(Stélio Torquato)
Quando eu era garoto havia duas revista de cinema muito
populares. Uma era Cinelândia, com
entrevistas e fofocas de atores, atrizes, etc.
Minha preferida era a outra, chamada Filmelândia,
que publicava “novelizações” de filmes.
Hoje somos acostumados a novelizações em forma de
romances. O filme é lançado, e na mesma época vem às livrarias um romance de
200 ou 300 páginas contando a história do filme – com maior ou menor exatidão.
Alguns autores de FC costumam receber um cachê bastante pesado para escrever
essas adaptações, feitas a partir do roteiro final do filme.
A Filmelândia
transformava o filme num conto, em vez de um romance. A letra da revista era
miudinha e o texto era cerrado como nas revistas de pulp fiction, de modo que tinha bastante espaço. Mas continuava
sendo um conto. Publicado em livro, aquilo não daria mais do que umas trinta
páginas.
A literatura de cordel está entrando um pouco nesse
filão, que já faz parte de sua história – adaptar obras audiovisuais de
sucesso. Um exemplo clássico é a cordelização da telenovela O Direito de Nascer, grande sucesso da
década de 1960, que foi “versada” pelo mestre Manoel d’Almeida Filho num
respeitável folheto de 64 páginas em duas colunas.
Por “cordelização” entendo uma transposição fiel do
enredo original, uma tentativa de “contar o filme” ao leitor, e não o simples
aproveitamento de personagens ou situações de um filme, como ocorre, p. ex., em
Capitão Virgulino na Matrix de Astier
Basílio.
Quem vem se dedicado a cordelizar filmes nos últimos
tempos é o poeta e professor cearense Stelio Torquato, que entre muitas outras
obras (um ciclo de folhetos dedicados às peças de Shakespeare, p. ex.) já adaptou
pelo menos dois clássicos do cinema norte-americano: ...E o Vento Levou de Victor Fleming e Casablanca de Michael Curtiz.
“Cordel” é um termo elástico. Pode se referir ao folheto
de 11 x 16 cm que conhecemos; e pode se referir também a qualquer narrativa em
sextilhas tradicionais (rimando AB-CB-DB) ou septilhas (rimando AB-CB-DDB). São
as estrofes narrativas mais frequentes no que Ariano Suassuna chamava “o
Romanceiro Popular Nordestino”.
Quando a narrativa de estende demais, o folheto fica
muito “gordinho” e se torna mais difícil de grampear e colar. Folhetos com 64
páginas ou mais são meio instáveis, depois de algum tempo começam a perder
folhas.
Vai daí que alguns poetas escrevem a narrativa em versos
e pubicam logo em forma de livro, ou do que chamamos às vezes de “folheto
grande”, medindo em torno de 15 x 21 cm.
( folheto pequeno e folheto grande)
Ou publicam logo em forma de livro, como é o caso do ...E o Vento Levou em Cordel de Stelio Torquato,
publicado em 2017 pela Cordelaria Flor da Serra (Fortaleza).
É um livro de tamanho padrão, com 173 páginas. O poeta
afirma na abertura, em sua “Nota Quase Necessária”, que o trabalho lhe consumiu
quatro anos, e tem 1.020 septilhas num total de 7.140 versos.
Ele afirma também que se baseou tanto no filme de Victor
Fleming quanto no romance original de Margaret Mitchell, daí que certas
passagens do folheto tenham sido extraídas ora de um, ora do outro.
Stelio Torquato dá uma atenção especial à pronúncia dos
nomes estrangeiros, tanto na sílaba tônica (que nestes exemplos destaca em
negrito) quanto na contagem de sílabas de cada nome:
Ashley (2 sílabas), Brent (1
sílaba), Butler (2 sílabas), Carpetbagger (4 sílabas), Carreen (2 sílabas), Gettysburg (3 sílabas)... (...)
Esses cuidados são essenciais, principalmente
considerando a possibilidade de leitores pouco familiarizados com a pronúncia
inglesa.
Os versos em septilhas (AB-CB-DDB) fluem com naturalidade:
Logo após Abraham Lincoln
Ter vencido a eleição,
Alguns estados do Sul
Tomaram a decisão
De novo país formarem,
Ou seja, de se afastarem
Da grande Federação.
A Jefferson Finis Davis
Tais estados confiaram
O cargo de Presidente
Da nação que eles formaram
O estadista disse “sim”
E ficou até o fim
Quando as lutas se encerraram.
A famosa cena do beijo entre Rhett Butler e Scarlet O’Hara,
presente em tantos cartazes do filme, é descrita assim:
Trazendo de encontro a si
A irascível beldade,
O capitão a beijou
Com tamanha intensidade
Que a bela se desarmou
E a paixão a dominou
Com incrível brevidade.
Co’a a habitual arrogância,
O capitão lhe falou:
“Confesse, minha tola Scarlett,
Que ninguém nunca a beijou
Como agora eu a beijei,
E de novo a beijarei,
Pois sei que você gostou.”
O verso final captura o espírito do filme/livro:
“Tara... meu eterno abrigo,
Minha doce moradia!
Ali voltando, o trarei
Para minha companhia.
Serei feliz ao final.
Isso sei, porque, afinal,
Amanhã é outro dia...”
Outra adaptação do autor é a do filme Casablanca, desta vez num texto mais
curto, em forma de “folheto grande” (15 x 21 cm) e 40 páginas.
No litoral marroquino
É que está localizada
A cidade que dá título
À película citada.
Essa urbe de requinte
No início do século vinte
Foi pela França tomada.
O lugar desempenhou
Um papel fundamental
Quando ocorreu a Segunda
Grande Guerra Mundial:
Uma via era o lugar
Para na América chegar,
Passando por Portugal.
O autor tem o cuidado de reproduzir as cenas famosas do
filme, inclusive os diálogos, editados para se ajustarem às exigências da
métrica e da rima:
Sentando-se junto a Sam,
Ilse pede com afeição:
“Sam, toque As time
goes by,
a bela e antiga canção…”
Ele mentiu para ela:
“Eu não me lembro mais dela...”
“Eu lhe cantarolo, então...”
Com minúcias de cinéfilo, o cordelista se esforça para
captar, do filme, os trechos memoráveis, os diálogos marcantes – ou seja,
trazer para o papel um texto que em forma de verso resgate não só a informação
mas a emoção cinematográfica.
E o Casablanca
de Stélio Torquato se encerra nesse clima de intertextualidade e nostalgia:
Diz Renault, notando isso:
“Para você, é melhor
Sair da cidade até
Que esqueçam do major.
Claro, irei lhe ajudar:
Num forte vou lhe instalar
Para escapar do pior...”
“Boa dica. Mas não muda
Os dez mil francos que deve...”
“Cobrirá nossa despesas.
Eu lhe informarei em breve.
Esconder num forte alguém
Custa caro, veja bem...
O bolso fica mais leve.”
“Nossas despesas, Louis?
Que grande sagacidade!
Acho que esse é o início
Duma incrível amizade...”
E os dois foram seguindo
No nevoeiro sumindo,
Virando mito e saudade...
Stelio Torquato é doutor em Letras pela Universidade
Federal da Paraíba e coordena o Grupo de Estudos Literatura Popular (GELP) na Universidade
Federal do Ceará.
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