domingo, 15 de janeiro de 2023

4903) Temas clássicos da narrativa policial (15.1.2023)



(by Tom Gauld) 

 
Algumas ressalvas, de início. Primeiro, que esta lista não quer ser exaustiva. Segundo, que os temas não se limitam ao romance, estão prsentes também no conto, no cinema, etc.  São, a rigor, temas da narrativa policial. Terceiro, que “policial” é um termo constantemente criticado pelos que preferem “literatura de mistério”, “ literatura de crime”, etc., de acordo com o elemento que predomina em cada história. É uma discussão importante, mas à parte.
 
Compus a lista abaixo há muitos anos, sem outra pesquisa a não ser minha memória das histórias que li.


O quarto fechado
São as histórias de “locked room” (também ditas “de sala trancada”), os crimes impossíveis onde, na versão mais simples, a vítima é encontrada morta num aposento trancado por dentro, sem qu se saiba como o assassino entrou ou saiu. Desta situação básica foram criados alguns milhares de variantes. Em 2021, publiquei pela Ed. Bandeirola (SP) a antologia Crimes Impossíveis, com dez contos clássicos desta vertente.
 


 
A mensagem do morto
A vítima é ferida, mas em seus últimos instantes de consciência tenta deixar uma pista denunciando quem a matou – fazendo um gesto, rabiscando uma palavra, indicando um objeto, etc.  A pista tem que ser de tal natureza que mesmo vista pelo assassino não lhe chame a atenção, pareça um movimento sem sentido; e ao mesmo tempo deve chamar a atenção do detetive e permitir-lhe a associação de idéias correta.
 
Ellery Queen é um dos que exploraram com mais inteligência este tema (A Tragédia de X, “Mum is the Word”, “G. I. Story”, etc.). Há geralmente um ar de implausibilidade neste recursos – que pessoa, agonizando com um tiro ou uma punhalada, teria tempo de raciocinar e conceber uma denúncia desse tipo? Mas, ressalvando este detalhe, é o tipo de história que repousa sobre apenas um detalhe enigmático, e esse detalhe, em tese, indica de forma precisa a identidade do assassino.
 



O documento desaparecido
Um documento desaparece, sabe-se que não foi destruído, e é preciso reavê-lo a todo custo. Muitas vezes é um testamento, ou a prova de um crime, ou uma carta comprometedora... O precursor mais ilustre é “A Carta Furtada” de Edgar Allan Poe. Em muitos casos o autor segue a tática de Poe de revelar no fim que o documento estava apenas disfarçado, mas, num certo sentido, à vista de todos. Histórias deste tipo não precisam necessariamente envolver crimes. São histórias de mistério e engenhosidade, apenas. 
 
Lembro de ter lido no Mistério Magazine de Ellery Queen uma história (não sei de quem) de um velho, dono de uma mansão com imenso jardim, que tentava deixar sua grana para alguém, e a família (hostil) era contra. No fim da história, alguém percebe que antes de morrer ele havia plantado flores amarelas em todo o jardim, e quando florescem todas ao mesmo tempo formam o texto (lacônico, por suposto) do testamento.
 
É um conto típico da “fase rococó” de um subgênero, quando todas as variantes já foram testadas e é preciso inventar truques cada vez mais imaginosos.



O álibi perfeito
Todo criminoso, de acordo com o beabá detetivesco, tem que dispor de três elementos: o motivo, a arma e a oportunidade. Neste último detalhe repousam todas as histórias que giram em torno do álibi. Um álibi é qualquer circunstância provando que o suspeito não poderia cometer o crime porque não teve a oportunidade; geralmente, ele consegue provar que na hora do crime estava em outro local. 
 
Vai daí que muitas histórias policiais “às avessas” (narradas do ponto de vista do criminoso) mostram a preparação cuidadosa de um falso álibi. Sempre é possível produzir a impressão de que “A” não poderia matar “B” porque estava em outro local naquela hora, ou então produzir a impressão de que “B” foi morto em outro momento (neste caso é mais difícil, pois a medicina pode estabelecer uma faixa de certeza quanto à hora do crime). 
 
Um exemplo muito bom, de autor brasileiro, é o romance de Fernando Sabino A faca de dois gumes (1985), em que o protagonista comete um crime no Rio de Janeiro, tendo preparado tudo para provar que estava em São Paulo naquela hora. O livro foi adaptado para o cinema por Murilo Sales.


 
As mortes em série obedecendo a um padrão
O subgênero “serial killer” estava num certo ostracismo cinquenta anos atrás. Acho que foi ressuscitado pelo sucesso do filme O Silêncio dos Inocentes (1991) de Jonathan Demme, que ganhou o “Grande Slam” do Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Ator e Atriz. Daí em diante, serial killers despencaram em catadupa sobre as nossas telas. Hoje, são tema de séries documentais de TV. O serial killer é o maior mito pop do século 21.
 
A narrativa detetivesca coloca para si mesma esta questão: Qual o elo que liga essas mortes? O que fez este assassino matar estas pessoas, e não outras? 
 
Na vida real, sabemos que para a maioria dos serial killers a pessoa da vítima é o que menos importa. Não são crimes de ódio ou de vingança pessoal. O crime é um ritual que ele cumpre para benefício próprio, e a vítima está ali como uma rês anônima sendo sacrificada num altar pagão.
 
A literatura, no entanto, exige significado, deliberação, arquitetura. Esses crimes têm que ter uma razão para acontecer – nós (os detetives) é que não percebemos ainda. E quando percebemos somos capazes até de prever quem será a próxima vítima. É um tema que percorre desde o terror criminal de O Abominável Dr. Phibes (1971, Robert Fuest) até A Noiva Estava de Preto (livro de Cornell Woolrich, filme de François Truffaut) e Seven (1995, David Fincher).


As mensagens enviadas pelo criminoso, fornecendo pistas indecifráveis
Outro lugar comum dos serial killings é o fato de que o criminoso faz um jogo de gato-e-erato com a polícia, enviando mensagens intrigantes ou ameaçadoras. Jack o Estripador, o serial killer arquetípico, fez isto com a polícia londrina, enviando até algumas estrofes de doggerel (versos populares) zombando da impotência policial. 
 
Um clichê da narrativa de suspense baseada nisto é o fato de que o assassino envia pistas de quem será a próxima vítima, e faz a polícia se desesperar na tentativa de decifrá-las, para evitar que o crime aconteça. Uma inteligente adaptação deste tema está no conto “O Chá Doido” (“The Mad Tea-Party”) de Ellery Queen.




O roubo da jóia trancada a sete chaves
Como roubar uma jóia (ou um quadro, um objeto de arte, etc.) de alto valor, quando se sabe que este roubo será praticado, e o dono do objeto tomou todas as providências para evitá-lo? Este tema reúne alguns elementos do “quarto fechado” e também do “documento desaparecido”. Trata-se de mostrar que por mais que alguém guarde, trancafie e proteja um objeto, ele poderá ser roubado.
 
Entram aqui alguns dos mais famosos ladrões da narrativa policial: de Arsène Lupin a Raffles, do Sinete Cinzento (de Frank Packard) a Simon Templar, “O Santo” (de Leslie Charteris). Nenhum furto parece impossível a esses mefistofélicos articuladores de planos que podem envolver de tudo: passagens secretas, substituições relâmpago, subornos imprevisíveis, trocas de identidade, manobras diversionistas... 
 
O Ladrão, aliás, é um personagem à parte na narrativa de crime. Muitas vezes não é o ladrão banal, que rouba para lucro próprio. É o indivíduo que faz do furto uma arte, uma habilidade à disposição de quem possa pagar por ela. O ladrão é um profissional contratado para executar uma manobra de alto risco. E não conheço exemplo melhor do que Karmesin, o herói mirabolante criado por Gerald Kersh, para quem tanto faz roubar um cadáver do necrotério quanto a água de uma piscina.
 



A casa isolada e os crimes sucessivos
É o subgênero também chamado de círculo fechado (“closed circle”). Um grupo de pessoas está reunido num lugar qualquer, com pouca possibilidade de contato com o mundo exterior, e uma série de crimes começa a acontecer, deixando claro que o criminoso provavelmente é um deles. Os lugares e as situações variam: uma ilha longe da costa (Glass Onion, Rian Johnson), uma casa cercada por um incêndio (The Siamese Twin Mystery, Ellery Queen), um hotel isolado pela nevasca (The Mousetrap, Agatha Christie), uma casa de campo isolada pela chuva (The Mad Tea Party, Ellery Queen).
 
Este subgênero pode equilibrar os fatores de mistério e de suspense, uma vez que se torna claro para todos que novos crimes deverão acontecer, e ninguém pode fugir dali.
 



O amnésico acusado de um crime e investigando por conta própria
Um homem desperta meio zonzo, geralmente depois de uma bebedeira, ou de uma pancada na cabeça; e descobre que meses ou anos se passaram desde a última vez que consegue lembrar-se. Onde ele estava, e o que fez durante esse tempo? O homem com amnésia descobre, nas primeiras horas após recuperar sua personalidade original, que está com documentos que não são os seus (embora a foto seja sua), roupas que não conhece, e pessoas desconhecidas o abordam com estranheza. E descobre que provavelmente cometeu um crime nesse período de que não se lembra.
 
Uma variante desse tema começa com o protagonista despertando amnésico – a história irá relatar seus primeiros dias ou meses sem lembrar quem é, metendo-se em enrascadas e sem ter a quem recorrer. 
 
Mistério e suspense se juntam nas narrativas em que o protagonista tenta colar os cacos de si próprio. Um clássico no cinema é Memento (2000, Christopher Nolan). Uma adaptação do tema para o techno-thriller político é a série iniciada com A Identidade Bourne (2002, Doug Liman). Na literatura, lembro de A Cortina Negra (Cornell Woolrich), Morte Inglória (Hugh McCutcheon), sobre os quais escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/08/2324-amnesia-1982010.html
 



(The Lodger, 1927, Alfred Hitchcock)
 
O vizinho (inquilino, locador) misterioso
Num hotel, pensão, casa de cômodos, etc., surge um belo dia um indivíduo misterioso, esquisito, que nada faz de censurável ou de agressivo, mas que incomoda pelo seu ar “diferente” ou hábitos estranhos. Crimes acontecem na vizinhança. Terão relação com a chegada dele?  The Lodger (1911) de Marie Belloc Lowndes é um clássico deste subgênero, e foi adaptado ao cinema por Alfred Hitchcock (1927). 
 
Uma variante inevitável é a do vizinho “estudadamente simpático”, alguém que fala com todo mundo, paga bebidas, faz favores antes que eles sejam solicitados, dá sempre um jeito de se meter na vida dos outros hóspedes, torna-se aquele sujeito de quem alguém só consegue se livrar com grosseria. E logo surge a suspeita de que ele está tentando amealhar amizades, e se garantir contra algo.
 
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E por aí vai. Falo alternadamente dos tópicos acima como “temas” e como “subgêneros”. A tendência, na literatura popular, é que um tema, ao fazer sucesso, seja repetido com variantes pelo próprio autor inicial, ou por outros. Se este sucesso aumentar, ele se transforma num subgênero, com regras próprias que serão um conjunto das regras propostas nas diversas variantes. “Regras” é um termo muito forte: digamos que todas estas histórias, vistas em conjunto, apontam caminhos, que um novo autor pode usar ou não, de acordo com sua conveniência. 
 





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