terça-feira, 2 de outubro de 2018

4390) O adjetivo (2.10.2018)




Por que todo Manual de Estilo nos aconselha a eliminar adjetivos?  Um adjetivo é um atalho, um recurso que economiza (ao autor e ao leitor) esforço mental.  É uma informação que o autor entrega ao leitor de graça, para absorção instantânea, poupando a este o trabalho de pensar.  O autor preguiçoso escreve: “Fulano de Tal era um funcionário honesto, esforçado, mas pouco imaginativo”.  Esses adjetivos lhe poupam o trabalho de demonstrar de modo concreto essas qualidades abstratas.  E o leitor preguiçoso aceita essas definições fornecidas a priori, porque elas o livram de acompanhar uma demonstração e tirar conclusões próprias.

Há um princípio estilístico segundo o qual é preciso “mostrar, em vez de apenas dizer”.  Em vez de informar ao leitor alguma coisa a respeito de um personagem ou de uma situação, é preferível fornecer as pistas para que ele deduza a informação.  Se ele o consegue, esta pequena descoberta cria uma parceria entre autor e leitor.  O leitor murmura “ah, sim, entendi”, e dá uma piscadela cúmplice para o autor.

“Felisberto abriu a porta e se deparou com um homem mal vestido”.  É uma coisa. Mas se dizemos: “Felisberto abriu a porta e se deparou com um homem vestindo um terno cheio de remendos e calçando sapatos surrados”, aí sim, é o leitor quem faz cair a ficha, quem chega à conclusão. 

A maioria das descrições de características físicas pode ser enriquecida através desse método indireto de exposição.  “Antonio espremeu-se para dentro do carro, e o banco afundou sob seu peso” é melhor do que “Antonio, um sujeito corpulento, entrou no carro”.  Em vez de dizer “uma bela mulher de vestido preto cruzou o saguão” pode-se dizer “uma mulher de preto cruzou o saguão, atraindo os olhares masculinos à sua passagem”.  Ou algo assim.

Há sempre uma maneira concreta de mostrar algo, em vez de apenas dizer com um adjetivo.  “O chão estava molhado” é mais vago, menos satisfatório do que “o chão mostrava poças formadas pela chuva da véspera”.  Nesses casos, é sempre melhor uma imagem visual complexa, mesmo que de extensão mais longa.  Parece uma perda, uma prolixidade desnecessária; mas um escritor decide o tempo inteiro, baseado na intuição, o que funciona melhor em cada frase.  Às vezes é melhor a concisão abstrata de um adjetivo, para ganhar tempo.  Às vezes é preferível a descrição concreta, mas mais longa, de uma característica que ele quer transmitir.

Adjetivos que exprimem estados emocionais podem, em geral, ser substituídos por uma descrição de ação ou comportamento.  “Fulano levantou-se furioso e saiu da sala” pode virar “Fulano levantou-se empurrando a cadeira para trás, e saiu da sala sem uma palavra, batendo a porta com força”. O primeiro exemplo é uma simples frase.  O segundo equivale a uma imagem, e tem mais força do que o mero adjetivo “furioso”.

Existe em alguns autores a tentação (nem sempre bem sucedida) da adjetivação incomum, inesperada.  Um adjetivo pode ganhar expressividade quando é usado de uma maneira à primeira vista imprópria, mas que lhe dá um sentido metafórico.  “Ela o fitou com olhos ínfimos”. “Fulano sentiu-se com a mente despetalada”.  “As cortinas do teatro se abriram, ambiciosas”.  “Ele tinha um olhar pegajoso”.  “Maria vivia num apartamento com dois gatos faraônicos”.  “Ao sair, encontrou no corredor um sujeito de crânio liso e óculos blindados”.  

Quais dessas adjetivações funcionam?  Difícil saber. Expressões assim estão sempre no limite entre o incomum e o ridículo.   O conto “As Ruínas Circulares”, de Jorge Luís Borges, começa com uma frase famosa: “Ninguém o viu desembarcar na noite unânime”.  Borges comentou certa vez: “Isto mostra apenas como naquele tempo eu escrevia de maneira irresponsável”.

Se um substantivo deve vir acompanhado de mais de um adjetivo, é melhor que estes cubram áreas totalmente diversas, por exemplo, um se refira a uma característica física, e outro a uma característica de temperamento.  “Era um sujeito magro e impaciente” é uma descrição mais breve e mais rica do que “era um sujeito alto e magro” ou “era um sujeito falador e impaciente”. 

Deve-se evitar a todo custo o adjetivo eternamente grudado a uma expressão específica. É um confortável vício da nossa imprensa: “tórrido romance”, “carreira meteórica”, “discurso inflamado”, “sol abrasador”, “corpo escultural”...  Clichês assim são como as baratas, impossíveis de extinguir, mas podemos pelo menos mantê-los fora da nossa casa.

Utilizado sem critério, o adjetivo é uma moeda sem lastro. Só tem valor quando o texto produz uma impressão de realidade compartilhada pelo leitor, recriada por este no instante da leitura.  Quando escrevemos: “A sala estava desarrumada”, é como se impedíssemos que o leitor olhasse pela porta e constatasse o estado da sala; como se o obrigássemos a acreditar na nossa palavra e aceitar o nosso julgamento. 

Se, por outro lado, escrevemos: “Na sala viam-se copos sujos por sobre os móveis, cinzeiros cheios, peças de roupa espalhadas pelo chão”, autor e leitor estão como que vendo juntos o mesmo quadro, ao mesmo tempo, e talvez chegando juntos à mesma conclusão.

Adjetivo deve entrar na frase para dar-lhe peso, e não para enfraquecê-la.  Adjetivo não é sinal de concisão.  Em grande parte dos casos é sinal de preguiça, de um autor que quer resolver rapidamente um problema criativo complexo.  Ao substituir um adjetivo (ou um advérbio tipo “alegremente”, “rapidamente” etc., aos quais também se aplica quase tudo que foi dito aqui) por uma indicação concreta, o autor propõe uma fugaz parceria criativa, e o leitor inteligente agradece.



(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicado na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), abril de 2009)










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