quinta-feira, 10 de junho de 2010

2133) Os embaraços da ficção científica (8.1.2010)



Em 2 de setembro de 2001, um domingo, a comunidade da FC norte-americana reuniu-se no Marriott Hotel, na Filadélfia, para a cerimônia de entrega do Prêmio Hugo, considerado o Oscar da ficção-científica nos EUA. A cerimônia ocorreu durante a 51a. Worldcon, a convenção mundial da FC, uma festa gigantesca que ocorre todos os anos, geralmente nos EUA. Com a presença de cerca de 6.200 fãs, foi uma das convenções mais numerosas das últimas décadas. O “gran finale” da Worldcon é a entrega do Prêmio Hugo nas categorias de melhor romance, melhor noveleta, melhor conto, etc. e tal.

Americanos adoram cerimônias desse tipo, e o Hugo é o prêmio de maior visibilidade no mundo da FC. Daí que não foi sem uma certa perplexidade que, ao ser aberto o último envelope da noite, constatou-se que o melhor romance de ficção científica escolhido em 2001 foi “Harry Potter e o Cálice de Fogo”, de J. K. Rowling. Tem gente esbravejando até hoje. Na Internet e nas revistas especializadas muita gente considerou isto uma infantilização do prêmio, uma tapa na cara dos fãs mais radicais de FC. O Hugo ir para um mau livro de FC já rende polêmica bastante, mas foi esta a primeira vez que isto aconteceu com uma obra que, embora ligada ao que chamamos “literatura de gênero” (e que inclui FC, fantasia e horror), não tinha o menor vínculo com a FC, e era, ainda por cima, um livro infantil. A FC estava deixando de lado seu papel de observadora do futuro?

Parece que sim, porque nove dias depois dessa cerimônia na Filadélfia todo mundo sabe o que aconteceu. Minha imaginação doentia me faz supor que havia pelo menos uns 500 leitores de FC tomando cafezinho e discutindo o resultado do Prêmio Hugo em diferentes andares do World Trade Center quando os aviões sequestrados explodiram nas duas torres. Terrível ironia para um gênero que é tido pelo grande público (embora erradamente, a meu ver) como uma literatura que nos avisa sobre o que vai acontecer no futuro. O futuro eram os terroristas islâmicos estudando nos EUA como decolar (mas não como pousar) um Boeing. A FC, naquele momento, era Harry Potter.

Vendo tudo à distância, hoje, é melhor reconhecer que o prêmio (para o qual votam todos os participantes da Worldcon, independentemente de sexo, idade ou preferências literárias) refletiu a chegada de uma geração de leitores mais jovens, apaixonados por Harry Potter, e muitos dos quais estavam votando no Hugo pela primeira vez. Não há como negar, no entanto, que o resultado simbólico desse prêmio mostrou um ponto de inflexão que o mercado da FC estava tomando naquele momento, em pleno terremoto editorial. Grandes conglomerados não-livreiros estavam adquirindo editoras de peso e de renome no mundo inteiro, e quem dava o tom eram os “grandes sucessos”. O mercado editorial, que sempre havia sido mais ou menos autônomo, tornou-se um apêndice (muitas vezes um apêndice facilmente extirpável) do grande mercado corporativo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Se teve um escritor de FC que poderia levar o mérito pela "profecia" foi a Ursula K. Le Guin. No livro The Telling, publicado em 2001, ela escreveu sobre um gigantesco atentado terrorista promovido por um grupo fanático taleban-like a uma das últimas zonas livres de uma ditadura fundamentalista em uma distópica Terra futura.
Fiquei pasma quando li.