sexta-feira, 28 de maio de 2021

4708) Falatório nordestino (28.5.2021)




(foto: Campina à noite, por Leydson Jackson)

São jeitos de falar, jeitos de dizer que se fala em vários lugares do Nordeste. Se se usa em outras regiões, é porque foram nordestinos que levaram para longe.
 
PEGAR
Um expletivo para dar mais força ao verbo que vem em seguida. “Fui reclamar de minha filha, ela pegou e saiu da sala sem responder.” “Minha mãe disse que se eu deixasse a cama desarrumada ela me botava de castigo, aí eu peguei e deixei, pra ver se era mesmo”.
 
Também se usa o verbo “ir” num sentido semelhante, de mero reforço. “Eu duvidei que Fulano conseguisse beber um café quente como aquele, pois o danado foi e bebeu”.
 
PEITICA
Teimosia, implicância.  “Ele fica de peitica comigo porque sabe que eu já fui namorado da noiva dele, mas qual é a culpa que eu tenho?”

O cunhado dissera que, pessoal, amanhã era Carnaval!  Numa alegria estranha que Deisi talvez não tivesse, concentrada ainda na aula que dera. Mas a irmã continuou na peitica, reclamona, reprovando inclusive a aula.
(Marilene Felinto, O Lago Encantado de Grongonzo, pag. 139)
 
NÃO DAR UM PREGO NUMA BARRA DE SABÃO
Diz-se de alguém muito preguiçoso ou muito rico, que não faz o menor esforço.  “Ela é quem sustenta e casa e cuida dos filhos, o marido não dá um prego numa barra de sabão e ainda pede dinheiro a ela pra ir beber.”
 
PARA O ANO
No ano que vem. Usa-se também “para o mês” e “para a semana” (esta última, sempre em contração: “pra semana”).  “Pra semana começam as aulas, é bom ir logo procurar seu material do colégio”.  “Eu vou viajar ao Rio para o mês, se tiver alguma encomenda pode ir preparando”.  “Para o ano vai ter eleição, aí você vai ver gente aqui prometendo calçar a rua.”  
 
Curiosamente, vale notar que no caso do mês e do ano não se usa, nunca, a forma contraída (“pro mês”, “pro ano”).
 
É DA VEZ QUE...
O mesmo que “É dessa vez que...”: “Se o pneu do carro furar, é da vez que eu me lasco: deixei meu estepe no carro de meu irmão.”  É uma dessas expressões apenas expletivas, intensificadoras, que podem ser extraídas da frase sem mudar seu sentido ou sua estrutura.
 
SIMÃO - O que eu vou fazer é escrever três folhetos arretados, três folhetos chamados “O Peru do Cão Coxo”, “A Cabra do Cão Caolho” e “O Rico Avarento”.  Vendo tudo e é da vez que fico rico!
(Ariano Suassuna, A Farsa da Boa Preguiça, Ato III)
 
É DE ROSCA?
Pergunta que se faz quando alguma coisa está demorando muito.  “Ô garçon, esse sanduíche é de rosca?  Tem mais de dez minutos que eu pedi!”   O termo implica uma comparação entre um prego, que se enfia ou se arranca de uma vez só, com um parafuso, que é preciso enroscar ou desenroscar.
 
GARAPA
Água com açúcar.  É uma espécie de remédio universal para pessoas que levam um susto, crianças que choram de noite, pessoas com tonteiras, etc.  Também se usa para descrever uma briga desigual, geralmente na expressão « pegar garapa » : « Olha, eu não vou brigar com um cara pequeno do seu tamanho, não gosto de pegar garapa. »  Por extensão, qualquer coisa muito fácil de preparar, ou de obter.
 
-- O cinema é o diabo, seu Ramalho.  O senhor não imagina.  São uns beijos safados, língua com língua, nem lhe conto.  Provavelmente as moças saem de lá esquentadas.
-- Devem sair, concordava seu Ramalho.  Por isso há tanta gente de rédea no pescoço.
-- Que réde!  Hoje não há rédea.  Um sujeito corre atrás de uma saia, pega a mulher, larga, pega outra, e é aquela garapa.
(Graciliano Ramos, Angústia, pag. 104)
 
GAZEAR
Fazer gazeta; matar aula. Bi-transitivo: “Já faz três dias que eu gazeio, amanhã vou ter que assistir aula.”   “Toda quarta-feira eu gazeio as duas últimas aulas e vou ver o treino no campo do Treze.”
 
A Rua Manoel Pereira de Araújo estendia os grandes braços contaminados para o encontro da orgia; escancarava a bocarra velha para receber o ósculo pestilencial da luxúria, para cantar “a canção prostituta do ludíbrio”.
A artéria comportava a sua cotidiana paisagem: grupos de boêmios; cavaquinhos repetindo Waldir Azevedo; estudantes que gazeavam aulas do Alfredo Dantas; adolescentes discípulas de Maria Garrafada – o ABC do amor campinense --; cães vadios virando latas de lixo ao meio-fio; radiolas rodando discos de Nelson Gonçalves; a brisa gelada movimentando a dança sem ritmo dos papeluchos do calçamento, sacudindo o jaquetão de casimira de Moacyr Tiê; Horácio Bacanácio cantando samba de breque de Jorge Veiga.
(Orlando Tejo, Zé Limeira, Poeta do Absurdo, pag. 203)
 
MORRENDO DE FOME
Com uma certa fome; com apetite.  A expressão é usada em geral sem a menor intenção de exagero.  "Ih, já é meio-dia e eu estou morrendo de fome.  Vamos comer um sanduíche?"   O nordestino diz "estou morrendo de fome" nas mesmas circunstâncias em que um carioca diz "estou cheio de fome": apenas para comentar que está na hora de comer alguma coisa.
 
BOTAR SENTIDO
Vigiar, tomar conta, ficar de olho em algo.  "Fulana!  Bota sentido nesse leite que está no fogo, enquanto eu vou ali no quintal."
 
Naquela cocheira erma, feia, triste, com um vigia dia e noite para botar sentido nos coches e não deixar que os gringos mais afoitos roubassem as pratas, era esse cupê alegre o único com fama de assombrado ou encantado.
(Gilberto Freyre, Assombrações do Recife Velho, pag. 94)
 
DAR PRA...
Equivale a « começar a.... »« Fulano agora deu pra chegar em casa bêbo toda terça-feira, não sei o que é que tá acontecendo. »   « Esse menino agora deu pra mentir, se não levar uma surra vai virar um problema. »  Também se usa com sujeito impessoal :  « Ultimamente deu pra chover todo dia de manhã, eu não sei o que é isso. »

Subindo mais um pouquinho
Pra Santa Cruz visitar
As pernas dão pra doer
A roupa dá pra molhar
O suor por todo canto
Se não tiver fé no santo
É obrigado a voltar.
 
(Minelvino Francisco da Silva, “Aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo”)
 
TÉSA
(Atenção: palavra masculina, vogal “E” com som aberto).
Dar “um tésa” é o mesmo que “dar um carão” ou “dar uma subida”: repreender asperamente.  “Fui lá na casa dela e dei-lhe um tesa na vista de todo mundo, pra ele ficar sabendo com quem está se metendo!”
R. Magalhães Jr. registra “Dar o tesa com alguém” como expressão equivalente a “Entesar-se com alguém”, registrada no Dicionário de Morais com o sentido de “Ter-se a duras, encrespar-se com ele, não se lhe acanhar”.
 




Um comentário:

Wandique disse...

Prezado,

Moro em Curitiba desde 1956. Só não moro mais pois nasci naquele ano. Da tua lista separei as expressões que têm o mesmo sentido: pegar, gazear, morrendo de fome, dar pra e, garapa, que aprendi com a minha avó, era caldo de cana. Mas tudo isso já está datado, como dizem. Nossa língua é um mundo sem fundo mesmo.