terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

1663) O piloto e o passageiro (11.7.2008)




Ouvimos falar o tempo inteiro em “nossa identidade cultural”. A identidade cultural dos brasileiros, dos nordestinos, dos paraibanos... Mas como estabelecer essa identidade sem aprisioná-la para sempre numa dessas receitas do tipo “é assim e não pode ser assado”? 

Ou eu tento privilegiar o que acredito ser, tento ser fiel a essa essência – e neste caso me furto a interagir com o mundo, para não aceitar transformações; ou aceito essa interação e corro o risco de, no minuto seguinte, deixar de ser o que sou agora. 

É um pouco como, na Física, o famoso “Princípio da Incerteza”: ou sabemos a posição de uma partícula, mas desconhecemos sua velocidade, ou sabemos com que velocidade ela se move, mas nunca sabemos onde está.

Talvez possamos atenuar esse problema se virmos a identidade não como uma coisa sólida, de contornos claros e definidos, mas como uma trajetória através dos fatos. Não um ponto estático, mas uma linha que se alonga. 

Identidade não é a posição em que estamos, mas o modo como nos movemos através dos fatos e a trajetória que esse movimento acaba desenhando. É impossível conhecer alguém por dentro, conhecer “a coisa em si”. Mas podemos observar, de fora, como esse alguém se comporta, como se movimenta através do tempo, suas mudanças de rumo, suas correções de percurso. E a rota traçada por esse alguém é que seria sua verdadeira identidade.

Eu nunca andei de bicicleta; tenho um medo danado de me fazer em pedaços no primeiro poste que aparecer. Mas, se nunca pilotei bicicleta, já andei muito nelas, pegando carona, sentado no bagageiro. E não só de bicicleta, mas mobilete, moto, etc. 

E uma coisa que eu ficava observando (para me distrair do medo de morrer) era a enorme velocidade com que estávamos sendo propelidos através da paisagem, e a tranqüilidade sem fim com que o meu amigo, encarregado da pilotagem, “negociava” o percurso: rodeando automóveis, abrindo curvas largas quando o espaço permitia, dando freiadinhas bruscas ao se aproximar de um sinal ou de um obstáculo, atenuando o vácuo na descida dos viadutos, inclinando o corpo em 45 graus nas curvas mais fechadas...

Pensar em identidade como uma coisa estática é coisa para passageiro, para quem está sendo levado pelos outros, passivamente, relaxadamente, sem o compromisso de salvar a própria vida a cada metro. 

Para os “agentes sociais” (valha o termo!) identidade é esse percurso que se constrói com atos privados e públicos, tomadas de decisões, adoção de estratégias. A identidade não é uma descrição fixa de quem somos, é uma soma das decisões que tomamos e das responsabilidades que assumimos, e pode ser aferida através do trajeto que percorremos. 

Identidade não é uma coisa – a “coisa”, no caso, somos nós. Identidade é o trajeto escolhido por essa “coisa” ao longo da vida, é o trajeto que nos dá pistas (sempre indiretas, claro) sobre o que há dentro do interior inacessível dessa coisa chamada gente.






Um comentário:

Luciene Paz disse...

A melhor forma que encontrei de explicação sobre a identificação primordial, base das identificações sucessivas que jamais se cristaliza em uma identidade
fixa e que a passagem de uma identificação a outra implica em ressignificações das passagens anteriores. A busca de uma identidade fixa é uma experiência universal do animal humano. Excelente texto!!!