segunda-feira, 9 de maio de 2022

4821) "Severance": o Eu dividido (9.5.2022)



Tempos atrás, Philip K. Dick concebeu a história de um policial do departamento de narcóticos a quem cabe vigiar a casa de um usuário de drogas. O policial vigia a casa com toda aplicação. O que ele não sabe é que ele é o próprio usuário, que sofre de dupla personalidade e na verdade está vigiando sua própria casa, sua própria turma de amigos.
 
O usuário sai de casa todo dia de manhã para o trabalho, e no trabalho passa por um processo que o obriga a ir vigiar a casa “daquele sujeito suspeito” – que é ele próprio.
 
A Scanner Darkly (1977) foi publicado no Brasil com o título “O Homem Duplo”, mesmo título da adaptação cinematográfica de 2006, dirigida por Richard Linklater em forma de animação.
 
É o grau máximo das histórias de FC sobre personalidades divididas, um subgênero ilustremente inaugurado por Robert Louis Stevenson com Strange Case of Dr. Jekyll and Mr Hyde (1886). Este livro pode ser considerado FC, pois se trata de uma transformação de personalidade provocada pelo uso de uma droga fabricada em laboratório.
 
Uma nova versão deste tema, e mais apropriada a nossa época corporativa, é a série Ruptura (“Severance”), da Apple TV, projeto dirigido pelo comediante Ben Stiller. Não há muitos momentos de humor: a série é séria. É um pesadelo corporativo comparável a O Show de Truman (1998) de Peter Weir. A fábula de como os seres humanos se transformam em bonecos para atender às conveniências das empresas que os sustentam.
 
Uma grande corporação, a Lumon, oferece aos seus empregados a opção de fazer uma “ruptura” (“severance”) em suas mentes através do implante de um chip. Com isso, cada pessoa passa a ter duas mentes, uma para sua vida pessoal, outra para as horas de trabalho. E cada uma desconhece o que se passa na vida da outra, pois as respectivas memórias não são compartilhadas.
 
Quem já trabalhou em grandes empresas vai sentir um calafrio de terror quando assistir isto. Quem trabalha nesse regime precisa de fato, na hora do trabalho, esquecer por completo quem é, como vive, o que pensa; esquecer que é contra isto ou a favor daquilo; esquecer sua própria pessoa, em troca de bons salários, segurança, plano de saúde, e bônus, muitos bônus quando as metas forem atingidas.
 
Tudo isto é acidamente ridicularizado em Severance.
 
E quando o sujeito chega em casa, no aconchego de seus móveis, seus discos, a esposa, as crianças, os amigos, a última coisa que ele deseja é pensar no trabalho. Ele não quer, aqui fora, ficar pensando: Que empresa é esta? O que ela faz?: Como se comporta? Para que serve isto que passo o dia fazendo? Qual a utilidade desse trabalho que sei fazer mas não sei o que significa?


Mark (Adam Scott) é o recém-promovido líder de uma equipe de quatro pessoas, que tem mais Irving (John Turturro), Dylan (Zach Cherry) e a novata Helly (Britt Lower). Os primeiros episódios mostram Mark ensinando a Helly como se adaptar ao choque de não lembrar “quem é”, de como executar o trabalho, etc. Com isso, é resolvido de forma simples o problema de explicar todos esses detalhes ao espectador.
 
Acompanhamos a vida de Mark dentro do trabalho (chamemos de “Mark 2”) e fora (“Mark 1”). Sabemos quem é ele, entendemos os problemas por que passa; a cidadezinha onde ele vive existe praticamente em função da Lumon, o que não impede que os jovens, principalmente, façam manifestações de rua pedindo o fim da empresa.
 
Uma das grandes vantagens da ficção científica é poder radicalizar situações da vida real. A dupla personalidade é uma patologia mental, digamos – mas na FC essa patologia mental pode se tornar uma prática médica regulamentada e acessível a quem tem muito dinheiro. E para grandes empresas, principalmente empresas que detêm segredos corporativos, seria uma-mão-na-roda essa possibilidade de isolamento mental dos funcionários.
 
Afinal, “A Primeira regra do Clube da Luta é: Você não conversa sobre o Clube da Luta”. O que acontece aqui dentro, fica aqui dentro.
 
Severance lida com essa superposição de realidades na mente dos personagens, e de certa forma as projeta no espectador – porque embora vejamos tudo de fora, e saibamos coisas que Mark não sabe, tudo aquilo é também um mistério para nós, mistério que começa a se acelerar nos capítulos finais desta primeira temporada, à medida que novas revelações vão gerando novos enigmas. 
 
A premissa não é tão fantasiosa assim – os cientistas de hoje lidam até mesmo com a possibilidade de “recortar” memórias e implantá-las num cérebro, e não é absurdo supor que possa ser criado algum “filtro” que divida o cérebro em dois sistemas paralelos de memória, assim como podemos dividir um HD em dois.
 
O que seria, aliás, apenas a concretização física de um processo que, psicologicamente, todo trabalhador se esforça para produzir em si mesmo. Não pensar na família nem no lazer, quando está trabalhando. Não pensar no trabalho, quando está em casa. Muitos de nós achariam isso um paraíso.


 





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