sábado, 9 de julho de 2011
2604) Drummond: Cidadezinha qualquer (9.7.2011)
O migrante é um sujeito eternamente dividido entre o lugar de onde saiu e o lugar para onde veio. Saiu empurrado por alguma força poderosa; mas em geral teria preferido ficar, porque depois de instalado em outro canto fica o tempo inteiro pensando em voltar. Na música nordestina, por exemplo, existe um cancioneiro completo de músicas dizendo “quero voltar”, “ah, se eu pudesse voltar”, “oh, como foi triste vir embora”. Uma vez migrante, sempre dividido. E foi Carlos Drummond, ao meu ver, quem criou a fórmula mais singela e perfeita para essa angústia, nos famosos versos: “No elevador, penso na roça. / Na roça, penso no elevador” (em “Explicação”).
Drummond, que migrou de Itabira para Belo Horizonte e de lá para o Rio de Janeiro, é um exemplo complexo dessa condição. Em sua obra fica claro que na verdade a maior parte do banzo migratório não se refere ao espaço, e sim ao tempo. O migrante não quer voltar para outra cidade, quer voltar para outra época, uma época, talvez, em que era menino e ainda não percebera o quanto a cidade dele era acanhada, medíocre, repressora.
Em “Cidadezinha qualquer” (no livro Alguma Poesia, de 1930), ele começa sua descrição de uma maneira quase de folheto turístico, imagens luminosas cheias de cores subentendidas e uma charmosa equiparação entre substantivos e verbos: “Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar”. Parece um vilarejo tropical de Astúrias ou Jorge Amado em seus momentos de preguiça sensual. Logo em seguida, o filme que vinha com uma música pressuposta começa a ter sua trilha sonora distorcida, porque uma ominosa câmara lenta apodera-se da imagem: “Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar”. Estava tudo tão bonito mas de repente um feiticeiro projetou seu sortilégio malsão. Não é demais imaginar que o feiticeiro é o próprio poeta adulto, lembrando sua infância e assustando-se com a descoberta súbita de que aquilo não era lindo, era terrível.
Ele prossegue: “Devagar... as janelas olham”. Uma imagem que por um lado sugere o quadrados escuros das janelas abertas, dentro dos quais imaginamos a presença de pessoas semi-ocultas olhando para fora; e por outro lado sugere as casas como rostos e as janelas como olhos. As casas são rostos de pessoas com o corpo enterrado no chão da cidadezinha, sepultadas vivas com apenas a cabeça do lado de fora, condenadas a contemplar eternamente as coisas que à sua frente acontecem devagar.
O verso final, porém, o verso que poderia ser de depressão kafkeana ou tchecoviana, um verso de desmoronamento moral diante da falta de sentido da vida, é apenas um verso irônico, matreiro, desafiador: “Êta vida besta, meu Deus”. Modernistamente, a tragédia é reduzida a uma mera besteira, e Deus a uma simples interjeição. O modernismo foi em grande parte essa fuga do trágico-operístico para o coloquial-malandro. E quem há de afirmar que isto foi uma perda?
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2 comentários:
Braulio, acho que Pessoa também tinha inquietações dessa natureza, ou pelo menos semelhante. Se me permite, vou postar alguns versos dele que guardo comigo:
"Se estou só, quero não 'star,
Se não 'stou, quero 'star só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada."
Fernando Pessoa (2-7-1931)
E mais estes, de um poema com o qual me identifico. Daqueles que o gênio português era exímio em criar:
"Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer."
PESSOA, 5-4-1931)
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Não sei se os sentimentos de Pessoa podem ser relacionados com a condição que você chama de "migrante". Mas que existe um quê de evasão nos versos de ambos os poetas (Drummond e Pessoa), isso existe.
Abraços e vida longa ao blog. :)
Inspirada por Leonardo Boff, digo que essa força poderosa, desejo insaciável de infinito, faz deste migrante um ser de enraizamento e abertura - enraizado através de um arranjo existencial, mas aberto para romper limites... É nesta fonte da infância que ele reencontra o que há de mais belo e colorido desta cidadezinha qualquer; é bebendo dela que o feiticeiro suporta o terror de olhar pela janela, para qualquer lugar, como gente grande.
Obrigada por compartilhar estas reflexões inspiradoras!!!
Luciana Portela
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