domingo, 30 de abril de 2023

4937) As chamadas telefônicas de Roberto Bolaño (30.4.2023)




(Roberto Bolaño) 
 
A literatura de Roberto Bolaño (1953-2003) tem uma aparente facilidade, porque sua escolha de palavras, de frases, de formato de discurso, é sempre a escolha visando à solução mais fluida, mais imediatamente legível. Numa entrevista à televisão (no YouTube) ele afirma que seus livros têm 600 páginas mas teoricamente poderiam ser lidos de uma só “estirada”. Não é exagero.
 
Essa opção faz, sem dúvida, muita gente desdenhar do seu estilo, porque é sempre forte no meio literário a corrente que privilegia a frase trabalhada, a palavra surpreendente, o discurso que de tão alusivo chega a ser enigmático. Ou seja, a prosa de Guimarães Rosa, de Osman Lins, Nélida Piñon, Carlos Emílio Corrêa Lima. 
 
Isaac Asimov criou uma dualidade famosa: a prosa-vidraça (que é transparente, discreta, quase invisível) e a prosa-vitral (colorida, decorativa, que vale por si mesma, e não pelo que está além de si). Bolaño tem uma prosa-vidraça, das que parecem mostrar a ação da história sem interferir sobre ela. (Sabemos que é a prosa quem cria essa “ação”; mas no instante da leitura a ação flui tão cristalinamente que esquecemos esta verdade básica.)



Estou terminando a leitura da coletânea de contos Llamadas telefónicas (1997), em que o chileno recorre o tempo inteiro a essa prosa que para alguns é meramente denotativa, jornalística, pouco poética, usando palavras comuns e parecendo mais descrever do que recriar, transfigurar.
 
No plano do vocábulo e da frase a literatura de Bolaño é o contrário da que Guimarães Rosa defendia. Rosa queria uma briga permanente com a palavra, recusando o termo habitual e tentando interferir nele, ou então substituí-lo por um equivalente capaz de produzir estranhamento ou surpresa.
 
No entanto, essa prosa invisível, nos contos do chileno, está a serviço de uma complexa dramaturgia de personagens e situações. Com linhas simples, ele produz um desenho complexo. Estruturas barrocas, onde se cruzam e se interferem os destinos e as motivações dos seus personagens. A complexidade de Bolaño não está na frase, está um degrau mais acima.
 
A ficção de Bolaño pode ser vista como (entre outras coisas) uma coreografia dos fluxos individuais dos personagens. É no plano dos personagens (não no plano do vocábulo) que Bolaño desafia a atenção e a memória do leitor, e libera sua imaginação. Ele é desses autores capazes de “tirar da cartola”, dezenas, centenas, talvez milhares de figurantes, cada qual com rosto, biografia, alma, personalidade, idiossincrasias e mistérios. Durante algumas linhas ou algumas páginas serão protagonistas dos episódios mais variados – coisas que estão acontecendo na história em si, ou que alguém meramente conta para outra pessoa no ônibus, num passeio, numa chamada telefônica.
 
Episódios que podem ser trágicos, engraçados, violentos, patéticos, emotivos, enigmáticos, sórdidos... É uma exuberância barroca de situações, algumas banais, outras excêntricas, algumas beirando o surrealismo. Todas verossímeis, toda dolorosamente reais no mundo em que a história acontece.
 
Bolaño tem um olhar empático para contemplar a comédia humana. Constrói seus personagens com traços rápidos e precisos, revelando um lado essencial de seu método: uma curiosidade atenta e lúcida pelas pessoas de carne e osso, seus sentimentos, crenças, expectativas. Uma empatia que não dispensa a visão crítica, o humor e mesmo o sarcasmo, onde ele se aplica. Uma vivência de pele curtida. O autor viajou muito, e conheceu vários países sem muito dinheiro no bolso, o que tem sempre seu lado educativo. Sua experiência internacional não é a de um jovem europeu fazendo sua “grand tour” de acesso à vida adulta; é a de um auto-exilado que sobrevive como pode, trabalha no que aparecer, e se diverte em qualquer brecha que surgir.
 
Essa enorme “legibilidade” do texto de Bolaño não se perde quando ele injeta maior dose de projeção subjetiva, como se dá com a narração, na primeira pessoa, do conto “Joanna Silvestri”, a história de uma atriz pornô e sua paixão por um colega de membro desmedido; ou em “Detetives”, o conto só-diálogo entre dois policiais comentando o reencontro com um ex-colega de esquerda, agora preso na cadeia (um episódio da juventude do próprio autor, que fugiu da prisão no Chile ajudado por um ex-colega de escola).
 
Bolaño escreveu A Literatura Nazista nas Américas (1996), onde conta as biografias fictícias de escritores de direita, dos matizes mais variados, e em muitos casos consegue retratar de maneira não-hostil, mas analítica, esses autores, que podem ser fascistas cruéis, e às vezes são meros desorientados, carreiristas, oportunistas sem talento, que querem apenas “aproveitar a maré” e se refugiar à sombra do poder.
 
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2013/02/3113-literatura-nazista-1922013.html
 
Ele não nega sua simpatia aos medíocres como “Henri Simon Leprince” (em Llamadas Telefónicas), um escritor francês de terceira categoria que arrisca a vida, nos anos da Resistência Francesa, para salvar a vida de escritores melhores do que  ele, que não dão muita atenção a esse indivíduo “modesto e repugnante”.



(Bolaño jovem)

Bolaño é da minha geração: era três anos mais novo do que eu. São muitas as infuências que se compartilha quando se tem a mesma idade e os mesmos gostos. Seus personagens leem Borges, Albert Camus, Lovecraft, William Carlos Williams; assistem filmes de Antonioni e de John Carpenter. Leem a mesma ficção científica que eu li (Fritz Leiber, Philip K. Dick, Ursula LeGuin) – e o autor dedicou a este aspecto um livro inteiro, O Espírito da Ficção Científica (2016):
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2017/04/4228-roberto-bolano-e-ficcao-cientifica.html
 
Seus personagens cometem erros, tomam decisões irracionais, acreditam em miragens, brigam por bobagens, mas são o tempo inteiro homens e mulheres verossímeis, consistentes, além de imprevisíveis.
 
Bolaño, o narrador, o mamulengueiro desse imenso cortejo de criaturinhas, é às vezes um pouco como o Tony do conto “Vida de Anne Moore”:
 
Tony jamais se irritava, jamais discutia, como se considerasse absolutamente inútil forçar outra pessoa a compartilhar seu ponto de vista, como se acreditasse que todas as pessoas estão extraviadas e que é muito pretensioso um extraviado tentar ensinar a outro a melhor maneira de achar o caminho. Um caminho que não apenas ninguém conhece, mas que provavelmente não existe.
 
Muitos destes contos têm como protagonista direto ou subentendido o poeta Arturo Belano, alter-ego do autor, um dos protagonistas de Os Detetives Selvagens (1998). Muitos dos seus personagens são escritores: profissionais, amadores, famosos, obscuros. Muitos escrevem diários privados, poemas que ninguém lê, romances que ficam pela metade. Curiosamente, os personagens-escritores de Bolaño não são pretexto para longas teorias estilísticas ou discussões existenciais sobre o “fazer literário”. Detetives Selvagens tem como figuras centrais dois anarquistas de vanguarda, Belano e Ulises Lima; durante o livro inteiro não vemos os poemas escritos por eles. Vemos somente a vida, a miragem, a busca, a juventude que não volta, o caminho que talvez não exista.
 


 
 



quinta-feira, 27 de abril de 2023

4936) Sete mortes misteriosas (27.4.2023)


 
1
Oleg Demerov, russo, 48 anos, investidor em criptomoedas, proprietário de minas de estanho, produtor cinematográfico, caiu, jogou-se ou foi jogado da janela de seu quarto de hotel no trigésimo andar, em Santiago do Chile, onde se encontrava a passeio com sua noiva Masha Kurulenko, 22 anos. Demerov estava num ritmo alucinante de trabalho, envolvido no seu super-projeto de uma cinebiografia não-autorizada de Vladimir Putin, a ser interpretado por Daniel Craig por um cachê na ordem dos oito dígitos. Demerov acabava de chegar ao Chile depois de passar um mês entre Auckland e Dresden, acompanhando um grupo de pesquisadores, e tinha uma entrevista agendada com a CNN na semana seguinte, no Texas, na qual iria fazer importantes revelações.  
 
2
Sylvie Froussière, 19 anos, moradora de Nantes, desapareceu na noite de seu aniversário, até seu corpo ser encontrado dias depois numa floresta nos arrabaldes da cidade.  Crises histéricas de sofrimento por parte de alguns amigos e amigas, estranhamente ausentes no velório, despertaram a curiosidade da polícia, que apertou os interrogatórios até descobrir que o grupo se cotizara para pregar-lhe uma surpresa, abordando-a, todos de macacão escuro e touca ninja, numa rua deserta, vendando seus olhos, conduzindo-a a uma granja da família de um deles onde a esperavam champanhe, balões comemorativos, muita música, muitos salgadinhos na companhia de sua dúzia de amigos mais próximos, os quais perderam a cabeça quando a retiraram da van e constataram sua parada cardíaca de puro susto, sendo baldadas todas as tentativas de reanimação, dando origem a uma briga feroz entre os que advogavam a confissão total às autoridades e os que queriam ocultar o corpo como se nada tivesse acontecido. 
 
 
3
Igor Ivanovich Oblamov, 71 anos, foi assassinado misteriosamente na mesma noite que seus filhos Piotr (46 anos), Lev (42 anos) e Andrei (39 anos), todos solteiros e que moravam com ele, nos arredores de Oblonska, na Geórgia meridional. Pai e filhos eram caçadores e colecionadores de armas, e foram mortos com uma metralhadora, em diferentes cômodos de “dacha” onde estavam passando o verão. Os corpos foram encontrados ao amanhecer pelo leiteiro que os servia; a única pessoa sobrevivente do massacre foi a cozinheira Nadezhda, 33 anos, que servia à família desde garota, e foi achada em estado de choque, agachada no interior de um banheiro. As autoridades locais teceram suposições de tentativa de assalto e de vingança, pois as vítimas eram conhecidas pelo seu temperamento explosivo e autoritário. A cozinheira foi levada a um hospital, onde ficou sob cuidados médicos durante duas semanas, e ao receber alta guardou suas coisas numa malinha, pegou um trem e nunca mais foi vista.
 
 
4
Ralph Kaprinski, 61 anos, dono de uma cadeia de lanchonetes em Minneapolis, preparou com cuidado a próprio suicídio após descobrir-se no estágio terminal de uma grave doença. Depois de tomar várias providências jurídicas (testamento, liquidação de dívidas, etc.), trancou-se na cabana que lhe servia de escritório, nos fundos de sua casa de fazenda, redigiu e datou de próprio punho um bilhete de despedida para sua esposa Marjorie, 60 anos, colocou na mesa à sua frente a caixa de comprimidos que iria tomar, junto com uma garrafa de seu vinho preferido, e foi encontrado pela manhã, vítima de um tiro na nuca, disparado por uma pistola que não foi encontrada na cabana, trancada pelo lado de dentro. 
 
5
Henry Koshavik, 30 anos, publicitário numa agência em Manhattan, bolou uma surpresa para o aniversário de sua namorada, Judy Plimpton, 27 anos, a qual tinha um fetiche erótico (publicamente assumido) pelo Homem Aranha. Cedinho naquela manhã do ano de 2001, foi para a garagem de uma empresa de entregas, vestiu-se de Homem Aranha, e fez-se encerrar num contêiner vertical, do tamanho de uma cabine telefônica, o qual foi embarcado num furgão e remetido para a casa onde morava a moça, a algumas quadras dali. Foi durante este curto trajeto, e naquele mesmo trecho da cidade, que os aviões terroristas derrubaram as Torres Gêmeas, espalhando o caos e cobrindo de poeira e de detritos inúmeras ruas e centenas de veículos, inclusive o tal furgão, cujo motorista morreu na hora. O veículo permaneceu soterrado e dias depois foi removido e rebocado, sem maiores exames, para um depósito de emergência situado em Staten Island, onde uma intrigante descoberta está à espera dos investigadores de uma década futura. 
 
6
Funcionários de um hotel em Harrogate (Yorkshire), chamaram a polícia depois de ouvir disparos num quarto recém-ocupado. Arrombada a porta, foram encontrados três corpos: Stephen Miller (41 anos), Samson Duncalf (35 anos) e Annabelle Ridgeway (40 anos). Foi comprovado, por vários depoimentos, que Miller e Ridgeway moravam na cidade e tinham um caso amoroso há alguns anos, apesar de não viverem juntos; outras testemunhas garantiram que Samson Duncalf, que morava em Londres, vinha nos últimos meses encontrando-se às escondidas com ela. Os três chegaram juntos ao hotel, sem bagagem, pouco depois do meio-dia, e três horas depois ouviram-se os tiros. Pela posição dos corpos e pelo exame dos ferimentos, foi estabelecido que os três estavam sentados no chão, cada um com uma arma de fogo (Miller tinha uma pistola automática, os outros tinham revólveres) e dispararam simultaneamente uns sobre os outros, na cabeça: Miller acertou Duncalf, este acertou Ridgeway, e ela atingiu Miller. O Inspetor Pettinger, da polícia local, declarou aos repórteres: “Tudo sugere tratar-se de um pacto de suicídio, a três, planejado e executado com uma mistura de desespero e frieza. E cada um deles com absoluta confiança de que os outros dois fariam o que foi combinado”. 
 
7
No terceiro mês do terceiro Tenwa, na corte do Lorde Wakimodo, em Yedo, o seu principal samurai, Yamasuké, apareceu certo dia com um ar transtornado, e ajoelhando-se diante dos seu lorde anunciou que tinha cometido um crime inominável e que por isso devia praticar o sepukku ou haraquiri, o suicídio ritual. Foi grande a comoção na casa nobre e o espanto do lorde, mas ninguém conseguiu arrancar de Yamasuké qualquer informação sobre a baixeza ou o crime bestial que cometera. Depois de um dia inteiro de discussões, o lorde curvou-se aos imperativos da honra, e os preparativos começaram a ser feitos no pátio, para a cerimônia na manhã seguinte. Yamasuké pediu a seu wakatö (escudeiro), Yokushi, que o assistisse nos procedimentos, como seu kaishakunin,  e cortasse sua cabeça, conforme o costume, no momento adequado. Pela manhã, estavam todos os membros da casa nobre prontos para assistir o ritual. Yamasuké, agindo como que num sonho, fez as abluções e os demais preparativos e sentou-se na posição tradicional. Quando empunhou a tantö e se preparou para o golpe, houve no céu um relâmpago fortíssimo que cegou momentaneamente todos os presentes, seguido por alguns segundos de escuridão total e de um trovão ensurdecedor, que fez a casa estremecer. Quando todos se recuperaram do susto e puderam enxergar novamente, perceberam horrorizados que Yokushi, o escudeiro, estava caído sobre a própria espada que empunhava instantes atrás, morto; e que no grupo dos assistentes estava também caída no chão, lívida e morta, a jovem e bela esposa de Yamasuké. Quanto a este, pareceu emergir de um pesadelo, saltou, ficou de pé horrorizado e pôs-se a perguntar a todos o que estava acontecendo. As crônicas da época registram apenas que depois desse dia Yamasuké raspou a cabeça e tornou-se monge andarilho. 
 
 
 



segunda-feira, 24 de abril de 2023

4935) O deserto dos tártaros (24.4.2023)



 
Na ciência da Guerra existem incontáveis alçapões onde o indivíduo pisa quando menos espera... e é precipitado no abismo das situações sem volta. 
 
O problema filosófico mais importante não é o suicídio, como sugeriu Albert Camus, mas a guerra. Quando mais não seja, porque: 1) movimenta bilhões (talvez trilhões) de dólares sem parar, o tempo inteiro; 2) consome milhões de vidas; 3) produz mudanças irreversíveis no mundo inteiro. 
 
Seria possível conciliar os dois conceitos dizendo: “O problema filosófico mais importante é o suicídio, especialmente a guerra, que é o suicídio da espécie humana”. 
 
Ou, como disse inesquecivelmente Augusto dos Anjos, no erguer-das-cortinas da Primeira Guerra Mundial: 
 
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
de subir, na ordem cósmica, descendo
à irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
precisa de encharcar-se em sangue humano
para mostrar aos homens que está viva! 
(“Guerra”, 1914)
 
Minha geração só conheceu a guerra através de livros e filmes. Cabe à minha imaginação dizer o que é a vida quando sabemos que o mundo está sendo destruído brutalmente ao nosso redor. 
 
Os romanos diziam: Si vis pacem, para bellum. Se você quer viver em paz, prepare-se para fazer a guerra. Porque (subentende-se) alguma coisa precisa ser resolvida pela violência, antes que a paz possa reinar.
 
E também é um alerta: você tem, sim, o direito de viver em paz, desde que possa entrar em guerra assim que for necessário. Ou seja, se já tiver pessoas treinadas, tiver armamentos, planejamentos, estratégias do tipo “Se nos invadirem assim-assim, reagiremos fazendo assim-assado”. 
 
E aí entra um dos problemas da paz. Porque mesmo quem vive num país estável e numa nação pacífica não está a salvo de uma guerra que venha de fora, uma guerra de invasão. O povo é pacífico, mas precisa se preparar para o pior. Ele se prepara para o pior; gasta oceanos de dinheiro comprando armas e treinando soldados. Fica pronto para o pior. E aí... começa a ficar impaciente porque o pior está demorando demais. 
 
O mecanismo da guerra começa com a preparação, e quem se prepara para a guerra começa a ficar impaciente para que ela comece logo. 




É este um dos temas do filme O Deserto dos Tártaros (”Il deserto dei Tartari”, 1976) de Valerio Zurlini. Baseado num livro famoso de Dino Buzzatti (que ainda não li), ele conta o dia-a-dia de um posto avançado do exército de um país vagamente equivalente à Itália, à beira do deserto. Aqueles oficiais e soldados estão estacionados num Forte onde Judas perdeu as botas, esperando um inimigo que nunca vem. 
 
Enquanto isso, os soldados ociosos descarregam uns sobre os outros a raiva, a impaciência, a irritação, a agressividade acumulada ao longo daquela guerra que nunca acontece.
 
Jacques Perrin é o oficial jovem que chega lá, inocente e deslocado, e aos poucos vai se enredando na teia de intrigas dos oficiais mais velhos (Giuliano Gemma, Fernando Rey, Philippe Noiret, Vittorio Gassman, Jean-Louis Trintignant, Laurent Terzieff, Max von Sydow, Fernando Rabal, etc.), cada um deles um ambicioso, maluco ou criminoso em potencial. 
 
O Deserto dos Tártaros, livro e filme, é geralmente descrito como uma obra kafkeana, por mostrar uma estrutura enorme e dispendiosa que existe para nada, para esperar uma coisa que não acontece. Um exército que custa caro, financiando carreiras profissionais de gente bem preparada. Homens para quem a guerra seria preferível àquela expectativa constante de guerra.



“O soldado que não guerreia” é um tema espalhado pela literatura e pelo cinema, e não creio que Dino Buzzatti e Valerio Zurlini o tenham esgotado.
 
Ele aparece de forma arrepiante (e real) nos bombardeiros mostrados por Stanley Kubrick em Dr. Fantástico (“Dr. Strangelove”, 1966), aviões carregados de ogivas nucleares que voam sem pousar, incansáveis, como tubarões insones, sendo abastecidos em pleno ar, porque a qualquer momento a Guerra Nuclear pode ser decretada e eles precisam estar perto do alvo. Qual o tripulante que em algum momento não tem um pensamento de “Ora, foda-se, vamos acabar logo com isto!”?
 
E os soldados peruanos enfiados nos cafundós da Amazônia no romance de Vargas Llosa Pantaleão e as Visitadoras (1973)? Eternamente em guarda, esperando alguma guerra que nunca vem, precisam ser distraídos com prostitutas. Vargas Llosa, sabiamente, desvia a neurose na direção da galhofa satânica, como diria Pedro Dinis Quaderna.
 
Quando um homem é preparado intensivamente, profissionalmente, cientificamente, para a guerra, não se deve esperar muita coisa dele em tempo de paz. O que fazer com esses contingentes, eternamente de armas nas mãos, no alto de uma muralha, olhando o deserto ocre e escaldante, ansioso pela chegada dos tártaros que (reza a lenda) vêm para matá-lo?  





 





sexta-feira, 21 de abril de 2023

4934) O quebra-cabeças e o calidoscópio (21.4.2023)




A literatura pode às vezes ser dividida em dois tipos: a literatura quebra-cabeças e a literatura calidoscópio.
 
(NOTA INDISPENSÁVEL: o mesmo se aplica a cinema, teatro, quadrinhos, etc. – a qualquer arte narrativa.)
 
O que é um quebra-cabeças, ou um puzzle, como dizem os falantes do inglês?
 
É uma imagem subdividida em inúmeros pedacinhos que depois são misturados. Cada pedacinho corresponde rigorosamente a um trecho da imagem maior, tem seu lugar específico. Existe nele um trecho de imagem suficiente para podermos perceber que aqui ele se encaixa, ali não, e assim vamos juntando as peças que se encaixam até perceber qual é a imagem.
 
Muitas vezes começamos a resolver o puzzle já sabendo qual é a imagem final. (É a que vem na caixa do brinquedo.)  Na literatura, nem sempre sabemos. Vamos adivinhando à medida que a história avança e o significado de cada pedacinho daqueles vai sendo reavaliado. Dá trabalho, mas a gente insiste, porque sabe que há uma resposta final. Faz parte do jogo haver uma resposta final, única, inalterável, onde todas as pessoas terão forçosamente que chegar.



E o que é um calidoscópio?
 
É um tubo cilíndrico forrado de espelhos por dentro, colocados num ângulo tal que refletem uns aos outros infinitamente. Se colocamos um pequeno objeto dentro do tubo (uma bola de gude, p. ex.) e olharmos pelo visor, esse objeto vai aparecer multiplicado ao infinito nos reflexos, nos reflexos dos reflexos, e assim por diante. 
 
O passatempo do calidoscópio é colocar ali um elenco arbitrário de elementos: contas de colar, pedrinhas coloridas, tudo que for pequeno, leve, visualmente atrativo. A cada olhada pela extremidade do tubo, essas coisas aleatórias estarão formando uma imagem simétrica – a simetria é fornecida pelos espelhos. 
 
Num calidoscópio, tudo é aleatório e tudo é simétrico – uma aparente contradição. E tudo que é simétrico nos provoca uma sensação agradável. 
 
Vamos trazer para o campo da Literatura. 
 
A “literatura quebra-cabeças” é aquela que parte de uma resposta pré-existente, uma resposta final que será dada ao leitor (ou descoberta por ele). Isto acontece com muita frequência, p. ex., na literatura policial, em que nos defrontamos com um crime misterioso e aparentemente inexplicável, mas juntamente com o detetive vamos reunindo as peças e descobrindo a resposta. (Neste tipo de literatura policial, puzzle e quebra-cabeças são termos de comparação frequentes.) 
 
A “literatura calidoscópio”, pelo contrário, não tem uma resposta. Ela lida com elementos aleatórios (tudo que a imaginação do autor puder conceber) e uma certa aparência de ordem, fornecida pela narrativa sequencial: “Aconteceu isto, e por causa disto aconteceu aquilo, e logo em seguida esta outra coisa, e depois desta acabou sucedendo outra...”  
 
A narrativa sequencial produz um efeito parecido com o da simetria no calidoscópio: dá uma impressão de ordem. Uma impressão de causalidade, mas isto não é obrigatório. A história não tem uma “resposta oculta” da qual nos aproximamos durante a leitura. Cada página, cada episódio é a resposta a si mesmo. Não conduz necessariamente a nada. E muitas vezes, quanto mais a gente avança, mais caótica a história vai ficando. 
 
Num livrinho que publiquei há alguns anos (A Pulp Fiction de Guimarães Rosa, João Pessoa, Ed. Marca de Fantasia, 2008) fiz esta mesma divisão, argumentando que estas duas literaturas se baseavam em protocolos (=acordos implícitos com o leitor) diferentes: o Protocolo da Resposta e o Protocolo da Pergunta. 
 
O Protocolo da Resposta equivale ao quebra-cabeças: o autor criou uma resposta final, uma resposta única e indiscutível, mas oculta. Cabe ao leitor descobrir esta resposta ao longo da leitura. 
 
O Protocolo da Pergunta não tem um objetivo final; cada passo da narrativa a conduz numa direção diferente; o prazer não está numa revelação, mas num estado constante de surpresa.
 
As duas formas de literatura são perfeitamente legítimas. O quebra-cabeças está muito presente na literatura de mistério detetivesco. Está na ficção científica hard, onde há sempre um problema científico que se coloca no começo para ser resolvido no final. Está em muitas literaturas que procuram ilustrar uma princípio ideológico qualquer (uma mensagem política, uma mensagem social, etc.), colocando um problema no início e indicando uma solução inequívoca no final. 
 
Esse tipo de literatura é muito reconfortante, porque fechamos o livro com a sensação real de que uma tarefa foi cumprida, um mistério foi esclarecido, um problema complexo foi solucionado. (E mais uma vez vale a advertência: nada disto tem a ver com a qualidade literária do texto; há centenas de obras-primas indiscutíveis, e também milhões de livros péssimos, seguindo esta fórmula.) 
 
A literatura calidoscópio me parece mais frequente no que chamamos “romance absurdista”, e em certas obras de vanguarda como os romances do pessoal da OuLiPo: Harry Matthews, Georges Perec, Raymond Queneau e outros. São histórias que geralmente “não trazem uma mensagem”, não alcançam uma resolução final (nem se propõem a isso): são uma sucessão de episódios desconexos, que valem por si mesmos e pelo traçado ziguezagueante por onde conduzem o leitor. 
 
Há uma certa literatura meio lúdica onde a gente sente o autor improvisando doidices à medida que escreve, como nas Confissões de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, em Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros (1973) de Gramiro de Matos, em A Lua Vem da Ásia (1956) de Campos de Carvalho... E não só nela, porque se olharmos bem a prosa de Rabelais ou de Lautréamont vamos encontrar esse mesmo fluxo sem direção obrigatória, esses mesmos saltos sem pouso. 
 
Ocorre também em certa ficção popular, como a de alguns autores de pulp fiction que começavam a contar uma história sem saber onde iam parar, atraídos pela possibilidade da invenção incessante, da surpresa, da imprevisibilidade. O Surrealismo, tanto nos romances de André Breton quanto nos filmes de Luís Buñuel, elevou isso a um grau máximo.
 
E, mais uma vez: há também grandes obras e obras péssimas escritas de acordo com este impulso. 
 
Parece existir, no entanto, pelo menos em nossa cultura ocidental e em nosso século, uma predileção pelas obras fechadas, que têm uma resposta única, que dão ao leitor a sensação tranquilizadora de uma conta matemática que não deixa resto. Acho isto muito natural, porque aprecio esse tipo de narrativa. 
 
O problema surge quando um apreciador deste tipo de narrativa abre um livro (ou assiste um filme, etc.), na ilusão de que se trata de uma obra com esta característica, e se depara com um Livro Calidoscópio (pense Raymond Roussell, R. A. Lafferty, Carlos Emilio Corrêa Lima, etc.) ou com um Filme no Protocolo da Pergunta (pense David Lynch, Raúl Ruiz, etc.).
 
A solução seria talvez a de tentar agradar esses dois tipos exigentes de consumidor, dando-lhes algumas respostas mastigadinhas que abrandassem sua fome de solução-de-problemas, mas mantendo no ar certas interrogações mais amplas, mais implicitas, mais abstratas.
 
Que é, no fim das contas, o que estes autores citados fazem, porque muito dificilmente iremos encontrar modelos puros do tipo A ou do tipo B. Mesmos praticantes ortodoxos da literatura puzzle, como Isaac Asimov ou Arthur C. Clarke, deixam-se seduzir, em seus romances, por certos elementos irrespondíveis, certas dízimas periódicas do pensamento que podem ser estendidas infinitamente sem fechar a conta. 
 
Ao fim e ao cabo, tude retorna àquela velha arte de comer mel-de-engenho com farinha. Ficou muito molhado? Bota mais farinha. Ficou muito seco? Bota mais mel.
 
 



terça-feira, 18 de abril de 2023

4933) O passe e a assistência (18.4.2023)



(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa)
 

A língua brasileira tem umas coisas engraçadas. A primeira delas é que começou sendo “Língua Portuguesa”. Era assim chamada na época em que eu comecei a frequentar a escola, ou seja, quando os dinossauros dominavam a Terra. Mas... Meu pai era viciado em palavras-cruzadas e charadas; eu passava dias e noites folheando as dezenas de dicionários que ele tinha em casa, e sempre me chamou a atenção haver um Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, cujo propósito eu já era capaz de entender e aceitar. 
 
Era uma língua traduzida para outra língua quase igual. 
 
Portugal, no entanto, é um amor que eu tive e vi, pelo espelho, na distância se perder, como disseram de forma irretocável Roberto & Erasmo Carlos. Surgiu na estrada a cordilheira dos Estados Unidos e a língua inglesa, que tem contaminado de forma irremediável a nossa, contando com o apoio entusiasmado de muita gente – inclusive eu. 
 
Um debate recente é o que envolve a adoção da palavra “assistência”, no futebol: “O gol de Pedro foi uma beleza, mas vamos reconhecer que a assistência de Arrascaeta foi sensacional.” 
 
Muita gente se rebela contra isto, dizendo que na nossa língua patriótica já existe a palavra passe e que o anglicismo é dispensável. Bastava dizer “o passe”. Era assim que a gente escrevia no Diário da Borborema.O gol de Fernando Canguru foi uma beleza, mas vamos reconhecer que o passe de Assis Paraíba foi sensacional.”  



(Assis Paraíba e Fernando Canguru)


A palavra assistência, pelo que entendo, veio do basquete. Eu já a via nas transmissões do SporTV na década de 1990, quando passei a acompanhar o time do Chicago Bulls, no tempo de Phil Jackson como técnico, e Michael Jordan e Scottie Pipen na quadra.
 
Posso estar me enganando, mas desde essa época – quando ninguém usava “assistência” no futebol – eu via uma diferença entre assistência e passe. O passe é quando você apenas entrega a bola a um companheiro. A assistência (no basquete) é aquele passe decisivo, no garrafão, naquelas frações-de-segundo cruciais quando o ataque penetra todo de uma vez e é preciso entregar a bola, de maneira inesperada, para alguém em condições de fazer a cesta.
 
Nessa mesma época, anos 1990, eu não via ninguém da imprensa do futebol chamar um passe decisivo, passe-para-o-gol, de “assistência”. Todo mundo que eu lia dizia algo como: “No jogo de hoje da Seleção Brasileira, Rivaldo teve grande atuação; não marcou gols, mas deu passes decisivos para os gols de Ronaldo e Bebeto”.



(Rivaldo)
 

Ninguém dizia “assistência”.
 
E aqui entra meu argumento em favor deste anglicismo. A palavra nova é necessária (mesmo que venha de outra língua, o que não é nada demais) quando carrega consigo uma nuance que não tem na palavra anterior. A palavra assistência não substitui a palavra passe: ela indica um tipo específico de passe, um tipo mais importante de passe. 
 
É algo parecido com o que faz a gente distinguir entre “passe” e “lançamento”. Um lançamento, no futebol, também é um passe: Fulano entrega a bola para Sicrano. Mas é um passe geralmente a grande distância, e que muitas vezes tem a intenção de dar início a uma jogada nova, um ataque, uma combinação de avanço a toda velocidade e de deslocamento paralelo dos outros jogadores, que se oferecem como opções de jogada. 
 
“Jogador era Gérson, que fazia um lançamento de 40 metros com a facilidade de quem atrasa uma bola para o goleiro.”  Onde se lê “Gérson”, claro, pode-se ler também Zico, Zidane, Iniesta, Zezinho Ibiapino. 
 
Quem descreveu de maneira exemplar a diferença entre “passe” e “lançamento” (sem usar estas duas palavras) foi João Cabral de Melo Neto neste poema, do livro Agrestes (1981-1985). O “passe” é uma carta, que se entrega em mãos; o “lançamento” é um telegrama que cruza o hiperespaço para chegar ao destinatário. 


(João Cabral de Melo Neto, pelo Santa Cruz, do Recife)
 

DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL
 
Não é a bola alguma carta
que se levar de casa em casa:
 
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
 
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
 
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
 
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
 
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.
 
Passe é quando você simplesmente entrega a bola a um companheiro. Lançamento é quando você descobre à distância um companheiro desmarcado, ou um espaço vazio, e lança ali a bola, para “precipitar os acontecimentos”. E a assistência é, de certa forma, o penúltimo toque antes do gol. É aquele passe (pode ser curto ou longo) que deixa o atacante na cara do gol, com a única função de finalizar corretamente. 


(Gerson – Turma do Roma)


Me perdoem os leitores que não curtem muito futebol. Ele entrou neste texto como Pilatos no “Credo” ou como as pedrinhas na sopa de Pedro Malazarte. O texto é sobre a língua, as importações da língua e o enriquecimento da língua. Não acho que dizer “assistência” empobreça nosso vocabulário esportivo, pelo contrário. 
 
Uma língua busca o tempo inteiro dois objetivos opostos: ser cada vez mais simples e precisa (para que a comunicação possa fluir sem tropeços), e cada vez mais rica e cheia de nuances (para poder refletir a realidade, que é assim). 
 
Quando os “Manuais de Escrita Criativa” nos dizem para usar palavras simples, não estão nos dizendo para só dizer coisas banais. Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor porque “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Só usou palavras simples, e isso serviu para ressaltar o imprevisto da idéia, a originalidade da idéia, a verdade profunda da idéia. 
 
(E o Brasil já chegou a um ponto em que muita gente torcerá o nariz diante do “deveras”, dizendo que isto é “falar difícil”. Paciência.) 
 
 
 






sábado, 15 de abril de 2023

4932) A tristeza e a música (15.4.2023)




No conto que abre o livro Sagarana (1946), “O Burrinho Pedrês”, Guimarães Rosa encastoa uma série de pequenas histórias, “causos” que os vaqueiros contam uns aos outros enquanto conduzem uma boiada, num trajeto longo e vagaroso até a vila onde passa o trem.
 
Uma dessas histórias é contada pelo vaqueiro João Manico. Ele diz que anos atrás o atual patrão deles, Major Saulo, era apenas “Seu Saulinho”, e os levou para trazer uma boiada que acabava de comprar. Como na volta tinham que passar pela cidade de Curvelo, o vendedor do gado lhes pediu um favor: que deixassem lá um menino, um pretinho de uns 7 anos, para ser entregue ao irmão que ali morava. 
 
Os vaqueiros trazem o pretinho à garupa, mas o menino está inconsolável porque está indo embora. Ele não quer ir, pede para ser levado de volta, implora... 
 
E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena... Não adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei, todo-o-mundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho, mas nada d’ele parar de chorar... (...) ...O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: — “Olha os bois também com saudade dos pastos lá da fazenda”... — Para que foi que eu fui dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer: — “Ai, seu mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa eu ir-s’embora para trás! Me deixa eu ir-s’embora para trás!”... 
 
Quando ele viu que não adiantava nada pedir, garrou só a exclamar: — “Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim!... Eu só queria poder sentar agora, um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de minha mãe... Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de estar batendo feijão, lá no fundo do quintal!”... 
 
Os vaqueiros ficam naquela sinuca, porque todo mundo está comovido com o choro do garoto mas não fazia sentido voltarem atrás com boiada e tudo. E lá vão eles. Montam acampámento para passar aquela primeira noite.
 
E foi aí, bem na hora em que o sol estava sumindo lá pelos campos e matos, que o pretinho começou a cantar... ...Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga mais triste, e que voz mais triste de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi tirar tanta tristeza, para repartir com a gente... Inda era pior do que o choro de em-antes... 
 
A voz do menino chega a lembrar (ou será que estarei me sugestionando?) a voz de um Milton Nascimento infantil mas já capaz das nuances futuras de um Milton Nascimento – que já era nascido quando Rosa publicou seu livro: 
 
Era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim... Mas, linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada, que ficou triste de repente:
...“Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão...” 




Os vaqueiros ficam indóceis, todo mundo nervoso. Um bebe cachaça, o outro puxa do bolso as cartas da família, outro cantarola triste... A história do pretinho tem um final trágico e meio sobrenatural, que fica reservado a quem se dispuser a ler o conto. 
 
O episódio do negrinho me trouxe à lembrança uma cena parecida, num dos meus contos preferidos de Mark Twain, “Uma Estranha Aventura” (“A Curious Experience”, 1881). 
 
Um adolescente pede para se alistar nas tropas do Norte, durante a Guerra Civil norte-americana, e é designado para ajudar na banda de música do quartel. O problema que surge é porque toda noite, no alojamento, antes de dormir, o menino (que tem uns 14 ou 15 anos) reza em altas vozes pedindo a bênção do céu para cada músico da banda; e depois desata a cantar hinos religiosos. 



(Mark Twain)
 
Um oficial relata o fato ao Major:
 
Mas o mais grave de tudo é que quando acaba a reza – quando ele finalmente acaba a sua reza – ele ergue a voz e começa a cantar. Bem, o senhor sabe que a voz dele, quando fala, é doce como o mel; sabe como seria capaz de persuadir aquele cão de ferro do portão a descer os degraus e vir lamber-lhe a mão. Creia na minha palavra, isso não é nada diante da cantiga! Ah, ele se limita a entoar aqueles versos , numa voz tão doce e tão suave, ali no escuro, que faz a gente pensar que está no céu. (...) E ele canta: “Assim como eu sou – um coitado, um cego, um desvalido...”  (...)  E ele faz um homem se sentir o bruto mais ingrato e mais canalha que já existiu. E quando ele canta sobre a casa em que viveu, e sua mãe, e sua infância, e as lembranças de antigamente, e os amigos que morreram e se foram para sempre, isso traz para a mente daqueles homens tudo que eles amaram e perderam em sua vida... 
(trad. BT)
 
Os hinos do garoto fazem aqueles soldados rudes chorarem aos soluços, e na manhã seguinte levantam-se todos fungando, com olhos vermelhos, sem coragem para olhar na cara uns dos outros. 
 
Ficam tal como os vaqueiros do conto de Rosa – que numa entrevista ao Correio da Manhã em 1946 asseverou ter misturado à história dos vaqueiros um personagem real: um menino preto que ele conheceu numa pensão onde morou, quando era estudante na capital mineira. 
 
A poética da tristeza ganha uma dimensão maior quando estabelece esse contraste entre a inocência da infância e o temperamento calejado de homens guerreiros. 
 
E existe o poder hipnótico da tristeza, a tristeza como uma emanação irresistível que brota de alguém e envolve os sentimentos de quem esteja em volta. É algo que foi expresso de maneira inesquecível por Samuel R. Delany em sua noveleta interplanetária Empire Star (1966; no Brasil, “Estrela Imperial”, Ed. Morro Branco, trans. Petê Rissati)).



O protagonista desta história é Comet Jo, um rapaz meio andarilho, que costuma tocar uma ocarina, e precisa pegar carona numa espaçonave para ir a outro planeta, cumprir uma missão qualquer. (Não é uma “missão qualquer” – este livro é cheio de coisas interessantes, mas que não vêm ao caso para esta citação.)  Ele é aceito na nave, e outro rapaz, também músico, chamado Ron, começa a lhe mostrar o que há lá dentro. 
 
Uma das coisas que há lá dentro é um carregamento de “Lll” (=a letra L, três vezes repetida), seres alienígenas.
 
Jo seguiu Ron por um corredor, passaram por uma escotilha, desceram uma pequena escada.
– Os Lll estão aqui – disse Ron, diante de uma porta circular. Ainda estava segurando o braço do violão. Empurrou a porta, e alguma coisa agarrou o estômago de Comet Jo e o virou pelo avesso. Lágrimas cresceram nos olhos dele, e sua boca se abriu. Respirou com dificuldade.
– É uma porrada, hein? – disse Ron em voz baixa. – Vamos entrar.
Jo estava amedrontado, e quando penetrou naquela penumbra sentia-se afundar dez metros a cada passo. Piscou os olhos para clarear a vista, mas as lágrimas voltaram.
– Esses são os Lll – disse Ron.
Jo viu lágrimas no rosto queimado de sol de Ron. Olhou para diante.
Eles estavam acorrentados ao piso pelos pulsos e tornozelos; Jo contou sete deles. Seus enormes olhos verdes piscavam na luz azulada do compartimento de carga. Seus torsos eram encurvados, as cabeças hirsutas. Seus corpos pareciam imensamente fortes.
– O que é que eu estou... – Jo tentou dizer, mas tinha alguma coisa presa na garganta. – O que é que eu estou sentindo? – sussurrou ele, pois era o mais alto que conseguia falar.
– Tristeza – disse Ron.
E assim que recebeu um nome aquela emoção se tornou reconhecível – uma tristeza vasta, avassaladora, que sugava todos os movimentos de seus músculos, toda a alegria dos seus olhos.
– Eles me deixam... triste? – perguntou Jo. – Por que?
– São escravos – disse Ron. – Eles constroem; constroem de uma maneira muito bela, maravilhosa. São extremamente valiosos. Construíram metade do Império. E o Império os protege desta maneira.
– Protege? – perguntou Jo.
– Ninguém pode se aproximar deles sem se sentir assim.
– Nesse caso, quem iria comprá-los?
– Não muitas pessoas. Mas existem em número bastante para que eles sejam escravos incrivelmente valiosos.
– Por que não soltam eles?! – perguntou Jo, e a frase soou no final quase como um grito.
– Economia – disse Ron.
– Como é que alguém pode pensar em economia sentindo-se deste jeito?
– Não é muita gente que consegue – disse Ron. – Essa é a proteção dos Lll.
Jo esfregou os olhos.
– Vamos sair daqui.
– Vamos ficar mais um pouco – retrucou Ron. – Vamos tocar para eles agora. – Ele sentou num caixote, empunhou o violão e fez um arpejo num acorde modal. – Toque. Eu lhe acompanho.
(Empire Star, trad. BT)
 
À maneira típica de Delany, vários conceitos estão expostos de forma entrelaçada nesse trecho: o esboço rápido das relações econômicas do Império interplanetário, a dominação de uma raça por outra, o conceito aparentemente contraditório de que um escravo é protegido pela tristeza que desperta nos outros (o que os trancafia na esfera do “não quero pensar nisso”); e o uso da música como fator de equilíbrio ou tentativa de comunicação. Sem falar no nome da raça escravizada – os “Lll”, um nome impronunciável, um conceito que (do ponto de vista do leitor, que neste momento é o mais “alienígena” de todos) pode ser lido mas não pode ser compartilhado em voz alta. 
 
A tristeza pode ser revelada através do canto, como no pretinho de Sagarana, pode ser provocada nos outros através do canto, como no conto de Mark Twain, e pode ser uma aura que, exalada telepaticamente (por assim dizer), pode ser atenuada pela música. 
 

 
(Samuel Delany, 1966)







quarta-feira, 12 de abril de 2023

4931) A Invenção de Morel (12.4.2023)




Um tema recorrente na ficção científica é o tema da fuga para outros planetas, antes ou durante um cataclismo qualquer. Como a Terra está em vias de destruição, preparam-se algumas “arcas de Noé” que decolarão rumo a um planeta habitável, onde a humanidade terá um novo recomeço. 
 
Um clássico do cinema nessa veia é O Fim do Mundo (“When Worlds Collide”, Rudolph Maté, 1951). A questão principal é: quem vai nessa Arca?  Quem serão os felizardos? No filme, o milionário que financia a construção da espaçonave exige o direito, bastante compreensível, de escolher os convidados. Briga-se muito, e a escolha acaba sendo feita por um sorteio de loteria, que dá origem a vários desdobramentos melodramáticos.
 
No recente e premiado conto de N. K. Jemisin, Emergency Skin (2019; no Brasil, na antologia Forward, Ed. Intrínseca, 2021), a Terra está em pleno colapso e os bilionários constroem uma frota de espaçonaves para a fuga. Depois que eles vão embora, os que ficaram para trás conseguem reverter a situação, uma vez que os causadores da situação migraram em massa. 
 
Numa catástrofe, salvam-se os que podem. 
 
Se um cientista inventar um dia uma máquina de imortalidade, ou de imortalização, quem serão os primeiros beneficiados? Provavelmente as pessoas a quem ele tem acesso, as pessoas que são importantes para ele. 
 
É mais ou menos o que acontece com o Morel imaginado por Adolfo Bioy Casares no seu clássico La Invención de Morel (1940). No Brasil, o livro saiu pela Expressão e Cultura como A Máquina Fantástica (1974, trad. Vera Neves Pedroso), republicada em 1986 pela Rocco como A Invenção de Morel


Fiz mais acima uma distinção entre imortalidade e imortalização, e esta é essencial na concepção da história. Morel (não farei aqui um resumo do enredo do romance) inventou uma espécie de cinema em 3D ou 4D, que registra e conserva, de forma perfeita, a presença e as ações de pessoas num ambiente. Uma espécie de cinema total, onde as imagens são tridimensionais, e têm uma materialidade concreta que falta, por exemplo, aos hologramas. 
 
E durante uma semana ele traz seus amigos para a ilha onde tem uma mansão (com jardim, piscina, etc.) e todos se divertem, bebem, riem, cantam, dançam, praticam esportes, namoram, desfrutam daquele lazer um pouco tenso e um pouco ruidoso dos ricos que, não precisando ganhar a vida, precisam, o tempo inteiro, inventar pretextos para preencher seus dias imensos, longuíssimos, dias e noites que não acabam mais. 
 
O que Morel descobre não é a imortalidade, que seria o prolongamento indefinido da vida daquelas pessoas. As pessoas morrerão, sim. (Como dizia Millôr Fernandes, “injustiça social mesmo era se uns morressem, e outros não”.)  



 
O que a invenção de Morel lhes proporciona é a imortalização parcial: elas continuarão repetindo para sempre aqueles dias, aquela vida de eterno prazer num eterno presente. Existirão como imagens, símbolos, arquétipos. Daqui a mil anos, se outra civilização descobrir aquela ilha, os amigos de Morel estarão ali, reproduzindo suas vidinhas. Serão talvez os únicos registros remanescentes de quem eram os seres humanos do século 20, que aparência tinham, como se vestiam, o que comiam e bebiam, sobre que assuntos conversavam. 
 
A Invenção de Morel é um dos grandes livros da ficção científica latino-americana. 
 
Digressão: Já vi discussões sobre a eterna e insuportável questão de “pertence ou não pertence ao gênero...” Em primeiro lugar, obra alguma pertence a um gênero; um gênero literário (cinematográfico, etc.) é uma classificação artificial feita para comodidade de quem classifica. E, sendo os tais “gêneros” a mixórdia desencontrada que são, difícil vai ser encontrar uma história que não possa ser classificado em vários "gêneros" diferentes. 



O livro de Bioy Casares mostra a criação de uma máquina capaz de captar e reproduzir trechos da realidade, de forma tridimensional (ou quadri-dimensional, pois se dá ao longo do tempo), e material. É cientificamente improvável? Talvez – tanto quanto máquinas do tempo ou espaçonaves mais velozes do que a luz. 
 
Como disse Jorge Luís Borges, no famoso prefácio que escreveu para este livro: 
 
“Adolfo Bioy Casares, nestas páginas, resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desdobra uma odisséia de prodígios que não parecem admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo; e a decifra satisfatoriamente mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural.” 
 
Fim da digressão.
 
O livro teve algumas adaptações cinematográficas, e vi dias atrás a versão que está no YouTube, uma adaptação francesa com legendas em inglês. É um filme para TV, de 1967, dirigido por Claude-Jean Bonnardot, que Bioy Casares afirma ter assistido (sem gostar muito) em Paris, na casa de amigos.



 
Em todo caso, a história (da qual estou revelando apenas uma das muitas faces) mantém a ironia presente no livro de Bioy Casares. Se alguém inventar uma máquina de imortalização, quem serão os beneficiados? Os mais inteligentes, os mais humanistas, os mais indispensáveis à humanidade? Não: provavelmente serão, como em Morel, pessoas ricas e com acesso “às mais avançadas das mais avançadas das tecnologias”. 
 
Serão preservadas para sempre: sua aparência física, suas roupas, o que comem, o que bebem, o que conversam... De certa forma, a invenção de Morel se assemelha à literatura de um Marcel Proust ou de um Henry James, que descreveram com minúcia (e cristalizaram para sempre) a vida cotidiana e os sentimentos banais ou intensos de gente rica. 



 (As imagens são do filme no YouTube.)