sábado, 19 de janeiro de 2013

3087) Histórias felizes (19.1.2013)





Por que motivo a vida tranquila de pessoas felizes nunca rende uma boa história? Os manuais de roteiro norte-americanos dizem que toda história se baseia em conflito. Ótimo pretexto para que  os roteiristas façam a festa, com brigas de socos, carros explodindo, massacres com serra elétrica e sexo não-consentido. 

Em seu texto mais recente na coluna “Strokes” (http://bit.ly/ZydOmY), John Clute comenta: 

“Nós simplesmente não queremos ouvir, e poucos entre nós leem, embora alguns de nós gostem de recitar, histórias sobre pessoas boas e agradáveis que vivem vidas pacíficas, que resolvem pacificamente seus conflitos, que dão aos filhos liberdade para crescer e para participar sorridentes de estruturas poliamorosas; repelimos histórias desse tipo, embora talvez gostássemos de vivê-las, porque histórias ambientadas em mundos harmoniosos não passam de narrativas congratulatórias, elas exigem a conivência do leitor, que é obrigado a dizer que foi um luau magnífico, ficamos felizes por ter comparecido; o que significa que não se trata de histórias mas de mantras; um mundo verdadeiramente harmonioso seria um mundo desistorizado”.

Mesmo os romances utópicos trazem conflitos embutidos, em geral o conflito entre o Mundo Perfeito e a mentalidade do Visitante a quem esse mundo é mostrado. 

Na literatura utópica, o mundo feliz é um mundo onde nada acontece, a não ser diferentes formas de reiteração dessa felicidade. O conflito em geral não se dá dentro da narrativa, mas na leitura. (Caberia um estudo de como o cinema espírita, por exemplo, imagina o que é a vida no Paraíso.)

Acho que nem sempre foi assim. Talvez em culturas antigas os escritores competissem entre si para ver quem escrevia histórias mais placidamente felizes; e os leitores consumissem isto com deleite. Mas o romance moderno, de 200 anos pra cá, já foi descrito como “a saga do herói problemático”. O romance é um problema que virou história. 

Arregimentando todos os recursos verbais que tinham à mão – a narrativa, o diálogo, a digressão, a descrição, a citação/transcrição de outros gêneros, etc. – o romance tornou-se o gênero que melhor corresponde aos conflitos da sociedade burguesa. Onde a liberdade, a riqueza, a justiça e a felicidade nunca foram tão reais, mas somente pra quem pode. 

As histórias felizes não nos satisfazem porque sabemos serem intrinsecamente falsas; e a literatura popularesca descobriu a fórmula mágica – o romance problemático com um final falsamente feliz.  Com este placebo açucarado vem anestesiando a dor coletiva de bilhões de pessoas mergulhadas em conflito e frustração desde a certidão de nascimento ao atestado de óbito.








Um comentário:

Kyanja Lee disse...

Uau! Bela reflexão! Adorei a sua frase final que não deixa de conter um fundo de verdade dolorosa.