quarta-feira, 17 de março de 2010
1798) Kingsley Amis e a ressaca (13.12.2008)
(Kingsley Amis)
A ressaca é o que resta de um homem depois que a bebida vai embora.
Histórias de ressaca são pesadelos que boêmios inveterados relatam uns aos outros entre gargalhadas, com a coragem impudente de quem conta piadas durante um bombardeio. Bebedores contumazes costumam comparar suas receitas preferidas, com a aplicação de sócios dum clube de hipocondríacos.
A minha, nos tempos de juventude em que eu tomava por ano uns três ou quatro pileques de grande porte, era amanhecer no dia seguinte, beber água gelada e rumar para a Sorveteria Flórida, onde tomava duas saladas de frutas com sorvete de maracujá e calda de chocolate. Era tiro e queda. Dez minutos depois da segunda taça eu já estava considerando a possibilidade de uma caipirinha.
A editora inglesa Bloomsbury reuniu num único volume (Everyday Drinking) três textos curtos de Kingsley Amis sobre a bebida e os bebedores (ver: http://www.guardian.co.uk/books/2008/nov/23/kingsleyamis-alcohol/print).
Amis (1922-1995) foi um escritor versátil e famoso. Seus livros mais conhecidos são Lucky Jim (1954), The Anti-Death League (1966), The Alteration (1976). Não li nenhum deles: li seu ótimo ensaio sobre ficção científica, New Maps of Hell (1960) e alguns volumes da série de antologias de FC que ele organizou, Spectrum.
Ironicamente, Amis é hoje conhecido como “o pai de Martin Amis”, porque seus livros foram eclipsados pelos do filho.
Sir Kingsley bebia como gente grande, e a resenha de Everyday Drinking fala dessas sofisticações etílicas que sempre me foram estranhas, como a composição de coquetéis. Admiro os gênios que criam sutilezas como o “Paul Fussell’s Milk Punch” (uma parte de conhaque, uma de bourbon, quatro de leite, mais noz-moscada e cubos de leite congelado) ou o “Lucky Jim” (doze a quinze partes de vodka, uma parte de vermute, duas partes de suco de pepino).
Para quem só toma hoje cerveja e vinho, bebidas assim são de um refinamento digno da Renascença Italiana.
Amis receita alguns desses drinques para “aquecer o coração e dar forças durante um dia árduo, não apenas por ocasião de uma entrevista ou uma viagem aérea, mas na ocorrência de uma festividade angustiante como o Natal, o casamento de um velho amigo de sua esposa, ou o domingo de levar a família para almoçar com a avó”.
Ele assegura que as curas tradicionais da ressaca são irrelevantes, “uma vez que omitem toda aquela enorme, vaga, terrível e cintilante super-estrutura metafísica que faz da ressaca uma rara vereda para o auto-conhecimento e a auto-realização”.
Segundo o resenhador, Roger Scruton, ele atribui ao fenômeno da ressaca grandes páginas de literatura que não a mencionam, mas certamente dela se originam: “trechos de Dostoiévski e de Poe podem ser lidos sob esta ótica, embora a maior de todas as tentativas para captar essa experiência seja A Metamorfose de Kafka, em que o herói desperta pela manhã transformado num inseto do tamanho de um homem”.
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