempre meio complicados – tanto precisam. 
 
Aqui, uma matéria bem elucidativa sobre esta simpática figura, quando completou 97 anos. Ele rememora os tempos de convivência com Lorca, Dalí e Buñuel, além de outros escritores daquela época, como Rafael Alberti e Dámaso Alonso: 
https://www.elmundo.es/magazine/m84/textos/bello1.html
 
O personagem de Pepín Bello me lembrou outro, este brasileiro, que teve um papel importante em nosso Modernismo da primeira metade do século passado. É o famoso Jaime Ovalle (1894-1955), outro “artista sem obra” (ou quase), parceiro musical de Manuel Bandeira, constantemente lembrado pelos artistas da época como “o mais inteligente de todos nós”, e que deixou uma obra rarefeita, talvez indigna de seu talento. 



(O Santo Sujo, de Humberto Werneck) 
 

Jaime Ovalle, contudo, teve a sorte de ser biografado por Humberto Werneck: O Santo Sujo (Cosac & Naify, 2008) é uma das melhores biografias literárias que já li, reconstituindo não apenas a pessoa (mercurial, inalcançável, indefinível) do biografado, como a época em que atuou, os talentos sobre os quais exerceu uma influência reafirmada por todos. 
 
Ovalle foi um catalisador, um boêmio (apesar de ter sido um funcionário exemplar nas autarquias onde ganhava a vida), bebedor, namorador, raparigueiro, leitor onívoro, amante da música.  Uma cachoeira permanente de ditos, frases, teorias, versos, canções, comparações, idéias que ele espalhava à-toa nas mesas dos bares e restaurantes onde passou a parte mais luminosa de sua vida. 
 
De pessoas assim é comum dizer-se coisas como “era o mais inteligente de todos nós”, “infelizmente não deixou uma obra”, “criava em torno de si um ambiente de produção de idéias”, etc.  Alguns os veem como confidentes, outros como gurus, outros como referência crítica. 
 
Estes tipos não são criadores, são catalisadores. Acompanham a criação dos quadros, dos romances, dos filmes de seus amigos (que são os primeiros a reconhecer sua influência), mas não produzem uma obra própria, ou por desinteresse, ou por uma vida caótica, por falta de método e de aplicação. 
 
É o caso de outro brasileiro esquecido, mas não por mim, porque era frequentemente citado por meu pai. Paula Ney (1858-1897) foi jornalista e poeta no Rio de Janeiro, na época mais turbulenta e mais efervescente da poesia parnasiana e dos movimentos abolicionistas e republicanos. Talentoso, inteligente, bem-humorado, leitor voraz, foi retratado por seu amigo Coelho Neto como “o Neiva”, no romance A Conquista




Era um catalisador nato, e fez parte da turma de Olavo Bilac, Aluísio Azevedo, José do Patrocínio, Guimarães Passos, e tantos outros. Meu pai se deliciava com o livro No Tempo de Paula Nei, de Ciro Vieira da Cunha, na Coleção Saraiva. E sempre tinha uma advertência a fazer, durante o jantar: 
 
– Você é todo metido e inteligente e a engraçado, mas cuidado para não virar um Paula Nei, que era engraçado e inteligente mas não deixou uma obra. Publique livros. Não passe em branco. 
 
Os sonetos de Paula Ney são comuns, banais, sem nenhum sopro de novidade; meros prolongamentos dos lugares comuns de sua época. Não foi um grande poeta: foi um grande catalisador, um agitador intelectual. Esta página, do Recanto das Letras de B. S. Pereira, recupera um pouco o seu talento. Não chegou a ser um talento desperdiçado. Digamos que seu talento era estimular o talento dos que o cercavam, antes de morrer aos 39 anos. 
 
https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/44129
 
 




terça-feira, 10 de setembro de 2024

5100) O poeta Luís Buñuel (10.9.2024)



(Luis Buñuel, por Jean-Claude Carrière)
 

Luis Buñuel (1900-1983) foi o criador do cinema surrealista, antes mesmo de sua entrada no grupo liderado por André Breton. Costuma-se datar o início deste movimento em 1924, quando Breton publicou o primeiro Manifesto do Surrealismo. Em Paris, muitos poetas e artistas plásticos já punham em prática atitudes iconoclastas e provocativas assimiladas do grupo “Dada”, que atuou em Zurique após a I Guerra. 
 
Em Madrid, o jovem Buñuel entrou pra a universidade e ali fez alguns amigos que foram decisivos para sua vida e sua obra; entre eles, o poeta Garcia Lorca e o pintor Salvador Dali. 
 
Embora o cinema tenha sido seu meio de expressão, desde sua ida para Paris até sua morte com mais de 80 anos, Buñuel também escreveu bastante: contos, roteiros, artigos, poemas, crítica cinematográfica, elucubrações surrealistas. 



Sua poesia tem as imagens fortes e surpreendentes dos seus filmes; formalmente, não se distingue muito das maiorias dos poemas dos “cabeças” do Surrealismo, como o próprio Breton, Benjamin Péret, Paul Éluard, Louis Aragon, etc.  




Buñuel desdenha o verso rimado e metrificado, e, como a maioria destes poetas, prefere em geral o fluxo do verso livre e do verso branco (=sem rimas). É uma poesia que deixa em segundo plano a melodia e a cadência, e privilegia a imagem visual ou sensorial no sentido mais amplo, geralmente para produzir efeitos de choque, com a tática preferencial dos surrealistas – a justaposição inesperada, a imagem chocante ou surpreendente. 




Muitos dos seus textos em prosa, abolindo totalmente a forma do verso, da “linha quebrada”, nem por isto são menos poéticos, e a riqueza de suas imagens justifica considerá-los mais próximos da poesia que da prosa. O que era, aliás, uma característica do Surrealismo. Breton e seus camaradas desdenhavam na poesia a metrificação e a rima obrigatórias, e desdenhavam na prosa o enredo convencional, a descrição psicologizante dos personagens, a multiplicação de incidentes banais. 




O erotismo, a violência, a irreverência diante das figuras-símbolo da autoridade, eram sintomas da rebeldia juvenil do Surrealismo, um movimento apaixonadamente polêmico, que se propunha a revolucionar não somente a arte e a literatura, como a própria existência humana. 





Durante a década de 1920, o projeto de Buñuel era reunir os poemas que publicou em revistas e jornais de vanguarda na Espanha e publicá-los num livro que iria se intitular Um Cão Andaluz. O livro acabou não saindo; o título foi transposto para o filme que ele realizou com Dalí em 1928, e que abriu para ambos as portas do grupo surrealista. Já morando em Paris, Buñuel continuou a escrever, publicando vários textos nas revistas do movimento, La Révolution Surrealiste (1924-1929) e depois Le Surréalisme au Service de la Révolution (1930-1933). 


 

A versão original dos poemas aqui traduzidos pode ser encontrada neste link :

https://vomiteunconejito.wordpress.com/2020/02/13/poemas-de-luis-bunuel/ 





domingo, 8 de setembro de 2024

5099) Minhas canções: "Lavadeira do Rio" (8.9.2024)




Compor canções, como qualquer outra atividade criativa, tem suas marés, suas idas e vindas. Tem, por exemplo, épocas em que a gente está concentrado em produzir coisas complexas, mais esteticamente ambiciosas, e épocas em que a gente se dedica a fazer coisas mais simples. Uma tarefa nos descansa da outra, em ciclos alternados. 
 
Compondo com Lenine, muitas vezes ficávamos tentando produzir letras mais complicadas – com temas de ficção científica, por exemplo – e melodias com três ou quatro partes diferentes. E outras vezes corríamos para o abrigo da canção popular mais básica. Como a gente dizia na época: “Uma música que poderia ser gravada por Jackson do Pandeiro ou Marinês”. 
 
Um exemplo nessa linha, que já comentei aqui, foi “A Roda do Tempo”, gravada por Elba Ramalho: 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/12/4529-minhas-cancoes-roda-do-tempo.html
 
“Lavadeira do Rio” é uma música desse período, que foi sendo feita de modo intermitente, um trecho hoje, outro trecho daqui a mais um tempo, e ficou na gaveta até ser gravada por Elba Ramalho no disco Flor da Paraíba (1998), pelo próprio Lenine em Falange Canibal (2002) e por Maria Rita em seu disco de estréia Maria Rita (2003).   
 
Elba:
https://www.youtube.com/watch?v=tgEN-rD8P4s
 
Lenine:
https://www.youtube.com/watch?v=dlIZD6bj5RU
 
Maria Rita:
https://www.youtube.com/watch?v=2_Wdrqg87z8
 
Cantiga de lavadeira é uma coisa linda. 
 
A TV-Zero, do Rio de Janeiro, mostrou em sua preciosa série “O Som da Rua” um grupo de lavadeiras de roupa de Almenara (MG), na beira do rio Jequitinhonha, cujas cantigas de trabalho acabaram virando um espetáculo que correu o Brasil. Eis aqui um vídeo, apresentado pelo cantor Carlos Farias, que dá uma boa idéia da arte dessas cantoras: 
 
https://www.youtube.com/watch?v=SvaBe6SgYPQ
 
Recentemente, foi compartilhado no mural de Felix Rivera-Cabrera, no Facebook, um curto vídeo da cantora espanhola Buika escutando o canto de lavadeiras venezuelanas:
https://www.facebook.com/505332363/videos/1453560108629211/
 
O canto das lavadeiras é um dos muitos tipos do Canto de Trabalho, que por si só é um grosso capítulo na história da canção oral – a canção invisível, a que nunca é gravada, que surge espontaneamente para musicar um momento de vida e não tem o menor propósito de se transformar num produto comercial. 
 
Acaba se transformando, em muitos casos, e isso é bom, porque permite a gente como eu ficar sabendo o que cantam as mulheres venezuelanas quando lavam roupa ao ar livre. Cantam quadrinhas rimando ABCB, sempre com a mesma linha melódica (como nesse exemplo do Facebook), e a certa altura terçando vozes com uma afinação comovente. 
 
Quando nossa “Lavadeira do Rio” foi gravada por Elba Ramalho, um crítico comentou no jornal que eu e Lenine estávamos fazendo “macumba para turistas”, a conhecida expressão de Oswald de Andrade para designar a exploração do folclore (ou da cultura popular) para vender contrafações a consumidores desavisados. 
 
Um mal-entendido frequente nas nossas avaliações da música popular é achar que porque um sujeito é branco e de classe média ele cresce numa bolha impermeável e não convive com o que se chama “gente do povo”. 
 
Na minha visão, o contato entre classes sociais, pelo menos no Nordeste em que cresci, é muito mais intenso e constante do que se pode imaginar. Não só no Nordeste: eu diria que no próprio Rio de Janeiro esse contato existe, só que ele é mais pervasivo e habitual na Zona Norte (por exemplo) do que na Zona Sul, onde as classes se misturam na rua mas não se frequentam nas casas. 
 
No meu caso, as lavadeiras e suas cantigas foram parte da minha vizinhança desde os meus 11 anos, quando meus pais se mudaram para o Alto Branco, para as proximidades da Lavanderia Municipal, que fica a 20 ou 30 metros da nossa casa. O Alto Branco é uma colina muito úmida, com águas subterrâneas que descem o tempo todo, e afloram em certos trechos. 




Nas proximidades da Lavanderia, havia um trecho de poços dágua rodeados de grama (hoje essa área está toda coberta de casas), onde as mulheres lavavam roupa nos dias de sol. Além da Lavanderia oficial, esses poços atraíam mulheres que lavavam a roupa dos moradores em torno. E cantavam. 
 
Um detalhe interessante é que o Alto Branco sempre foi sujeito a ventanias, e de vez quando se armavam por ali alguns “redemunhos” violentos na direção dos poços dágua, arrebatando as roupas estendidas na grama e arremessando-as a dez ou vinte metros de altura, para desespero das lavadeiras. 
 
Menino não presta, e uma diversão nossa, quando um redemunho se formava, era correr para o terraço ou a calçada e ficar gritando: “Rapadura Preta!... Rapadura Preta!...”  Rapadura Preta é um nome popular do Diabo que mora no meio do redemunho, e chamando esse nome (teoricamente) estávamos atraindo o redemunho na direção dos poços, para ver os lençóis, as camisas e as saias rodopiando no ar. 
 
Minha mãe ficava furiosa e partia lá de dentro empunhando um cinturão ou uma chinela, ameaçando dar uma surra em quem chamasse o Diabo para atanazar as pobres lavadeiras. 
 
Outro detalhe relativo a esta canção é que ela acabou se misturando com outra música, “Rita”, que tinha o mesmo formato de estrofe (duas quadras + refrão) e melodia parecida. Pegar o violão para tocar uma delas sempre induzia a tocar a outra, e desse modo letras e melodias foram se misturando e resultaram numa música só. 
 
Aqui outra interpretação, com a cantora paraense Lia Sophia: 
https://www.youtube.com/watch?v=ZNUrZLNZWwA
 
Em todo caso, a origem da canção como um coco, a sua intenção de parecer com um coco que “poderia ser gravado por Jackson do Pandeiro”, acabou encontrando rumo quando a música foi regravada pela dupla Caju e Castanha no disco Professor de Embolada (2013). 
 
A gravação de Caju e Castanha: 
https://www.youtube.com/watch?v=8rFsE0vv_4Y
 
 
************* 
 
LAVADEIRA DO RIO
(Lenine / BT)
 
Ah, lavadeira do rio...
Muito lençol pra lavar!
Fica faltando uma saia
quando o sabão se acabar.
Corra pra beira da praia
veja a espuma brilhar
ouça o barulho bravio
das ondas que batem na beira do mar. 
 
Ê-ô, o vento soprou
Ê-ô, a folha caiu
Ê-ô, cadê meu amor
que a noite chegou fazendo frio...
 
Rita, tu sai da janela,
deixa esse moço passar...
Quem não é rica e é bela
não pode se descuidar.
Rita, tu sai da janela,
que as moça desse lugar
nem se demora donzela
nem se destina a casar...
 
Ê-ô, o vento soprou
Ê-ô, a folha caiu
Ê-ô, cadê meu amor
que a noite chegou fazendo frio...
 
 
 
 
 
 






terça-feira, 3 de setembro de 2024

5098) Quando uma coisa perde o sentido (3.9.2024)



 
The Chess Garden (1990) é um romance fantástico de Brooks Hansen, sobre as aventuras de um cientista, o dr. Uyterhoeven, que sai dos EUA de navio para tentar localizar uma ilha imaginária, Os Antípodas, cujo mapa ele descobriu por acaso. Boa parte do livro aparece sob a forma de cartas que ele manda para a esposa, e que ela lê para uma multidão de vizinhos, todos acompanhando as aventuras do doutor como se fosse um romance-folhetim. 
 
As cartas narram episódios de cunho meio absurdista, que em alguns momentos lembram Lewis Carroll. Um desses contos narra a visita que o dr. Uyterhoeven faz à oficina de Eugene, um artesão local. Ali, o doutor encontra um objeto que chama sua atenção, e ele pergunta do que se trata. 
 
O objeto é um loon, descrito no livro como “um comprido objeto de madeira, parecido com uma concha de sopa, exceto pelo fato de ser oco, e de ter o cabo amarrado com um pano”. 
 
Egbert, um assistente do artesão, pergunta ao doutor que função ele era capaz de imaginar para aquele utensílio. O doutor coça a cabeça e sugere: talvez soprar bolhas de sabão... conduzir um ovo grande... servir uma salada... Egbert escuta, e depois lhe conta a história do objeto. 
 
O loon tinha sido encontrado por Eugene numa época em que era um objeto de uso comum ali na ilha, algo que todo mundo conhecia. Eugene tinha espírito de artesão e uma capacidade fora do comum para perceber a funcionalidade de um objeto. Entre meia dúzia de cachimbos, ele era capaz de perceber o cachimbo mais bem feito, mais útil, aquele que tinha o máximo de qualidades com um mínimo de esforço. O mesmo para uma maçaneta, uma bengala, um cinzeiro... 
 
Ou seja: Eugene tinha um olho clínico apurado para reconhecer “um espécimen excepcionalmente não-excepcional”, um utensílio que, longe de se diferenciar dos seus semelhantes, era, pelo contrário, uma reunião de todas as qualidades mais simples de sua categoria. Um espécimen perfeito. 



 
“E assim era este loon”, explica Egbert. A representatividade desse objeto era tão visível aos olhos de todos que Eugene começou a receber propostas para vendê-lo ou trocá-lo – e recusava todas. A fama do loon foi crescendo na ilha. Vinha gente de longe só para admirá-lo. E um belo dia um príncipe local mandou seu representante, um bispo, oferecendo o cetro do principado em troca do loon – a chamada proposta irrecusável. 
 
Eugene recusou a troca; os emissários do bispo começaram a bater boca com os artesãos da oficina, e logo se estabeleceu um conflito generalizado, um quebra-quebra furioso em que cada um rachava a cabeça de algum adversário usando o objeto mais próximo. E nessa confusão, alguém agarrou o próprio loon e o desceu na cabeça de alguém. E o loon se partiu ao meio. 
 
Bastou isso para cessar o conflito. Constrangidos, tanto os visitantes quanto os locais passaram a se desculpar e a lamentar o fato de que o objeto precioso, defendido e ambicionado por todos, estava destruído. Eugene tentou consertá-lo, amarrando-o com umas tiras de pano, mas percebeu que não adiantava. E todos perceberam algo muito pior. 
 
Ao discutir o que acontecera, Eugene perguntou, perplexo: “Alguém se lembra para que servia essa coisa?”. E ninguém se lembrava. 
 
Todos começaram a cavucar na memória, tentando explicar para que servia um loon – uma coisa cuja utilidade, minutos atrás, era tão óbvia quanto a de um garfo ou de uma gravata. Não era apenas o objeto que tinha sido destruído, mas a própria idéia dele, o seu conceito, a sua serventia. 
 
O bispo recolheu sua comitiva e voltou cabisbaixo para contar tudo ao príncipe – o qual, interrogado, confessou atônito que não tinha mais a menor idéia de qual a utilidade de um loon, embora tivesse vários ali mesmo no palácio. E outro bispo arriscou uma interpretação: a de que o loon de Eugene talvez tivesse sido “o loon de todos os loons.” 
 
Talvez o loon destruído tivesse sido aquele que materializava a essência mesma de todos os loons. Talvez fosse o exemplar que guardava dentro de si o significado de toda sua categoria. Ora, então, isso explicava o que acontecera: no momento em que o loon de Eugene foi quebrado durante a briga e tornou-se inútil, o mesmo passou a valer instantaneamente para todos os demais loons do mundo. 
(capítulo 8, trad. BT) 



É uma idéia curiosa, digna de Borges ou de Ítalo Calvino. Uma projeção da teoria de Platão, segundo a qual no mundo superior, o mundo das idéias, estão todos os seres ideais em cuja imagem-e-semelhança são criados os seres do mundo material. Lá existe, digamos a Cadeira ideal, e é pensando instintivamente nela que nós criamos as cadeiras materiais que usamos em nossa vida. 
 
Alguns problematizadores costumam debulhar essa idéia até o absurdo. Perguntam, por exemplo, se no mundo das Idéias existe o Cachorro Ideal, um único tipo, ou se existem também o Viralata Ideal, o Buldogue Ideal, o Pequinês, o Pitbull... Pense numa idéia que rende muita conversa noite afora! 
 
De qualquer modo, os conceitos de utilidade e função dos objetos humanos existem de fato, com ou sem Platão. São conceitos sociais, coletivos. Todo mundo sabe para que serve um copo, um chapéu, uma maçaneta, uma chave... O conceito pertence a todos; mas o conceito está sujeito à memória social. Seu risco de desaparecimento não reside num loon específico, mas na idéia que todos nós temos dos nossos loons
 
Quantas pessoas, daqui a cinquenta anos (ou menos até) saberão para que serve um orelhão?  Um disquete? Uma anquinha?  Um lornhão?  Um limpa-tipos?  Um dedal? 
 
Alguns desses objetos talvez sobrevivam ao desuso e se mantenham na memória (graças, talvez, à literatura, à sociologia, à “petite histoire”...) Outros se transformarão em loons, em coisas que um dia foram familiares a todo mundo e que hoje, mesmo continuando a existir materialmente, parecem objetos alienígenas, deixados entre nós por visitantes extraterrestres durante algum “piquenique de estrada” em nosso planeta. 
 
Ou então como os objetos absurdos, impossíveis, inviáveis, inventados pelo francês Jacques Carelman – utensílios que estão a um passo de fazer sentido mas esse passo nunca é dado.