domingo, 10 de julho de 2016

4132) Traduzindo o "Grande Sertão" (10.7.2016)



O livro que ilustra este post é da Editora 10/18 francesa; eu já havia folheado um volume com esta mesma capa, anos atrás, numa livraria. O título Grande Sertão: Veredas foi trocado por Diadorim. Para alguns puristas, seria o mesmo que rebatizar O Coração das Trevas como Marlow, ou O Velho e o Mar como Santiago. Além do mais, o ser folclórico que lhe adorna a capa, com suas calças branquinhas frouxas nas pernas, seu chapéu redondo, parece um vaqueiro do Pantanal ou dos pampas gaúchos, não sei, só sei que na minha memória visual não tem nada a ver com os vaqueiros dos Gerais e do sertão do São Francisco.

A obra de Guimarães Rosa teve traduções muito elogiadas para o italiano e para o alemão, por Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, cujas respectivas correspondências com o autor já foram publicadas. Na língua inglesa os resultados têm sido menos retumbantes. Há traduções para o Grande Sertão (Harriet de Onís) e para Primeiras Estórias (Barbara Shelby), talvez alguma outra, mas nada que produzisse um impacto maior. Parece que no italiano e no alemã houve uma entrega mais lúdica dos tradutores às inesgotáveis novidades verbais da voz que narrava o livro.

Agora a tradutora australiana Alison Entrekin divulgou algumas páginas do seu projeto de tradução do GS:V para o inglês. (Veja entrevista e link: http://tinyurl.com/z6cgsle). São as primeiras páginas do livro, páginas que além do problema da linguagem são extremamente dispersas de assunto, Riobaldo toca nos numerosos temas orquestrais da narrativa, mas como em todo início verboso desse tipo, ele está nos dando ali dicas ou revelações que ainda não temos como avaliar, porque é a primeira vez que estamos ouvindo falar na pessoa A ou no lugar B.

São aquelas páginas introdutórias que parecem ter a função de trazer o leitor mais facilmente para dentro do ambiente onde a história de verdade, a coisa real, vai começar a ser contada pra valer daqui a pouco, depois que todos os cavalheiros e as damas estejam bem assentados, bem acomodados, mas enquanto isso vamos encompridando a introdução para que na hora da narrativa decolemos  todos juntos. Ou seja: é o preâmbulo a-voo-de-pássaro sobre o livro e seu mundo, feito pelos contadores profissionais de histórias nos cafés do Cairo ou os memorialistas não-confiáveis de calçada de venda mineira. Só começa a história quando estiver todo mundo calado e prestando atenção.

O livro de Rosa abre-se com o sésamo famoso: “Nonada”. Eu sempre achei que a tradução inglesa para essa palavra mágica fosse “Nonothing”. Há alguns argumentos em favor disso. Primeiro, mantém a mesma letra inicial.  Se há algum conselho inexplicável que eu tenha para dar, que seja este: “A tradução de uma obra literária deve preferencialmente começar pela mesma letra com que começa o texto original.” Por que? Não sei. Porque assim fica mais bonito.

Nonothing tem também a mesma cadência, três sílabas na cadência fraca-forte-fraca, no-na-da, no-no-thing. É um pé de verso harmonioso em si mesmo, como a constelação das Três Marias. Muito bem. Alison Entrekin começa sua tradução assim: “Nonought”. O que é muito bom também. A inicial é mantida. O sentido é o mesmo, mas com um acréscimo positivo, porque não apenas “nought” (ou “naught”) é uma forma antiga para “nada”, mas sua pronúncia o aproxima de “not”, não. E isso enriquece essas variantes que o cérebro computa à velocidade da luz: não-nada, não-não.

Há o detalhe da cadência, que em “Nonought” é diferente. Esse “ght” final é uma daquelas muitas terminações quase-mudas de palavras, tão frequente em outras línguas e menos assim em nosso português, que tende a percutir cada sílaba como se fosse uma tecla. “Nonought” seria pronunciado talvez “no-nó-t”, com esse “t” (o som que a ele corresponde) constituindo uma meia sílaba, um esvair-se sem terminar. O que aliás se afina com o próprio romance, que não termina com a palavra “Fim”, e sim com o símbolo matemático do infinito.

Imagino não faltar muito para algum gonzo-tradutor propor “Na-nani-nanão” para essa famosa abertura, tão marcante quanto a da Quinta Sinfonia. Mas a parte divertida de traduzir é justamente ter tempo para ficar sopesando todas essas pedrinhas, sabendo que somente uma delas será usada.

Ou pensar numa possível abertura francesa: “Nenéant”. Mais uma vez três sílabas, só que agora em cadência diferente do original, mas uma cadência fraca-fraca-forte que evoca a cauda de uma serpente e no final a cabeça que se ergue. Mais um registro: a tradução inglesa antiga, de Harriet de Onís, ao invés de tentar agarrar “nonada” pelos chifres, adota uma paráfrase inofensiva: “It’s nothing.”

Diz Alison (que já traduziu Clarice Lispector e Chico Buarque, além de autores de projeção mais recente como Paulo Lins, Cristóvão Tezza e Daniel Galera):

“Tirei três semanas de folga do romance em que eu estava trabalhando, e traduzi três páginas [do livro de J. G. Rosa.] Sim, isso mesmo: três páginas, não três capítulos. Numa profissão em que alguns consideram 2 mil palavras por dia uma quantidade razoável como padrão, que tipo de lunático aceitaria de bom grado um texto onde só é capaz de produzir 860 palavras ao longo de três semanas? Claro que eu estava ainda ‘fria’; talvez dentro de mais algum tempo eu pegasse o ritmo da coisa e duplicasse esse número. Mas provavelmente não. Quando um texto é complicado, ele continua complicado.”





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