segunda-feira, 21 de junho de 2010

2171) “Duas contas” (21.2.2010)



(Garoto)

“Duas contas” é o título oficial da canção, mas a maioria das pessoas a chama pelo seu verso inicial: “Teus olhos”. Não importa. É uma jóia delicada da música popular brasileira, uma canção discreta e perfeita. Foi composta por um violonista hoje obscuro, autor de numerosas melodias e que compôs aqui (pelo que se diz) sua única letra. E uma letra (um detalhe a mais no preciosismo que a cerca) sem uma rima sequer. Garoto (Aníbal Augusto Sardinha, 1915-1955) era um violonista paulistano, de harmonias sutis que o levaram a ser apontado como um precursor da Bossa Nova. Sua composição mais conhecida, ao lado de “Duas contas”, é “Gente humilde”, que recebeu uma bela letra de Vinicius de Moraes e Chico Buarque.

Esta canção (encontre aqui a partitura e a cifra dos acordes: http://tinyurl.com/yjdsy56) pode ser vista no YouTube em interpretações de Rosa Passos (http://tinyurl.com/ykqunod), dos meus amigos, os Trovadores Urbanos (http://tinyurl.com/yfbmuo2) e outros. Ela começa assim: “Teus olhos... / São duas contas pequeninas... / Qual duas pedras preciosas... / Que brilham mais que o luar”. Quatro frases curtas, a primeira e mais curta delas com um tímido movimento ascendente, e as demais seguindo uma espiral descendente até o grave em “luar”. Veja-se que nada na letra rima. Rimas servem para criar, ou para reforçar, a repetição de um elemento estrutural. Neste caso a gente nem sente falta, porque a sequência rítmica das sílabas/notas se dá com uma simetria simples e previsível.

A segunda estrofe começa repetindo a cadência e a melodia da primeira: “São eles... / Guias do meu caminho escuro...” Mas nas duas linhas seguintes surge um elemento de dissonância, um desvio: “Cheio de desilusão... / e dor...” Letra e música vão numa direção diferente, sombria, inesperada. O grave de “dor” chega a ser mais acentuado do que o de “luar” que fechava a estrofe anterior. Este é um recurso comum na canção: dar a impressão, na segunda estrofe, de que se vai repetir a estrutura e a melodia da anterior, e lá pelo meio dar uma guinada noutra direção.

Depois do grave profundo da nota “dor”, o poeta comenta consigo mesmo: “Quisera que eles soubessem / o que representam pra mim...” Estas duas primeiras frases são uma digressão melódica; depois delas ele diz: “Fazendo...” (e retoma a mesma intenção melódica do “teus olhos” do início) / “que eu prossiga feliz...” (melodia agora ascendente). E o final é um comentário poeticamente perfeito, sem adjetivos, sem comparações, sem sentimentalismo, é o poeta simplesmente dizendo aquilo que vê, que sente, a coisa na qual não pode deixar de pensar: “Ai, amor... / A luz dos teus olhos!...”. Não poetize a poesia, já dizia João Cabral. Quando se encontra um jeito bonito de dizer as coisas, não é preciso enfeitar, recobrir o poema com o glacê pegajoso do excesso poético. Se foi esta a única letra escrita por Garoto, dá um banho em muito letrista profissional que gasta tinta por aí.

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