A literatura pode às vezes ser dividida em dois tipos: a
literatura quebra-cabeças e a literatura calidoscópio.
(NOTA INDISPENSÁVEL: o mesmo se aplica a cinema, teatro,
quadrinhos, etc. – a qualquer arte narrativa.)
O que é um quebra-cabeças, ou um puzzle, como dizem os falantes do inglês?
É uma imagem subdividida em inúmeros pedacinhos que
depois são misturados. Cada pedacinho corresponde rigorosamente a um trecho da
imagem maior, tem seu lugar específico. Existe nele um trecho de imagem
suficiente para podermos perceber que aqui ele se encaixa, ali não, e assim
vamos juntando as peças que se encaixam até perceber qual é a imagem.
Muitas vezes começamos a resolver o puzzle já sabendo qual é a imagem final. (É a que vem na caixa do
brinquedo.) Na literatura, nem sempre
sabemos. Vamos adivinhando à medida que a história avança e o significado de
cada pedacinho daqueles vai sendo reavaliado. Dá trabalho, mas a gente insiste,
porque sabe que há uma resposta final.
Faz parte do jogo haver uma resposta final, única, inalterável, onde todas as
pessoas terão forçosamente que chegar.
E o que é um calidoscópio?
É um tubo cilíndrico forrado de espelhos por dentro,
colocados num ângulo tal que refletem uns aos outros infinitamente. Se
colocamos um pequeno objeto dentro do tubo (uma bola de gude, p. ex.) e
olharmos pelo visor, esse objeto vai aparecer multiplicado ao infinito nos
reflexos, nos reflexos dos reflexos, e assim por diante.
O passatempo do calidoscópio é colocar ali um elenco
arbitrário de elementos: contas de colar, pedrinhas coloridas, tudo que for
pequeno, leve, visualmente atrativo. A cada olhada pela extremidade do tubo,
essas coisas aleatórias estarão formando uma imagem simétrica – a simetria é
fornecida pelos espelhos.
Num calidoscópio, tudo é aleatório e tudo é simétrico –
uma aparente contradição. E tudo que é simétrico nos provoca uma sensação
agradável.
Vamos trazer para o campo da Literatura.
A “literatura quebra-cabeças” é aquela que parte de uma
resposta pré-existente, uma resposta final que será dada ao leitor (ou descoberta
por ele). Isto acontece com muita frequência, p. ex., na literatura policial, em
que nos defrontamos com um crime misterioso e aparentemente inexplicável, mas
juntamente com o detetive vamos reunindo as peças e descobrindo a resposta.
(Neste tipo de literatura policial, puzzle
e quebra-cabeças são termos de comparação frequentes.)
A “literatura calidoscópio”, pelo contrário, não tem uma
resposta. Ela lida com elementos aleatórios (tudo que a imaginação do autor
puder conceber) e uma certa aparência de ordem, fornecida pela narrativa
sequencial: “Aconteceu isto, e por causa disto aconteceu aquilo, e logo em
seguida esta outra coisa, e depois desta acabou sucedendo outra...”
A narrativa sequencial produz um efeito parecido com o da
simetria no calidoscópio: dá uma impressão de ordem. Uma impressão de causalidade,
mas isto não é obrigatório. A história não tem uma “resposta oculta” da qual
nos aproximamos durante a leitura. Cada página, cada episódio é a resposta a si
mesmo. Não conduz necessariamente a nada. E muitas vezes, quanto mais a gente
avança, mais caótica a história vai ficando.
Num livrinho que publiquei há alguns anos (A Pulp Fiction de Guimarães Rosa, João
Pessoa, Ed. Marca de Fantasia, 2008) fiz esta mesma divisão, argumentando que
estas duas literaturas se baseavam em protocolos
(=acordos implícitos com o leitor) diferentes: o Protocolo da Resposta e o
Protocolo da Pergunta.
O Protocolo da Resposta equivale ao quebra-cabeças: o
autor criou uma resposta final, uma resposta única e indiscutível, mas oculta.
Cabe ao leitor descobrir esta resposta ao longo da leitura.
O Protocolo da Pergunta não tem um objetivo final; cada
passo da narrativa a conduz numa direção diferente; o prazer não está numa
revelação, mas num estado constante de surpresa.
As duas formas de literatura são perfeitamente legítimas.
O quebra-cabeças está muito presente na literatura de mistério detetivesco.
Está na ficção científica hard, onde
há sempre um problema científico que se coloca no começo para ser resolvido no
final. Está em muitas literaturas que procuram ilustrar uma princípio
ideológico qualquer (uma mensagem política, uma mensagem social, etc.),
colocando um problema no início e indicando uma solução inequívoca no final.
Esse tipo de literatura é muito reconfortante, porque
fechamos o livro com a sensação real de que uma tarefa foi cumprida, um
mistério foi esclarecido, um problema complexo foi solucionado. (E mais uma vez
vale a advertência: nada disto tem a ver com a qualidade literária do texto; há
centenas de obras-primas indiscutíveis, e também milhões de livros péssimos,
seguindo esta fórmula.)
A literatura calidoscópio me parece mais frequente no que
chamamos “romance absurdista”, e em certas obras de vanguarda como os romances
do pessoal da OuLiPo: Harry Matthews, Georges Perec, Raymond Queneau e outros.
São histórias que geralmente “não trazem uma mensagem”, não alcançam uma
resolução final (nem se propõem a isso): são uma sucessão de episódios
desconexos, que valem por si mesmos e pelo traçado ziguezagueante por onde
conduzem o leitor.
Há uma certa literatura meio lúdica onde a gente sente o
autor improvisando doidices à medida que escreve, como nas Confissões de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, em Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros
(1973) de Gramiro de Matos, em A Lua Vem
da Ásia (1956) de Campos de Carvalho... E não só nela, porque se olharmos
bem a prosa de Rabelais ou de Lautréamont vamos encontrar esse mesmo fluxo sem
direção obrigatória, esses mesmos saltos sem pouso.
Ocorre também em certa ficção popular, como a de alguns
autores de pulp fiction que começavam
a contar uma história sem saber onde iam parar, atraídos pela possibilidade da
invenção incessante, da surpresa, da imprevisibilidade. O Surrealismo, tanto
nos romances de André Breton quanto nos filmes de Luís Buñuel, elevou isso a um
grau máximo.
E, mais uma vez: há também grandes obras e obras péssimas
escritas de acordo com este impulso.
Parece existir, no entanto, pelo menos em nossa cultura
ocidental e em nosso século, uma predileção pelas obras fechadas, que têm uma
resposta única, que dão ao leitor a sensação tranquilizadora de uma conta
matemática que não deixa resto. Acho isto muito natural, porque aprecio esse
tipo de narrativa.
O problema surge quando um apreciador deste tipo de
narrativa abre um livro (ou assiste um filme, etc.), na ilusão de que se trata
de uma obra com esta característica, e se depara com um Livro Calidoscópio
(pense Raymond Roussell, R. A. Lafferty, Carlos Emilio Corrêa Lima, etc.) ou com
um Filme no Protocolo da Pergunta (pense David Lynch, Raúl Ruiz, etc.).
A solução seria talvez a de tentar agradar esses dois
tipos exigentes de consumidor, dando-lhes algumas respostas mastigadinhas que
abrandassem sua fome de solução-de-problemas, mas mantendo no ar certas
interrogações mais amplas, mais implicitas, mais abstratas.
Que é, no fim das contas, o que estes autores citados
fazem, porque muito dificilmente iremos encontrar modelos puros do tipo A ou do
tipo B. Mesmos praticantes ortodoxos da literatura puzzle, como Isaac Asimov ou Arthur C. Clarke, deixam-se seduzir,
em seus romances, por certos elementos irrespondíveis, certas dízimas
periódicas do pensamento que podem ser estendidas infinitamente sem fechar a
conta.
Ao fim e ao cabo, tude retorna àquela velha arte de comer
mel-de-engenho com farinha. Ficou muito molhado? Bota mais farinha. Ficou muito
seco? Bota mais mel.