sábado, 15 de junho de 2024

5072) A mecânica do humor (15.6.2024)




Vou transcrever aqui a primeira versão que ouvi desta piada, com seu inevitável sabor datado, visceralmente ligado a um momento histórico e social.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é travesti e faz strip-tease numa boite gay.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era travesti.
 
– Ele não é. Ele é jogador do Flamengo, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
A anedota é um gênero literário ainda pouco analisado. O próprio Sigmund Freud, citado amiúde, não escreveu propriamente sobre ela, e sim sobre o “chiste”, o “gracejo” geralmente baseado num trocadilho.
 
A obra de Freud (Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente, “Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten”, 1905) é voltada para os desvios verbais, os trocadilhos voluntários ou involuntários, que revelam associações de idéias ocultas, reprimidas, proibidas, etc.


 

Freud escreveu sobre o chiste, mas não sobre a anedota, que é uma pequena historinha, como o exemplo acima, com leis próprias de dramaturgia.
 
Uma coisa básica da anedota é que ela é (freudianamente, também) toda baseada num mal-entendido, num duplo-sentido, numa ilusão; 90% da anedota são uma história que parece estar dizendo uma coisa, e nos 10% restantes, aquilo que chamamos de punchline ou desfecho, há uma revelação, uma surpresa, uma puxada-de-tapete absoluta, que provoca o riso.
 
Um aspecto interessante da anedota é que todo mundo que escuta uma anedota ri com o seu “conteúdo”, a historinha que foi contada. Está OK. Mas na verdade está rindo por causa de sua “forma”, essa maneira de estruturar e contar a historinha.
 
Vou dar agora uma versão mais recente da piada acima:
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é miliciano e mata gente.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era miliciano.
 
– Ele não é. Ele é pastor, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
Esta versão da piada não é minha: peguei na Internet. (“Peguei na Internet” é a fórmula atual que substitui “Aconteceu de verdade, com o marido da minha prima”, etc.)
 
Repeti literalmente a verbalização do primeiro exemplo, para ficar claro que os personagens mudam, e quem nos faz rir é a maneira econômica, direta, tensa, com que a historinha é contada, e que faz com que a “mecânica” funcione. Sem perda de tempo com detalhes desnecessários, sem referências colaterais a nada que não seja a piada em si.
 
Existe uma comparação jocosa entre duas profissões. Essa comparação, contudo, precisa ser feita de acordo com essa regra: preparação breve, desfecho instantâneo.
 
É a qualidade literária da “Rapidez”, que Ítalo Calvino elogiava tanto.


 
Essa rapidez narrativa distingue o bom e o mau contador de piadas. Quantas e quantas vezes, numa mesa de bar, alguém começa a contar uma piada que a gente já conhece! E sempre acontece uma destas duas coisas: 1) alguém conta uma piada engraçadíssima, mas a  estraga totalmente, porque não soube contar; 2) alguém conta uma piada banal que a gente já ouviu dez vezes, mas desta vez a piada bate, a gente gargalha até contra a vontade.
 
Muita gente atribui esse “jeito para contar piada” ao histrionismo, a facilidade de fazer caras-e-bocas, de imitar a voz dos personagens, e de fato muita gente se vale disso. A piada pode nem ser muito engraçada, mas “Fulano é engraçado o tempo todo”. Funciona também – mas é outra coisa. Não é isso a raiz do humor da anedota.
 
A raiz desse humor consiste em 90% de preparação e 10% de surpresa, e num modo de contar que otimiza este contraste.
 
Na primeira versão acima, a piada era engraçadíssima, sim, porque o Flamengo (eram os anos 1990) vivia numa pindaíba de vitórias que dava dó, levava goleadas a torto e a direito, vivia lutando contra o rebaixamento. A frase de Joãozinho (digo por experiência própria) era dolorosamente verossímil. Mas... a piada era engraçada porque comparava flamenguistas e travestis? Bem, esse era o objetivo da piada, mas só foi conseguido através do uso correto da mecânica: 90% de preparação e 10% de surpresa na frase final.
 
Na segunda versão (miliciano / pastor), a mecânica da piada é rigorosamente mantida, e pouco importa se os alvos do deboche são os milicianos e os pastores. O conteúdo desta piada vai mudar de dez em dez anos, ou mesmo de dez em dez dias, não importa. A mecânica dela será sempre esta: o garoto diz que seu pai tem uma profissão (circunstancialmente) vergonhosa para não dizer que tem outra, aparentemente respeitável, mas que o autor da piada quer tornar mais vergonhosa ainda.
 
Não duvido que a primeira formulação dessa anedota tenha sido algo como:
 
Na época da Terceira Dinastia, na escola de Hatseph, às margens do Rio Nilo, a professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é escriba do templo, meu pai é construtor de pirâmides, meu pai é fabricante de papiro...
 
Na vez do pequeno Eutychius, ele disse:
 
– Meu pai é comerciante de peles de crocodilo.
 
Todo mundo ficou horrorizado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Bashma veio falar com o menino.
 
– Eutychius, eu não sabia que seu pai era comerciante de peles de crocodilo.
 
– Ele não é. Ele é sacerdote do culto de Fahd-al-Raqq, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
As funções exercidas pelo personagem vão variando de país para país, de época para época, e têm a função social de ridicularizar a última profissão citada; é por causa disso que a gente ri. Mas quando a gente vê mais de uma piada obedecendo à mesma estrutura, a gente percebe que a gente não riria do “conteúdo” se a “forma” não estivesse bem aplicada. E para a forma ser bem aplicada, é preciso que o “conteúdo” tenha um significado social para quem escuta.
 
A piada desse tipo irá morrer e renascer mil vezes, sempre substituindo os “tipos sociais” de acordo com os preconceitos da época, a realidade social da época, os conceitos de “digno/indigno”, “sério/ridículo”, etc., da época.
 
É a mecânica da surpresa que caracteriza a anedota, que é diferente do “chiste” freudiano, embora muitas anedotas usem um “chiste freudiano” para deflagrar sua surpresa, o que também é totalmente válido.
 

 
A profissão de “redator de humor” é um grande paradoxo, por ser aquela onde mais se ri e onde mais se chora. Forçado a arrancar diariamente do cérebro uma coisa engraçada qualquer, o mísero redator vê-se muitas vezes forçado ao mais aviltante dos recursos: o furto de uma piada alheia, e isso acaba se tornando um hábito, depois uma obrigação, depois um direito natural da profissão. (Como acontece na maioria das outras.)
 
Esse furto, quando criativo, acontece assim: a gente vê uma piada engraçadíssima, e volta ao começo, relendo com cuidado, e separando o que é a roupagem circunstancial (jogador do Flamengo, vendedor de pele de crocodilo, etc.) e o que é a mecânica: De que modo é feita a preparação? De que modo acontece o desfecho? Identificada a mecânica, basta substituir os pesonagens, a época, o local, e projetar a anedota num universo facilmente reconhecível pelo público.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bonbeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é coach de auto-ajuda.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era coach de auto-ajuda. 
 
– Ele não é. Ele é poeta de vanguarda, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
“Pano rápido.”
 


(Billy Wilder) 
 



Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!
Você sempre descobrindo o mecanismo das coisas — até mesmo das anedotas!