(Ursula LeGuin, por Camila
Fernandes: Instagram @mila.f.arte)
Na década de 1960, Ursula LeGuin deu início à série de
livros de fantasia conhecida como “Earthsea” (“Terramar”). Era para ser uma
trilogia apenas, mas novas idéias foram surgindo, e a série foi aumentando.
Interrompeu-se com a morte da autora, com um total de seis livros, sendo cinco
romances e uma coletânea de contos. Talvez haja mais alguma coisa, que
desconheço.
As histórias de Earthsea ocorrem num planeta imaginário e
num arquipélago com dezenas (talvez centenas) de ilhas de todos os tamanhos.
Algo como o Havaí ou o Japão, por exemplo, só que em escala maior. Um mundo
composto de uma parte fixa, as ilhas, e uma parte móvel, o mar, por onde todos
se deslocam continuamente. Uma civilização de canoeiros e navegadores.
Esse nome composto, Terramar, me chamava a atenção porque
revelava ser um paradoxo assimilado. Terra e Mar são tidos como antônimos, como
contrários, mas na verdade são espaços que se complementam para formar uma terceira
coisa que necessariamente inclui eles dois, e que poderíamos chamar de o(a)
Terramar ou a(o) Marterra.
O mesmo poderia ser aplicado ao nosso planeta, não é
verdade? Ele é chamado de Terra mas
cerca de três quintos dele, quase dois terços, são cobertos pelo mar. E por
baixo do mar existe mais terra. E nas superfícies de terra existem rios, lagos,
e outras coisas que valem como infiltrações do mar, ou do elemento líquido. Nosso
planeta bem poderia ter o nome de Terramar.
Tudo isso tem a ver com a visão de LeGuin, uma escritora
que traduziu para o inglês o Tao Te King
(“O Livro do Caminho Perfeito”, de Lao Tse), e para a qual os polos opostos
existem, mas cada extremidade de um oposto está permeada, invadida, impregnada
pelo outro. É dentro do Yang que cresce o Yin, é dentro do Yin que cresce o
Yang. O mar está cheio de terras, a terra está cheia de mares. A Terra é
composta de terra e mar.
Isto e mais uma série de exemplos me levou a formular o
seguinte postulado:
Em nossa cultura, temos o hábito, ao tratar de uma entidade composta por
dois elementos distintos e aparentemente contrários, de dar a esse conjunto o
nome do mais visível desses elementos, o elemento predominante, o mais
imediatamente perceptível. É ele quem “batiza”, “registra” e denomina essa
dualidade.
Poderíamos chamar nosso planeta de Mar, porque nele os
oceanos predominam; mas escolhemos chamá-lo de Terra, porque é onde vivemos, e
portanto consideramos egoisticamente a terra mais importante do que o mar.
(Yin-Yang, por Aimará Decor)
Ocorreu-me que tratamos do mesmo jeito o dia e a noite.
Um dia é um espaço de 24 horas, o tempo de uma volta completa do planeta em torno
de si mesmo. Ora, acontece que em cada
momento desse giro uma parte do planeta está voltada para a luz e outra parte
para a sombra. Chamamos aos momentos de luz “Dia” e aos momentos de sombra
“Noite”.
O Dia, portanto, é algo composto de duas metades: o Dia e a Noite.
Essa analogia pode ser ampliada para um terceiro exemplo?
Talvez. Estive pensando na questão da
memória, por exemplo. Andei vendo entrevistas de alguns psicólogos e
neurocientistas, e me chamou a atenção o modo como eles se referem à memória
como um processo que envolve tanto o lembrar quanto o esquecer. A memória não é
apenas a atividade de lembrar, é também a de esquecer, de deletar, de
descartar, de substituir, de “gravar por cima” das coisas anteriormente
gravadas.
A Memória é um processo complexo que envolve a memória e
o esquecimento. Ou, para ser mais preciso, a Lembrança e o Esquecimento.
Penso também na dualidade entre o nosso corpo e a nossa
mente. Tudo em nossa cultura nos induz a ver as duas coisas não apenas como diferentes,
mas como antagônicas. Não são! A mente faz parte do corpo, do ponto de vista
físico: ela depende do cérebro, da medula espinhal, dos nervos que comandam
nossos movimentos etc.
A mente é um fenômeno provocado no cérebro pelos
sentidos, mas que ganhou um grau espantoso de autonomia e de
auto-referencialidade (eita!), tornando-se capaz de administrar a si mesma, num
processo constante de retro-alimentação. Mas ela é parte do corpo e não existe
sem o corpo. A chama faz parte da vela.
O Corpo, portanto, é um processo complexo que inclui o Corpo
e a Mente.
(Luiz Antonio Simas e "O Corpo Encantado das Ruas")
Vendo há algum tempo uma entrevista de Luiz Antonio
Simas, o autor do Dicionário Social do Samba (com Nei Lopes), O Corpo Encantado das Ruas e outros livros, grande pesquisador da cultura popular, registrei
este comentário dele:
Eu sou um sujeito que trabalho muito com a dimensão do cruzamento.
Trabalho muito com a dimensão do “cruzo”, a dimensão do encontro. Tem um
princípio da cosmopercepção de mundo que é Bantu, que é Bakongo, os povos que
vieram ali do norte de Angola, do antigo Império do Congo e tal... E o Bakongo diz sempre uma coisa que eu acho
muito interessante: “O ser não é ele ou o outro. O ser é ele e o outro”. E o
campo da cultura é um campo de circularidade né?
Não sei se estou entendendo certo, mas acho que isso bate
um pouco com a minha idéia de que a noção do dia como “o contrário da noite” é
útil em vários aspectos, mas a noção de dia como a soma entre o que chamamos
dia e o que chamamos noite é mais completa. E assim por diante.
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