sábado, 21 de janeiro de 2023

4905) A poesia na era da tecla ENTER (21.1.2023)




Existem algumas sutilezas curiosas na teoria poética. Elas dependem de uma capacidade nossa de perceber por instinto, num golpe de olhos, a diferença entre prosa e poesia.  
 
Nossos olhos percebem um texto antes de começar a lê-lo. Percebem certas características do texto – e o avaliam quase inconscientemente, induzidos por experiências prévias (“quando o texto tem um formato assim-ou-assado, é porque se trata de um texto assim-ou-assado”). 
 
Uma coisa bem “básico-do-básico” é o formato de uma lista. Suponhamos que alguém me pediu para fazer uma lista de cinco filmes que eu considero grandes obras. Eu posso fazer essa lista assim: “Oito e Meio” de Fellini; “Terra em Transe” de Glauber Rocha; “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman; “Mickey One” de Arthur Penn; “O Último Metrô” de François Truffaut. 
 
É uma lista, mas a lista vem diluída num formato de texto corrido, e só começa a ser identificada como lista no momento em que começamos a ler. Na cabeça da gente, lista é uma coisa que tem o seguinte visual: 
 
·         “Oito e Meio” de Fellini
·         “Terra em Transe” de Glauber Rocha
·         “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman
·         “Mickey One” de Arthur Penn
·         “O Último Metrô” de François Truffaut
 
Listas são assim, segmentadas, verticalizadas, com ou sem numeração.
 
Um meme que circula muito por aí faz uma brincadeira justamente com essa expectativa, e a frustração dessa expectativa:


É uma experiência divertida de metalinguagem, e se vale em primeiro lugar desta nossa expectativa com relação ao formato das listas. O sujeito diz: “Coisas que eu odeio: 1) Vandalismo” (e ele já começa vandalizando uma parede de azulejos, escrevendo em cima dela); “2 – listas” (e nesse instante já ficou bem clara a intenção – ele está sacaneando o próprio enunciado); “3 – ironia” (neste ponto a gente já entendeu qual a “chave” da piada, e nossa terceira risada não é mais de surpresa, e sim de confirmação); “4 – listas” (a risada é menor, “ué, listas de novo?”; “5 – repetição” (volta a risada, porque no 5 a gente entende a função do 4); “F – inconsistência” (aqui a risada é maior, porque a piada vem “fora da caixa”). 
 
Dá até para sugerir a proposta (meio ousada) de considerar que a Lista é um gênero literário. Tem  uma estrutura, tem uma organização no espaço, tem uma dinâmica interna que pode ser explorada para produzir emoção, informação, contradição, elucidação de mistérios, etc. 
 
A literatura escrita tem essa relação com o espaço visual da página; certos manuscritos medievais estão numa zona limítrofe entre a literatura e as artes plásticas, de tão ricas e criativas que eram as “iluminuras” em volta do texto. 
 
Hoje em dia, num livro, qualquer livro, o texto surge como bloco de linhas, quando viramos a página, antes de começarmos a ler. O leitor habitual já pensa, distraidamente: “ih, lá vem textão”, ou então “ah, essa página vai ser coisa rápida”. 
 
Exemplo 1:




Esta é uma reprodução da primeira página de um conto de Edgar Allan Poe. Poe publicava na primeira metade do século 19, quando a prática editorial era aproveitar ao máximo o espaço da página e enchê-lo de texto até onde fosse possível.
 
Quando editei pela Casa da Palavra os Contos Obscuros de Edgar Allan Poe (2010), houve algumas discussões sobre o fato de alguns  textos serem um “bife” contínuo de várias páginas sem uma só quebra de parágrafo. O pessoal da editora dizia: “Não precisamos ser fiéis à diagramação original. O leitor de 2010 é outro. Vamos quebrar parágrafos, ‘clarear’ a página”. E me parece uma decisão sensata. Talvez uma edição acadêmica, preciosista, científica, se sinta obrigada a seguir o mesmo formato da primeira publicação dos textos. (E mesmo isto é questionável, pois em vida do autor o mesmo texto geralmente é editado em diferentes diagramações.) 
 
Exemplo 2:

Aqui está uma típica página do grande Luis Fernando Verissimo, com seu diálogo em ping-pong. Se a página de Poe é uma página “escurecida” pela quantidade de texto, a página de Verissimo é uma página bem clarinha. Uma coisa repousante para o leitor. Já vi “manuais de redação” aconselhando: nunca faça parágrafos de 10 linhas ou mais; isto espanta o leitor. Quebre tudo em unidades menores, sempre que possível. 
 
Eu sigo esse conselho – sempre que possível. Porque para mim um parágrafo, mais que uma unidade visual, é uma unidade rítmica. Há um arco de leitura que começa na primeira frase e termina na última. Às vezes esse arco se esgota em quatro ou cinco linhas, às vezes precisa de quarenta ou cinquenta. Paciência. 
 
Isto nos traz finalmente à questão da poesia. 
 
A linha quebrada da poesia é a marcação de uma unidade rítmica.
 
Quando a gente está usando formas fixas, o número fixo de sílabas deixa as linhas poéticas com o mesmo tamanho, aproximadamente:


 
O número fixo de sílabas (7 sílabas poéticas, no caso dos folhetos de cordel da foto acima) é uma medida rítmica universal, mas não é a única. O famoso poema “Howl” (“Uivo”, 1956) de Allen Ginsberg, tem linhas enormes, longuíssimas, que se prolongam até não poder mais: 


Qual a explicação de Ginsberg para essas linhas intermináveis, que esbarram na margem direita da página e precisam ser acomodadas abaixo até onde Deus der? Ginsberg era da geração da poesia oral, recitada, berrada nos auditórios, sussurrada ao microfone dos bares. E ele explica:
 
Idealmente, cada linha de Uivo é uma unidade de respiração... Minha respiração é extensa, e esta é a medida, uma inspiração físico-mental do pensamento, contida na elasticidade da respiração... (...) Desse modo, você acomoda a linha do verso na página de acordo com o ponto onde a sua respiração se esgota, e acomoda o número de palavras dentro de cada ‘respiro’, seja longo ou curto, e assim estes versos longos ganharam forma. (trad. BT)
 
Cada poeta é livre para organizar a apresentação de seus versos na página. Não podemos esquecer o verso de Maiakóvski, que costumava partir cada linha de verso em dois ou três segmentos que se enfileiravam como degraus descendentes de uma escada:


A linha, do modo como aparece inscrita na página, indica um ritmo. Não é uma obrigatoriedade; cada leitor lê do seu jeito, mas o poeta sugere uma leitura, talvez a leitura preferencial na opinião dele, que é autor, mas nunca será a única possibilidade. 
 
As pessoas que costumam ler e recitar poemas se dividem geralmente em duas leituras típicas. 
 
Na primeira, a pessoa faz uma pequena pausa ao chegar no fim da linha, mesmo que a frase esteja se prolongando pela linha seguinte. Mas o recitador entende que é interessante fazer essa pausa quase imperceptível para indicar à platéia que uma linha gráfica se encerrou naquele ponto. (Eu prefiro ler assim). 
 
Na segunda leitura, a pessoa ignora os “finais de linha” e lê as frases obedecendo ao ritmo de cada uma, e à pontuação gramatical; lê como se se tratasse de um texto em prosa, lê ignorando a divisão em linhas. Isto é errado? De maneira nenhuma, é certíssimo também. É apenas outra maneira de fazer. 
 
O que não deve ser ignorado – por quem escreve, por quem lê, por quem critica – é que a linha poética é uma forma de pontuar, de indicar pausas, de delimitar unidades. Fernando Pessoa, que fazia verso curto, verso longo, verso metrificado e verso livre com a mesma competência, discute os poemas de ‘Álvaro de Campos’, que alguns leitores acusavam de ser mera prosa em linhas interrompidas, e avisa, na sua “Nota Preliminar”: 
 
O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. (...) Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação – digamos o traço vertical ( | ) para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
 
Jorge Luís Borges, em seu “Prólogo” à coletânea de poemas Elogio da Sombra (1960, trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques), adverte: 
 
Comum é afirmar que o verso livre não é outra coisa senão um simulacro tipográfico; penso que nessa afirmação se oculta um erro. Para além de seu ritmo, a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção poética, não a informação ou o raciocínio, é o que o está esperando.
 
Certa vez, conversando com um amigo poeta, já nesta confortável Era Do Computador, perguntei como ele costumava dividir os versos do poema. Ele disse: “Ah, agora é fácil, eu vou escrevendo tudo em texto corrido. Quando acabo, volto pro começo e vou quebrando as linhas com a tecla Enter, quebro uma aqui, outra acolá...”
 
Fiquei maravilhado com esta varinha-de-condão, tão prestimosa, tão acessível, e escrevi o poema abaixo, que resgata, num outro patamar de sensibilidade e ritmo, algumas idéias contidas no parágrafo inicial deste artigo:
 
Existem
algumas sutilezas curiosas
na teoria poética. Elas
dependem de uma capacidade nossa
de perceber
por instinto,
num golpe de olhos,
a diferença entre prosa
e poesia. 
 


("Poema" – Joaquim Cardozo)
 





Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Bráulio. É sempre um prazer ler teus artigos sobre poesia. Gostei muito do teu livro "Contando Histórias em Versos". Obrigado, um abraço, Juliano Dupont