sexta-feira, 19 de março de 2021

4685) As cidades imaginárias do romance policial (19.3.2021)

 


Na ficção científica e na fantasia é comum a invenção de cidades e países fictícios, pois a gente parte do princípio de que está descrevendo outros mundos, paisagens que existem somente na invenção.
 
O mais interessante é que o romance policial faz a mesma coisa. Vejam só. Um gênero que em princípio é tão apegado ao realismo, tão refratário ao fantasioso. No romance (conto, etc.) policial existe até uma espécie de “horror ao sobrenatural”, que é o oposto simétrico do “horror sobrenatural” de Lovecraft e Stephen King.
 
O romance policial é realismo puro, feijão-com-arroz puro, materialismo puro, um gênero escanchado confortavelmente na sela do raciocínio, da experimentação, da invariabilidade das leis da matéria. Quando o sobrenatural ou o fantasioso aparecem na primeira metade do livro, é apenas para receberem um desmentido cabal e arrasador na segunda metade. Foi assim que autores clássicos como John Dickson Carr e Ellery Queen fizeram sua fama.
 
E no entanto... Por que motivo existem tantas cidades imaginárias no romance policial?
 
Em parte, talvez, por discrição. Imagino que tenha sido esta a motivação principal de Agatha Christie ao inventar o vilarejo de St. Mary Mead, onde vive a simpática Miss Marple, a detetive amadora mais famosa da literatura. É um típico vilarejo inglês, a não ser pela assustadora percentagem de homicídios misteriosos que acontecem em seus chalés. Talvez por isso mesmo Dame Agatha tenha preferido inventá-lo, ao invés de ambientar as histórias num vilarejo real, que podia adquirir má fama.
 
Nos websaites dedicados à autora, há mapas e guias do “vilarejo”, indicando ruas principais, lojas, residências de personagens, locais dos crimes mais notórios.


Menos famosa, mas igualmente simpática aos meus olhos, é a cidadezinha de Wrightsville, onde Ellery Queen ambientou alguns dos seus romances mais engenhosos, como O Crime da Raposa (“The Murderer is a Fox”, 1945), Ten Days Wonder (1948, filmado por Claude Chabrol como “La Décade Prodigieuse”), e outros. É uma cidadezinha da Nova Inglaterra, clima um pouco frio, levemente conservadora... Algo parecido com Nova Friburgo no Estado do Rio, ou com Areia ou Bananeiras no brejo paraibano.


(mapa de Wrightsville)
 
Francis M. Nevins, o grande analisador da obra de Queen (Royal Bloodline, 1974) descreve a cidade como uma pequena comunidade onde todo mundo se conhece e se relaciona, e que com a II Guerra Mundial sofreu um boom econômico. Um microcosmo do que a América tem de melhor e de pior.
 
Diz Nevins que o autor citou como inspiração o clássico Spoon River Anthology (1914-1916), de Edgar Lee Masters, uma série de epitáfios em versos onde se contam os crimes e malfeitos da cidadezinha de Spoon River. O próprio Nevins aponta outra influência: a peça Our Town (1938) de Thornton Wilder, de onde Queen parece ter tirado muita inspiração, fazendo sua Wrightsville se parecer com a Grover’s Corner da peça.
 
Raymond Chandler se orgulhava de ter colocado na literatura norte-americana o jeito californiano de falar – as inflexões, as gírias, o vocabulário, a fala coloquial de diferentes classes sociais. Seu escrupuloso realismo (ele de fato pesquisava código penal, funcionamento de delegacias, legislação sobre detetives particulares, etc.) não o impediu de recorrer a ambientações fictícias.
 
Muitas histórias de policiais corruptos de Chandler são ambientadas em Santa Monica, uma cidade do condado ou município de Los Angeles. Certamente para não ferir suscetibilidades, Chandler criou o nome “Bay City”, embora todas as descrições físicas correspondam a Santa Monica. Um artigo de Loren Latker no saite Shamus Town reproduz um diretório (espécie de guia telefônico da época) onde Santa Monica é classificada como uma das “cidades da baía”, o que pode ter dado a Chandler essa dica.





 
São muitos os exemplos e não vou aumentar muito a lista. Ainda posso citar o autor sul-africano James McClure, que depois morou nos EUA e na Inglaterra. McClure era jornalista, e sua obsessão pela verossimilhança era tal que produziu dois livros de não-ficção sobre o funcionamento real de delegacias de polícia, uma em Liverpool (Spike Island, 1980) e outra em San Diego, California (Copworld, 1984).
 
Sua série de romances sobre uma dupla de policiais interraciais (Kramer, um afrikaner, e Zondi, um bantu) é ambientada na África do Sul; mas na cidade imaginária de “Trekkersburg”, uma versão ligeiramente adaptada de sua cidade natal, Pietermaritzburg.
 
“É a minha visão da cidade, e sendo assim não está sujeita às limitações reais dela. Quando eu quero mudar um pouquinho alguma coisa, mudo, e pronto.”


(James McClure)

Essa parece ser a motivação para escritores tão realistas preferirem cidades imaginárias. A cidade real, principalmente em romances onde se desce a um nível de detalhe muito grande, torna-se às vezes difícil de manejar. É preciso checar cada detalhe. É preciso saber a mão do tráfego na Rua Tal de um bairro distante. É preciso saber até que horas fica aberto um posto médico, um mercadinho, um restaurante – porque quando se lida com lugares reais, há sempre leitores nerds que saem de caderneta em punho conferindo cada detalhe.
 
Quando a cidade é imaginária, o autor tem liberdade de movimentos. Claro que se o romance dele é ambientado em Nova York ele tem de graça o charme de se referir a Times Square ou à Broadway. Mas se ele é um bom autor, basta chamá-las de Space Square e de Mainway, e presto! – pela descrição o leitor reconhece o ambiente, e deixa-se levar.


(Evan Huner, “Ed McBain”)
 
É mais ou menos o que faz o grande Evan Hunter, que sob o pseudônimo de Ed McBain criou a série do “87º. Distrito Policial”, muito publicada no Brasil. A cidade é visivelmente Nova York, mas ele a chama de “Isola” (=ilha).
 
Quando eu comecei a escrever o primeiro livro [“Cop Hater”, 1956] percebi que estava ligando para as delegacias de dez em dez minutos para checar algum detalhe. Tinha assinado um contrato para três livros, e pensei: “Isso vai ser uma dor de cabeça danada. Vou passar mais tempo conversando com os caras do que escrevendo o livro.” E pensei: “Vou ambientar isso numa cidade imaginária”, e acho que foi uma contribuição única na literatura detetivesca.
 
Não tão única assim, como já se viu mais acima, mas sem dúvida a contribuição de McBain (e seu elenco de detetives realistas, bem delineados, literariamente vigorosos) misturou bem o ambiente imaginário e os procedimentos reais. Com um detalhe a mais:
 
Eu invento comunidades que não existem, e fatos históricos sobre essas comunidades. Tudo mentira, mas me divirto muito com essa parte – imagino como um bairro veio a receber aquele nome, onde estavam os britânicos na época da revolução, etc., e é tudo inventado.
 
Parece o melhor-de-dois-mundos, e de fato acaba sendo, muitas vezes. Embora haja algumas precauções a serem tomadas.



(Ruth Rendell)
 
Ruth Rendell, uma das Grandes Damas do Crime Britânico no último meio século, ambientava as histórias do seu Inspetor Wexford numa cidadezinha inventada, Kingsmarkham, no condado de Sussex. Wexford estreou em From Doon With Death (1964). Suas investigações não se resumem à cidade natal; ele chega a viajar aos EUA para investigar pistas, e também resolve mistérios quando está de férias no Mediterrâneo.
 
E quanto à ciade de Kingsmarkham?  Diz a autora:
 
Fica no Sussex, e é inteiramente ficcional. Quando criança, vivi por algum tempo em Midhurst, que é no Sussex, e baseei minha cidade no que lembrava de lá. Depois lamentei ter usado o Sussex, porque há outros condados que eu conheço bem melhor.
 
As cidades imaginárias servem ao autor de romances policiais como uma matéria plástica que ele pode moldar ao seu gosto e sua conveniência. Muitas vezes um autor carioca ou belorizontino gostaria de ambientar uma cena do seu livro numa ponte sobre o rio... mas esta é uma paisagem que a cidade não tem. Um romance paulista precisa fazer uma certa ginástica para ter uma cena de praia. E assim por diante.
 
A cidade imaginária pode nos dar incontáveis alusões a uma cidade real a ponto do leitor, nas primeiras dezenas de páginas, perceber que aquilo é uma espécie de Londres, uma espécie de Salvador, ou  de Buenos Aires. Entendendo isso, o leitor se instala num quadro de referências típico da cidade real... e ao mesmo tempo o autor tem liberdade bastante para inventar na sua cidade fictícia alguma paisagem que lhe dê na telha (um rio com pontes, um bairro chinês, uma mata urbana, um cais do porto), ou pequenas mudanças úteis no mundo civil (legislação sobre crime, porte de armas, casos famosos do passado, etc.).
 

 
 (As citações dos autores são extraídas de The Craft of Crime -- Conversations with Crime Writers, de John C. Carr, Houghton Mifflin, 1983, tradução BT).




4 comentários:

Paulo Rafael disse...

Excelente artigo.

Pedro Lira disse...

Braulio, estava lendo esse seu artigo me perguntando se você leu A cidade e a cidade do China Mieville. Ele imaginou duas cidades sobrepostas localizadas em países diferentes, acontece um crime e um detetive do país A tem de apresentar passaporte e passar pela alfândega para ir ao outro lado da rua, que pertence a cidade do país B.
Ele tem outro livro, Estação perdido, onde concebeu uma cidade que eu li imaginando os cheiros.
Recomendo fortemente ambos.

Pedro Lira disse...

Braulio, vi que você tem texto para os dois livros supracitados. Já leu o estação perdido?

Braulio Tavares disse...

Pedro, eu gosto muito de "A Cidade e a Cidade", já comentei aqui no blog, mais de uma vez. Tenho o "Perdido Street Station", mas curiosamente nunca consegui avançar na leitura. É o tipo do livro que eu gosto... mas nunca li mais que 20 páginas. Espero ainda vencer essa barreira. Miéville é excelente, li vários textos curtos e entrevistas dele.