quinta-feira, 30 de junho de 2022

4838) O real-maravilhoso de César Vallejo (30.6.2022)



A Editora Bandeirola (SP), que está publicando alguns livros meus, mantém uma linha, a “Clássicos Vintage”, dedicada à literatura de cerca de 100 anos atrás. Depois de Conan Doyle, H. G. Wells e Franz Kafka, ela coloca agora em financiamento coletivo, através do “Catarse”, um volume do peruano César Vallejo, com tradução de Ellen Maria Vasconcellos, juntando duas coletâneas: Escalas Melografiadas e Fábula Selvagem, ambas de 1923.
 
Veja aqui informações sobre o livro e a campanha:
https://www.catarse.me/vallejo
 
Vallejo é considerado um dos poetas mais importantes da América Latina, principalmente por seus livros Os Arautos Negros (1919) e Trilce (1922).  Depois destas obras marcantes, Vallejo publicou seus dois pequenos volumes de contos e foi morar na França, onde morreu aos 46 anos, em 1938.
 
O que as pessoas chamam de “Modernismo” envolve variadas formas e técnicas literárias que (mesmo tendo sempre existido aqui e ali) se disseminaram na virada do século 19 para o 20.
 
Por exemplo, as vinhetas descritivas e pequenos episódios narrativos de Kafka em Contemplações (1912) correspondem de certo modo às vinhetas e episódios que Arthur Rimbaud usou em seus últimos livros, As Iluminações (1875) e Uma Estação no Inferno (1873).
 
Não cabe aqui falar em influências, ou tentar descobrir se Kafka leu Rimbaud. Os dois são pontas de um iceberg, ou melhor dizendo são ilhas que denunciam um continente submerso. Alguns historiadores chamam esse continente de Simbolismo, quando se referem ao autor francês (Edmund Wilson, por exemplo), e outros o chamam de Expressionismo quando se referem ao tcheco que escrevia em alemão. Chamem do que quiserem: têm algo em comum, sim, têm uma certa visão e uma certa dicção em comum, por mais diferentes que sejam.
 
Há neste tipo de escrita um afastamento voluntário da espessa e encorpada ficção realista praticada na Europa do século 19. Beneficiando-se de suas descobertas (todo movimento novidadeiro sobe nos ombros do movimento anterior, a quem pretende suceder), recorre ao enorme poder das descrições precisas, visuais, de um olhar acostumado à pintura e depois ao cinema.
 
Recorre também ao poder de verbalização dos estados mentais subjetivos, que outros autores (Proust, Woolf, Joyce) estavam levando ao limite nessa mesma época, nos formatos longos da ficção. Recorre ao formato “fragmento”, de meia ou uma página, que muitos leitores de cem anos atrás devem ter saudado como um tipo de literatura “em sintonia com a velocidade dos tempos modernos, os tempos de novidades como a energia elétrica, a bicicleta e o automóvel”.


 
Vallejo começou a publicar suas “iluminações” ou “contemplações” após a I Guerra Mundial, e isto já basta para distanciá-lo dos outros dois. Suas “ilha” é mais afastada, e recebe todo o caos, o desespero e a errática revolta que inspiraram, na longínqua Europa, movimentos como o Dadaísmo e o Surrealismo.
 
Me falta um conhecimento da literatura peruana que me permita tentar situar César Vallejo no interior da prosa e da poesia do seu povo, do contexto em que ele estava traduzindo, em verso e em prosa, o tumulto de sua atividade política e de sua vida pessoal. A leitura destes dois livrinhos de textos curtos, compactos, surpreendentes aponta para várias direções ao mesmo tempo.
 
Uma delas é o preciosismo verbal, o vocabulário encrespado de palavras exóticas. Uma tendência meio de época mas que nunca se extinguiu, e que aqui no Brasil vem desde o jargão científico-filosófico de Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos até a retórica helênica e latinista de Coelho Neto, vindo até o maneirismo do Guimarães Rosa de Tutaméia, com seus neologismos e sua sintaxe quebradiça.




Há traços disto em Vallejo, em muitas formações exóticas, onde substantivos são torcidos para se transformar em verbos ou adjetivos. Defeito passivo ou efeito proposital? Não importa muito; é o espírito da época.
 
A linguagem da época, por certo, uma literatura para onde vazava um transbordamento de terminologia científica já familiar a muitos autores, e que eles podiam imaginar ser também familiar ao público leitor de livros. Não custa lembrar que a primeira Universidade peruana, a de San Marcos, foi criada em 1551, e a Universidade de Trujillo, onde Vallejo foi aluno, foi criada em 1824. O Brasil, nesse tempo...
 
Discute-se bastante a relação entre Vallejo e o movimento surrealista francês. É mais uma questão de afinidade de espírito (e de fontes) do que de filiação ou de influências. Quando Vallejo publicou em 1923 Escalas melografiadas e Fábula selvagem, a literatura surrealista oficial contava apenas com Les Champs Magnétiques (1920), onde André Breton e Philippe Soupault publicaram suas primeiras experiências de escrita automática.



Claro que por trás disso tudo havia a fragmentação do texto narrativo, dando à “vinheta” (pode-se chamá-la assim) uma proeminência que o conto começara a ter cem anos antes, com Edgar Allan Poe e outros. Textos cada vez mais curtos, intensamente visualizados, energeticamente escritos, rompendo sem muito pudor os limites (sempre artificiais, sempre fruto de convenções teóricas) entre a poesia e a prosa.
 
Vallejo constrói seu “real maravilhoso” com o auxilio dessa linguagem fortemente artificial; seu fantástico não é a irrupção do sobrenatural num cotidiano jornalisticamente reconstituído, é um mergulho imediato num plano levemente alucinatório, onde tudo pode ser banal mas toda ruptura é também possível.
 
Existe algo kafkeano em alguns dos seus relatos de prisão contidos em Escalas Melografiadas – o bêbado que causa a morte do amigo (“Muro Duplo”). Em “Além da Vida e da Morte”, o narrador cavalga de volta ao povoado onde nascera, num clima fantasmagórico que não deixa de lembrar o Pedro Páramo (1955) de Juan Rulfo; reencontra com espanto a mãe já falecida, e é ela quem se assombra ao rever o filho – que estava morto.
 
Em “Muro Noroeste”, o narrador, na prisão, questiona os aparelhos da justiça humana, que ele considera incapazes de distinguir entre um culpado e um inocente, e por tabela questiona o próprio conhecimento científico da realidade:
 
O homem que ignora qual temperatura, com que suficiência acaba uma coisa e começa outra; que ignora a partir de que tom o branco já é branco e até que tom deixa de ser; que não sabe nem jamais saberá que hora começamos a viver, que hora começamos a morrer, quando choramos, quando rimos, nem onde o som faz fronteira com a forma nos lábios que dizem: eu... não alcançará, não pode alcançar saber até que grau de verdade um ato qualificado como criminoso é criminoso. O homem que ignora a que hora o 1 deixa de ser 1 e começa a ser 2, que até dentro da exatidão matemática carece da inconquistável plenitude da sabedoria, como poderá algum dia determinar e fixar o caráter delinquente de um ato, através de uma teia de motivos de destino, dentro da grande engrenagem de forças que movem os seres e coisas quando estão diante de outras coisas e seres?
 
As famílias inteiras que se transformam em macacos em “Os Caynas”, o homem que aparentemente não consegue distinguir entre duas namoradas em “Mirtho”, são variações de temas clássicos do fantástico, mas mais que o argumento em si é possível ver o espírito, a constatação dos estados mórbidos da mente, a susto da racionalidade que não consegue abranger e domesticar todas as experiências humanas.
 
Um espírito inconsciente e coletivo que Vallejo compartilhava à distância com outros contemporâneos seus como os nossos João do Rio e Lima Barreto; e mais cronistas, contistas, poetas que captavam com polaróides sintéticas e linguagem eletrificada as transformações aceleradas de sua época.







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