quinta-feira, 6 de maio de 2010

2004) Orfeu em Solaris (11.8.2009)



(Orfeu)

No filme Solaris, de Andrei Tarkovsky, a jornada de Kris Kelvin é de certa forma uma jornada de Orfeu às avessas. Orfeu é o herói grego que penetrou no reino dos infernos para resgatar sua amada Eurídice e trazê-la de volta à vida. O deus dos infernos, Hades, atende seu pedido e diz que ele pode retornar à Terra, mas adverte que se durante o trajeto ele olhar para trás perderá Eurídice para sempre. Ora, em qualquer relato mitológico as proibições são feitas para serem desobedecidas. Orfeu, a certa altura da caminhada, começa a imaginar que Hades está trapaceando, e que ele na verdade está voltando sozinho para casa. Olha por cima do ombro... e vê Eurídice, que o seguia, desaparecer para sempre. (Não, leitor, não corra a consultar os gregos. Estou contando a versão que circula hoje. No original, vai ver que é diferente.)

Em Solaris (tanto no filme quanto no romance de Stanislaw Lem) o protagonista viaja para o planeta em busca de conhecimento. Na época (imprecisa) em que transcorre a história, já faz cerca de um século que a Humanidade descobriu o planeta Solaris, coberto por um oceano que já deu demonstrações de ser uma criatura pensante. (Imaginem um cérebro maior que os oceanos Atlântico e Pacífico somados.) Mas o contato tem sido impossível, porque o Oceano não dá mostras de perceber a presença dos humanos explorando sua superfície.

Kris Kelvin tem um nome que evoca tanto a religião (Cristo) quanto a ciência (Lord Kelvin, o físico britânico). Ele vai para o planeta em busca do conhecimento; quer decifrar o enigma de Solaris. Chegando lá, encontra na estação planetária uma réplica perfeita de sua falecida esposa, Harey, que se suicidou aos 19 anos. Fascinado mas cético, Kris a examina e descobre que ela não é um ser humano, e sim uma formação de neutrinos destinada a reproduzir (para os cinco sentidos) a pessoa que ele guardava na memória. A mulher parece ter amnésia: não sabe que morreu, não sabe como foi parar ali, sabe apenas que o ama e que quer ficar ao lado dele.

Kris é um Orfeu que foi parar no inferno, o Inferno dos Cientistas, que não é o dos tormentos físicos, mas o da incapacidade de compreender algo; e ali reencontra sua amada. Ele sabe que não é ela. Mas a réplica é tão perfeita que ele volta a se apaixonar. Os cientistas da Estação já chegaram à conclusão de que o Oceano é capaz de perscrutar seus inconscientes e materializar algo que esteja lá dentro, algo que pareça ser mais importante do que todo o resto. Eles se propõem a construir um desestabilizador de neutrinos, o que teria o poder de dissolver “Harey” em partículas subatômicas. E Kris acaba perdendo novamente sua amada, porque duvida, porque olha para trás. Ele sabe que ela não é de verdade, e permite que seja destruída. Prefere o conhecimento, mesmo precário, à ilusão do amor. Prefere destruir a cópia pirata, mesmo sabendo que o original foi perdido para sempre.

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