segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

4778) O ser e o seu contrário (27.12.2021)



(Ursula LeGuin, por Camila Fernandes: Instagram @mila.f.arte)
 
Na década de 1960, Ursula LeGuin deu início à série de livros de fantasia conhecida como “Earthsea” (“Terramar”). Era para ser uma trilogia apenas, mas novas idéias foram surgindo, e a série foi aumentando. Interrompeu-se com a morte da autora, com um total de seis livros, sendo cinco romances e uma coletânea de contos. Talvez haja mais alguma coisa, que desconheço.
 
As histórias de Earthsea ocorrem num planeta imaginário e num arquipélago com dezenas (talvez centenas) de ilhas de todos os tamanhos. Algo como o Havaí ou o Japão, por exemplo, só que em escala maior. Um mundo composto de uma parte fixa, as ilhas, e uma parte móvel, o mar, por onde todos se deslocam continuamente. Uma civilização de canoeiros e navegadores.
 
Esse nome composto, Terramar, me chamava a atenção porque revelava ser um paradoxo assimilado. Terra e Mar são tidos como antônimos, como contrários, mas na verdade são espaços que se complementam para formar uma terceira coisa que necessariamente inclui eles dois, e que poderíamos chamar de o(a) Terramar ou a(o) Marterra.


O mesmo poderia ser aplicado ao nosso planeta, não é verdade?  Ele é chamado de Terra mas cerca de três quintos dele, quase dois terços, são cobertos pelo mar. E por baixo do mar existe mais terra. E nas superfícies de terra existem rios, lagos, e outras coisas que valem como infiltrações do mar, ou do elemento líquido. Nosso planeta bem poderia ter o nome de Terramar.
 
Tudo isso tem a ver com a visão de LeGuin, uma escritora que traduziu para o inglês o Tao Te King (“O Livro do Caminho Perfeito”, de Lao Tse), e para a qual os polos opostos existem, mas cada extremidade de um oposto está permeada, invadida, impregnada pelo outro. É dentro do Yang que cresce o Yin, é dentro do Yin que cresce o Yang. O mar está cheio de terras, a terra está cheia de mares. A Terra é composta de terra e mar.
 
Isto e mais uma série de exemplos me levou a formular o seguinte postulado:
 
Em nossa cultura, temos o hábito, ao tratar de uma entidade composta por dois elementos distintos e aparentemente contrários, de dar a esse conjunto o nome do mais visível desses elementos, o elemento predominante, o mais imediatamente perceptível. É ele quem “batiza”, “registra” e denomina essa dualidade.
 
Poderíamos chamar nosso planeta de Mar, porque nele os oceanos predominam; mas escolhemos chamá-lo de Terra, porque é onde vivemos, e portanto consideramos egoisticamente a terra mais importante do que o mar.


(Yin-Yang, por Aimará Decor)
 
Ocorreu-me que tratamos do mesmo jeito o dia e a noite. Um dia é um espaço de 24 horas, o tempo de uma volta completa do planeta em torno de si mesmo.  Ora, acontece que em cada momento desse giro uma parte do planeta está voltada para a luz e outra parte para a sombra. Chamamos aos momentos de luz “Dia” e aos momentos de sombra “Noite”.
 
O Dia, portanto, é algo composto de duas metades: o Dia e a Noite.
 
Essa analogia pode ser ampliada para um terceiro exemplo? Talvez.  Estive pensando na questão da memória, por exemplo. Andei vendo entrevistas de alguns psicólogos e neurocientistas, e me chamou a atenção o modo como eles se referem à memória como um processo que envolve tanto o lembrar quanto o esquecer. A memória não é apenas a atividade de lembrar, é também a de esquecer, de deletar, de descartar, de substituir, de “gravar por cima” das coisas anteriormente gravadas.
 
A Memória é um processo complexo que envolve a memória e o esquecimento. Ou, para ser mais preciso, a Lembrança e o Esquecimento.
 
Penso também na dualidade entre o nosso corpo e a nossa mente. Tudo em nossa cultura nos induz a ver as duas coisas não apenas como diferentes, mas como antagônicas. Não são! A mente faz parte do corpo, do ponto de vista físico: ela depende do cérebro, da medula espinhal, dos nervos que comandam nossos movimentos etc. 
 
A mente é um fenômeno provocado no cérebro pelos sentidos, mas que ganhou um grau espantoso de autonomia e de auto-referencialidade (eita!), tornando-se capaz de administrar a si mesma, num processo constante de retro-alimentação. Mas ela é parte do corpo e não existe sem o corpo. A chama faz parte da vela.
 
O Corpo, portanto, é um processo complexo que inclui o Corpo e a Mente.


(Luiz Antonio Simas e "O Corpo Encantado das Ruas")
 
Vendo há algum tempo uma entrevista de Luiz Antonio Simas, o autor do Dicionário Social do Samba (com Nei Lopes), O Corpo Encantado das Ruas e outros livros, grande pesquisador da cultura popular, registrei este comentário dele:
 
Eu sou um sujeito que trabalho muito com a dimensão do cruzamento. Trabalho muito com a dimensão do “cruzo”, a dimensão do encontro. Tem um princípio da cosmopercepção de mundo que é Bantu, que é Bakongo, os povos que vieram ali do norte de Angola, do antigo Império do Congo e tal...  E o Bakongo diz sempre uma coisa que eu acho muito interessante: “O ser não é ele ou o outro. O ser é ele e o outro”. E o campo da cultura é um campo de circularidade né?
 
Não sei se estou entendendo certo, mas acho que isso bate um pouco com a minha idéia de que a noção do dia como “o contrário da noite” é útil em vários aspectos, mas a noção de dia como a soma entre o que chamamos dia e o que chamamos noite é mais completa. E assim por diante.





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