Orson Welles dizia que um diretor de cinema era na verdade uma
espécie de administrador de acidentes. Interpreto isto como um cara que vai
esbarrando em imprevistos à medida que avança, mas consegue assimilar esses
imprevistos e encaixá-los no projeto. E de repente até consegue usá-los como
trampolins para a imaginação, ou rotas de fuga para fora de um impasse
narrativo.
Tem gente que acha que o cinema profissional é excessivamente
planejado e burocratizado – eu, por exemplo. Mas ele precisa mesmo ser assim,
porque é sujeito a uma quantidade injusta de incógnitas e de variáveis.
São trinta, cinqüenta, cem pessoas (com transporte e alimentação
para todos), toneladas de equipamento, de materiais diversos. Uma logística
complexa que tem necessidade de sol, ou de chuva, ou de vento, ou de mar agitado,
não importa: numa filmagem (que não seja em estúdio) sempre se tem necessidade
de que no dia de amanhã a Natureza se comporte exatamente assim.
Lembro de novo a história de que Nelson Pereira dos Santos
arribou-se do Rio de Janeiro com sua equipe para ir rodar Vidas Secas na Bahia, mas quando chegou lá tinha chovido, o Sertão
estava num verde constrangedor. Nelson hospedou todo mundo, mexeu nuns papéis, escreveu,
rascunhou, e eles fizeram Mandacaru
Vermelho pra não perder a viagem.
Um cineasta que depende do tempo, inclusive meteorológico, é uma
espécie de lavrador, sempre de mão à testa, perscrutando o horizonte. Tal como
o plantador, ele precisa de uma conjunção de conveniências que não dependem
dele.
Isso é na escala mais ampla, mas na escala miúda do dia de
filmagem as coisas não são diferentes. O movimento de câmera imaginado não vai
ser possível por uma razão técnica qualquer, e a cena tem que ser concebida de
novo, de improviso, com a equipe toda esperando.
Uma história do folclore de Hollywood fala da demora de Chaplin
para resolver uma cena crucial de Luzes
da Cidade, onde ele precisava fazer com que a vendedora de flores, que era
cega, pensasse que o vagabundo Carlitos era um sujeito rico. A equipe ficou
ganhando diárias e devorando quentinhas durante dias e mais dias até que o
diretor teve o “eureca!” e filmou a cena. (Ele fez o vagabundo atravessar uma
rua com o sinal fechado passando por dentro de uma limusine com o banco de trás
vazio; ao ouvir a porta da limusine batendo, a cega pensa que ele é o dono do
carro.)
Alguns diretores são extremamente minuciosos no roteiro
justamente para evitar esse tipo de ocorrência; para reduzir ao máximo a chance
de um imprevisto. Alfred Hitchcock e Luís Buñuel eram famosos pela exatidão do
seu planejamento. Hitchcock desenhava tudo em storyboards com tal precisão que,
se quisesse, bem poderia ir para casa e deixar que um assistente qualquer coordenasse
a filmagem em si. Buñuel fazia apenas um take de cada cena, para economizar
negativo, o que deixava os montadores de cabelos brancos, porque se um daqueles
takes se perdesse não teriam um take alternativo para substituí-lo. Roberto
Farias era um diretor meticuloso e prático: Walter Carvalho conta que em Os Trapalhões no Auto da Compadecida praticamente
todos os planos filmados foram usados no filme.
Não se pode aplicar os critérios de um cinema produzido assim a
um outro tipo de cinema onde uma equipe pequena sai para a rua com duas ou três
páginas de diálogos e de indicações, rabiscadas à mão. Esta é um sistema que
não apenas está pronto para acolher o imprevisto, mas também faz dele um
ingrediente essencial.
A definição de Orson Welles citada no início poderia ser
modificada então para “administrador de imprevistos”, porque existem também os
acidentes positivos, que vêm para ajudar, e não para atrapalhar. Tudo que não é
previsto pode gerar numa tensão num filme de preparação muito rígida, mas pode ser
uma resposta bem vinda num tipo de produção que não se importa de acolher o que
lhe cai do céu.
E não só nesse tipo. Stanley Kubrick, durante a produção de 2001, uma Odisséia no Espaço, estava
encalacrado com o problema da famosa sequência em que o computador HAL se
rebela contra os astronautas e tenta assumir sozinho o controle da missão.
Kubrick precisava mostrar que os dois astronautas, interpretados
por Keir Dullea e Gary Lockwood, conspiram entre si para desligar HAL, mas este
toma conhecimento do plano. Foi Lockwood quem sugeriu a Kubrick a idéia de que
os astronautas se trancassem numa pequena cápsula para discutir o assunto, com
o sistema de som desligado, mas o computador fosse capaz de ler os seus lábios,
o que é indicado com movimentos laterais da câmera (ponto de vista de HAL) para
a boca de um e do outro, alternadamente.
Idéias dos atores são bem vindas quando de fato se enquadram no
tom do filme e contribuem para o roteiro. O ator Rutger Hauer, que faz o andróide
Batty em Blade Runner de Riddley
Scott, foi um entusiasta do filme desde o início, um dos que mais
acreditavam estar trabalhando num futuro
clássico do cinema. A cena da morte do andróide no final, na cobertura de um prédio
banhado pela chuva, murmurando lembranças das batalhas que presenciou, e
soltando uma ave que sobe voando ao céu, foi em grande parte uma contribuição
do ator, assimilada e incorporada pelos roteiristas e pelo diretor.
Quando existe esse tipo de sintonia entre diretor e elenco,
qualquer imprevisto pode ser transformado de acidente em efeito. No filme Django Livre de Quentin Tarantino há uma
cena famosa em que Django e seu comparsa estão jantando na mesa de um
fazendeiro (Leonardo DiCaprio) do qual pretendem roubar uma escrava. O fazendeiro
acaba descobrindo; fica furioso, ergue-se na mesa e começa um discurso violento
contra os visitantes e contra os negros em geral.
Na empolgação do discurso, DiCaprio, que segurava uma taça de
vinho, quebrou a taça sem querer e deu um corte fundo na mão, que começou a
sangrar, mas ele continuou “no personagem”, sem interromper a cena, e o diretor
também mandou seguir. Ele esfregou a mão ensangüentada no rosto da escrava, e subiu
o tom do discurso enquanto envolvia a mão num lenço. O pequeno acidente acabou
tornando a cena melhor do que era, devido à capacidade de improvisação do ator
e à percepção do diretor – que se fosse um cara menos experiente talvez tivesse
gritado: “Corta!” ao ver o acidente.
Estes exemplos são exemplos extremos. Cada dia de filmagem, desde
o mais caro blockbuster de super-heróis até um curta-metragem feito por
estudantes, está cheio de exemplos dessa dimensão aleatória do cinema , cuja
essência pode ser definida mais ou menos assim: É indispensável planejar, e é indispensável estar aberto para o que não
pôde ser previsto.
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