domingo, 30 de junho de 2024

5077) O primeiro "Escolha Sua Aventura" (30.6.2024)



 
Os livrinhos chamados “Escolha Sua Aventura” (“Choose Your Adventure”) eram, cerca de quarenta anos atrás, um pequeno e simpático nicho editorial voltado para o público infanto-juvenil, esse que hoje é chamado de “Jovem Adulto” (“Young Adult”). É uma marca que foi criada pelos autores Edward Packard e R. A. Montgomery. 
 
O modelo é muito simples: é uma história movimentada, com segmentos que variam de meia página a duas páginas, em média. Chegando a um momento crucial, o leitor (que assume o ponto de vista de um personagem) tem que dizer como o personagem deve agir. 
 
Digamos que é uma aventura de piratas. Você é o capitão do navio pirata. Seu navio vê no horizonte duas ilhas. Uma delas, maior, é coberta de florestas e montanhas. A outra é menor, mas vê-se ali um castelo aparentemente habitado (vê-se fumaça, etc.). Nesse ponto a narrativa se interrompe e aparece a instrução:
 
Se você quer atracar com o navio e desembarcar na ilha maior, vá para o capítulo 33.
Se você quer ir para a ilha menor e o castelo, vá para o capítulo 65.
 
Em cada um desses capítulos a narrativa prossegue de acordo com a escolha feita, e daí a pouco será necessário fazer novas escolhas.  




É um formato aparentemente simples, mas que pode, à medida que as escolhas e as bifurcações se amontoam, produzir uma variedade espantosa de situações.
 
Havia inclusive desfechos inesperados. Digamos que você é jogado, de olhos vendados, num porão escuro. Aparecem duas escolhas:
 
Se você quer acender o isqueiro e ver onde se encontra, vá para o capítulo 110.
Se você prefere esperar que venham buscá-lo para interrogatório, vá para o capítulo 144.
 
Você escolhe o capítulo 110, e ao chegar na página corresponde, lê:
 
Sinto muito: o porão estava cheio de barris de pólvora. Você foi pelos ares. Volte para o começo de tudo.
 
Esse tipo de jogo existia em livro muito antes de ser açambarcado pelos jogos de hipertexto (aqueles comercializados em forma de disquetes), pelos video games, e pelos jogos online da web, onde é facílimo criar essas “árvores de escolha”, com infinitas ramificações, e permitir que o público navegue ao longo delas.
 
Outra série dos EUA que fez sucesso no Brasil foi E Agora Você Decide (“Twist-a-Plot”), uma criação de R. L. Stine, o inesgotável autor da série de TV Goosebumps.



 
Os nostálgicos dessas séries (como dizia o lendário Big Boy, “jovem também tem saudade!”) podem checar aqui a lista de títulos:
 
https://www.gurpzine.com.br/enrola-e-desenrola/
 
No meu passeio semanal pelo excelente saite Metafilter, veterano fornecedor de temas para o Mundo Fantasmo, esbarrei com uma revelação inesperada. O primeiro livrinho nesse formato de “você escolhe o que acontece agora” não era de aventuras adolescentes, mas uma história romântica, adulta, escrita por duas mulheres, Mary Alden Hopkins e Doris Webster, e publicada em 1960.



Mary Alden Hopkins (1876-1960), que parece ter sido a autora com mais visibilidade na dupla, era uma jornalista e sufragista, com muitos anos de militância na imprensa novaiorquina. Defendeu o direito das mulheres ao voto, reformas trabalhistas, controle de natalidade e outros temas que, um século atrás, eram muito mais nitroglicerinados do que hoje. Bateu de frente com o governo dos EUA ao fazer críticas públicas ao seu envolvimento na I Guerra Mundial, o que ocasionou o fechamento do jornal onde trabalhava, Four Lights, em 1917.
 
Sua parceria com Doris Webster (1885-1967) rendeu uma série de obras de leitura leve com temas psicológicos, como I’ve Got Your Number (1927), que tem como subtítulo: “Como psicanalisar você mesmo e seus amigos”. Parecem ser livros com essa mistura de entretenimento ligeiro e exploração de temas de sucesso no momento.



 
Consider the Consequences! é uma história romântica, centrada em três personagens: uma moça, Helene, que tem dois pretendentes, Jed e Saunders. O livro tem 146 páginas e apresenta 43 finais diferentes.
 
Esquecido durante muitos anos, foi redescoberto pouco tempo atrás.
 
Deu origem a uma versão interativa na web, por geetheriot:
https://geetheriot.itch.io/consider-the-consequences/devlog/620173/decision-trees-and-you-well-me
 
Virou programa de rádio, com uma hora de duração, na voz de James Ryan & Nina, e escolhas de narrativa votadas pelo público:
https://www.youtube.com/watch?v=SWCu6PnK5ls
 
Teve seu texto completo reproduzido em fac-símile no Internet Archive, onde pode ser lido:
https://archive.org/details/consider-the-consequences-1930/page/n1/mode/2up



Todo este arrazoado serve para reforçar um dos meus argumentos preferidos, de que muita coisa que aparece no cinema, na televisão, nos games, etc., tem um antepassado na literatura. No presente caso, trata-se do que chamamos de uma narrativa ramificada, com pontos de escolha, criando universo paralelos, divergentes.
 
Hoje achamos que o habitat natural de narrativas assim é o ambiente eletrônico: o computador, o celular, o game. Mas a sua novidade estrutural não poderia ter passado despercebida a autores de ficção literária, conscientes, o tempo inteiro, de que dentro de um único livro podem conviver vários romances que não passam de versões alternativas do mesmo romance.
 
Foi o que fizeram Mary Alden Hopkins e Doris Webster. Na verdade, a grande sacada de uma obra assim é a sua conceoção estrutural, pioneira. O tema, os personagens, as situações desenvolvidas, podem variar bastante – histórias de amor, de piratas, de ficção científica, de lutas de boxe...
 
O que conta é a consciência ficcional de que cada situação de escolha de um personagem “quebra o universo em dois” e daí em diante existem dois universos alargando-se e afastando-se ao mesmo tempo.
 
A literatura experimental de alta qualidade tomou conta disso, de maneira brilhante, com obras tipo O Jogo da Amarelinha (1963) de Julio Cortázar, Avalovara (1973) de Osman Lins, A Vida Modo de Usar (1978) de Georges Perec, Se Um Viajante numa Noite de Inverno (1979) de Ítalo Calvino e muitos outros.
 
São alegorias literárias das sugestões encafifantes da Física Quântica, e sua teoria dos muitos universos, dos mundos paralelos onde todas as possibilidade de existência de um fato existem realmente, mas em “corredores” distintos do Tempo, que só se pode percorrer um de cada vez.
 
E assim, ao que parece (não li o livro – ainda) é Consider the Consequences!. A história de uma moça dividida entre dois rapazes, cada qual com suas qualidades e seus defeitos, com suas vantagens e seus inconvenientes. É preciso fazer escolhas a cada passo, e os universos se multiplicam como descendentes numa árvore genealógica.


 




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