terça-feira, 8 de março de 2011

2497) A Era do Monjolo (6.3.2011)




Nasci no Condado de Gurtz, no ano 2557 da Era do Monjolo. Minha infância foi uma fuga constante em lombo de burro, no temporal ou na poeira, comendo frutas verdes ou carne estragada, meu pai matando um salteador por dia, minha mãe perseguindo coelhos e acendendo fogueiras. Às vezes demorávamos numa choupana o tempo suficiente para que eu me acostumasse ao desenho das palhas no teto, ao som do vento, ao meu cantinho de dormir, o mesmo canto todas as noites, e pensei uma vez que gostava daquele canto como se ele fosse uma pessoa. Nunca demorava muito, porque chegavam os cavaleiros do Khan, archotes em punho, devastando aquela aldeia, incendiando as florestas e cravando cabeças nas estacas. O Khan demonizou nossas vidas até quando, na época da minha primeira barba, conheci jovens rudes e queimados do sol que me levaram para uma reunião numa gruta. Fiquei sabendo que ali se reuniam os inimigos do Khan, que preparavam a sua derrubada. Perguntaram-me se gostaria de me unir a eles. Minha resposta foi puxar a faca que trazia à cinta, cravá-la no chão e ajoelhar-me.

Deram-me um fuzil, um nome novo, e treinamento. Assinei contratos com sangue, bebi pólvora misturada ao álcool, permiti que me fotografassem degolando um desconhecido, ou beijando a mão de um desconhecido, ou na Praça, erguendo um cartaz em língua desconhecida. Unimo-nos em volta dos exércitos comandados pelo Raij, a nêmese do Khan, o homem que jurara cortar sua cabeça pessoalmente e acabar com o terror na península. Possuídos por uma fúria sagrada, chocamo-nos contra os exércitos do Khan em sucessivos combates, até fazê-los refluir para dentro das muralhas da capital. Na véspera do assalto derradeiro, pude entrever o Raij à distância; ele passou em seu cavalo branco, exortando as tropas. No dia seguinte, desfilamos durante horas diante da estaca, à frente do palácio, em que a cabeça do Khan nos esperava, e a música das nossas trompas de caça emergiu das janelas do palácio, onde se debruçavam mulheres como nunca mais vi.

É duro implantar o Bem numa terra que o mal devastou durante gerações. A violência que o Khan propagara morava agora na memória dos aldeões, contaminava sua vida. Assaltos e emboscadas contra as tropas do Raij se multiplicavam. Descobrimos (a esta altura eu era centurião) que a morte do Khan não mudara muito o mundo, e que o Mal era como um monstro que sobrevive mesmo depois de decapitado. À frente das minhas tropas, comandei incursões de Norte a Sul, enquanto meus cabelos embranqueciam e os incêndios empobreciam as florestas. Vi erguerem-se contra nós as tropas andrajosas e mal-armadas dos seguidores do Valoong, o guerreiro envolto em peles de urso que jurou queimar vivo o Raij e seus seguidores. Hoje, à véspera de mais uma batalha, escrevo estas linhas à luz dos archotes, os mesmos que empunharemos amanhã no momento de massacrar outra geração de insurgentes, devastar suas florestas e cravar suas cabeças nas estacas.

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