sexta-feira, 2 de julho de 2010

2219) Sobrado Mardito (18.4.2010)




Pense num caba teimoso era Dedé. Depois que ele bateu o olho no portão de ferro daquele sobrado ele num falava noutra coisa. Bora, maluco, ele dizia, se a gente meter o ombro aquela butina vem abaixo e a gente entra. É, eu dizia, e quando entrar vem o maior pitibu em cima da gente, tá ligado? Oxente, rapaz, ele dizia, ali num tem cachorro nem nada, uma noite dessa eu fiz o teste, joguei um peido-de-véia aceso e fiquei esperando, quando pipocou latiu cachorro no prédio da esquina, latiu na casa rosa em frente, latiu até na outra rua, e no sobrado nada.

Ele dizia que o povo do sobrado devia estar veraneando na Europa. A gente passava ali de vez em quando quando voltava do pega-bebo de Alaôr, era o caminho mais curto pra pensão. Eu trabalhava na obra dum viaduto e Dedé fazia bico de flanelinha. A viage dele era entrar em casa de bacana e passar dois três dias. Num era nem pra roubar, que se ele roubasse num ia nem saber como vender, era alesado, ia ser pego num instante. Ele dizia: dormir em lençol de seda, tá ligado? Abrir a geladeira, escolher coisa, sentar em sofá, andar nu por dentro da casa.

Aí um dia a gente tomou umas caeba e na volta putufo, botou o portão abaixo, arrodeou o jardim, quebrou uma janela e quando viu tava dentro. Só acendemo a luz depois de puxar as cortinas de pano. Rapaz, a festa não teve mais tamanho. A geladeira era cheia de comida. A gente abriu vinho, abriu uísque, fez um melelê danado na sala, logo na primeira noite! Lá mesmo dormiu. No outro dia, quedê que ninguém queria ia trabalhar? Trabalhar pra que, o caba dormindo num sofazão daquele? Eu saí, arrumei duas quenga e trouxe pra dentro, aí num prestou não. A gente não acertou a ligar o som mas ligou a TV, achou um canal de música e tome uísque, e tome sarrafo nas nega.

Foi só na outra noite que eu resolvi subir no primeiro andar. Dedé bebo, a nega dele fazendo espuma na banheira feito no cinema, e a minha dormindo, porque o serviço foi pesado. Subi e fui olhando de quarto em quarto. Um deles tava trancado por dentro, mas eu desci, busquei uns ferro e arrombei. Rapaz... melhor não tivesse feito. Era um quarto vazio, sem um móvel, sem uma coisa, nada, nada. Quer dizer – num recanto eu vi um negoço que parecia uma nuvem cinzenta, a meio metro de altura. Cheguei perto, era uma coisa redonda do tamanho dum prato, suspensa no ar. Eu arrodeei e olhei pelo outro lado. Era como uma lâmpada grande, um refletor, só que não projetava luz, projetava treva. Fiquei tonto e caí de joelhos. O rosto a um palmo de distância daquilo. Diante dos meus olhos um túnel cilíndrico, se alargando até virar uma esfera pelo avesso, e uma treva, absoluta e sólida como o mármore, fluiu para dentro de mim, saturou minhas retinas, galvanizou meus nervos, meus neurônios, minhas sinapses, e me petrificou e eternizou como estátua sólida de treva, me transformou no menor grão de treva num universo só de treva feito, e ficou assim para sempre.





Um comentário:

Augusto Dias disse...

Muito bom, prende a quem lê até que termine, causa a viagem da leitura,
Adorei!!!
Tudo de bom!